04/05/2024 - Edição 540

Ecologia

Olhar voltado para a Amazônia ameaça sobrevivência do Cerrado

Povos tradicionais resistem à expansão da agricultura no bioma

Publicado em 11/09/2023 10:03 - Lucas Pordeus León (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Abr

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O dia 11 de setembro marca o dia da savana mais biodiversa do planeta: o Cerrado brasileiro. O bioma ocupa 24% do território nacional e está presente em 11 estados e no Distrito Federal, indo do Paraná até Rondônia, passando por São Paulo, Bahia e Maranhão.

Apesar da grande importância do bioma para a preservação da fauna, da flora e dos povos originários, especialistas que estudam o Cerrado fazem um alerta: o avanço da agropecuária de exportação junto com a tese do Bioma de Sacrifício têm colocado em risco o futuro da savana brasileira.

Estudos indicam que a maior parte do desmatamento do Cerrado ocorre na região do Matopiba, área de fronteira agrícola que engloba os estados do Maranhão, de Tocantins, do Piauí e da Bahia – o termo surge da junção da primeira sílaba desses estados.

Entre janeiro e julho de 2023, 85% do desmatamento do bioma ocorreu no Matopiba, segundo análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) que, apesar do nome, também tem o Cerrado como objeto de estudo.

A pesquisadora do Observatório do Matopiba Patrícia da Silva destacou que o Cerrado tem sido considerado por estudiosos como uma zona de “sacrifício”.

“A gente tem costume de olhar muito para a Amazônia e vai sendo mais permissivo com o que acontece no Cerrado, embora o Cerrado seja o berço das águas do Brasil e onde nascem oito das 12 bacias hidrográficas mais importantes do país”, destacou.

Desmatamento

Enquanto o desmatamento na Amazônia diminuiu 42,5% entre janeiro e julho deste ano, no Cerrado ele cresceu 21,7% em relação ao mesmo período de 2022. Ou seja, foram desmatados 582 mil hectares de Cerrado até julho deste ano, uma área semelhante ao tamanho do Distrito Federal. Cada hectare equivale a um campo de futebol.

Para o geógrafo e doutor em Ciências Florestais Yuri Salmona, diretor-executivo do Instituto Cerrados, o desmatamento vem crescendo nos últimos anos porque o Cerrado é um bioma desprotegido, onde a governança ambiental foi deixada nas mãos do setor privado e dos governos estaduais.

Para Salmona, existe uma ideia, difundida inclusive internacionalmente, de que a Amazônia resolve a agenda ambiental brasileira.

“Em contrapartida, o Estado brasileiro e a sociedade brasileira construíram o ideário de que o Cerrado é um bioma de sacrifício. Então, vamos sacrificar esse bioma em nome do agronegócio e em nome da própria preservação da Amazônia. Daí você vê uma dinâmica de que o desmatamento que iria para Amazônia vem para o Cerrado”, explicou.

O diretor do Instituto Cerrados acrescentou que essa visão não faz sentido porque o Cerrado abastece as bacias amazônicas por meio do rio Xingu e da bacia Tocantins-Araguaia,. “A água que corre no rio Amazonas e abastece a bacia amazônica, em boa parte, provém do Cerrado”, concluiu o especialista que defendeu que Amazônia e Cerrado são “biomas irmãos”.

Agronegócio

Atualmente, metade da área do Cerrado é ocupada pela produção de animais e grãos. Em 1985, a agropecuária ocupava pouco mais de um terço (34%) do bioma, segundo estudo do MapBiomas. O levantamento feito com dados de satélites revelou que, entre 1985 e 2022, a savana brasileira perdeu 25% da sua vegetação nativa para o desmatamento.

E a tendência é de que o desmatamento continue, uma vez que há previsão de expansão da agropecuária no Cerrado nos próximos anos, segundo pesquisa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). A pasta prevê um aumento de 37% na produção de grãos no Matopiba em dez anos. Com isso, o setor deve aumentar a área explorada em 17%, o que representa uma expansão da fronteira agrícola de 1,6 milhão de hectares no período.

A produção agropecuária que predomina no Matopiba é realizada por grandes empresas, com investimentos internacionais, que produzem grãos em larga escala, com produção altamente mecanizada, e voltada para exportação das chamadas commodities, que são matérias-primas em estado bruto, segundo a pesquisadora Patrícia da Silva.

Desafios

O diretor-executivo do IPAM, André Guimarães, considera que o elevado grau de desmatamento do Cerrado coloca o bioma em “altíssimo risco”. Segundo ele, diferentemente da Amazônia, onde o desmatamento se concentra em terras públicas, no Cerrado a maior parte é em fazendas privadas, o que exige outro tipo de ação do Estado.

“Nós estamos falhando enquanto Estado brasileiro ao não regulamentar os artigos do Código Florestal que geram incentivos para que o proprietário privado desista do seu direito de desmatar”, destacou.

O Código Florestal, enquanto limita o desmatamento a 20% da propriedade privada na Amazônia, no Cerrado ele permite um desmatamento de até 80% da propriedade. “Isso traz uma dificuldade para reduzir o desmatamento. No Cerrado, eles podem desmatar legalmente”, destaca Ane Alencar, coordenadora do MapBiomas Cerrado.

“No Cerrado, a questão vai muito além de ser só uma questão legal, passa por uma questão de boas práticas, de incentivo ao melhor reaproveitamento das áreas já desmatadas e de maior eficiência na produção dessas áreas. Então, é um desafio bem maior do que na Amazônia”, afirma.

Por outro lado, a pesquisadora Patrícia da Silva pondera que mesmo os desmatamentos tidos como legais estão com irregularidades.

“As pesquisas que a gente tem feito apontam que, embora tenha uma boa parte desse desmatamento que sejam “legais”, ou seja, possuam Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), essas autorizações apresentam problemas e irregularidades na sua expedição”.

MMA

Em audiência pública no Senado no final de agosto, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva informou que a pasta está preparando um novo plano contra o desmatamento do Cerrado que deve ser colocado para consulta público neste mês de setembro.

Ao mesmo tempo, Marina destacou que o plano não terá sucesso sem participação dos estados:

“Considerando que mais de 70% dos desmatamentos que estão acontecendo no Cerrado têm a licença para desmatar, o que nós vamos precisar é, digamos, revisitar essas licenças para saber o nível de legalidade delas”.

Nossa reportagem procurou a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) para se posicionarem sobre o desmatamento do bioma para a produção agrícola, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Desmatamento do Cerrado ameaça segurança hídrica de todo o Brasil

“Uns anos atrás, o rio aqui da gente só ia baixar bastante no final de agosto para setembro. Hoje não. Parou a chuva, com oito dias ele [nível do rio] já tá lá embaixo porque não tem mais quem sustenta as águas. Os brejos já diminuíram a vazão porque o Cerrado foi desmatado nas cabeceiras, não tem mais Cerrado.” A denúncia em forma de lamento é do agricultor Adão Batista Gomes, de 61 anos, que viveu toda a vida na zona rural do município Formosa do Rio Preto, no oeste baiano.

O agricultor Jamilton Santos de Magalhães, de 40 anos, conhecido como Carreirinha, é líder comunitário em Correntina, também no oeste do estado, e conta que a morte de nascentes na região se tornou frequente a partir da década de 1990.

“Começou o desmatamento, dois ou três anos depois começa o secamento das nascentes. Tem famílias que têm mais de 200 anos morando nesse território. Não tinha morte frequente de nascente antes”.

A região onde Carreirinha e Adão moram é uma das que registra os maiores níveis de desmatamento do Cerrado, provocado principalmente pela expansão da fronteira agrícola do Matopiba, área que engloba parte dos estados do Maranhão, de Tocantins, do Piauí e da Bahia – o termo surge da junção da primeira sílaba desses quatro estados.

Considerado o berço das águas do Brasil, o Cerrado é a origem das nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas mais importantes do país. É também o segundo maior reservatório subterrâneo de água do mundo, formado pelos aquíferos Guarani e Urucuia.

Além disso, fornece cerca de 70% da água do Rio São Francisco e 47% da água do Rio Paraná, que abastece a hidrelétrica de Itaipu. Suas águas são importantes ainda para Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Essas informações são do estudo publicado pela revista científica Sustainability que apontou os riscos que o desmatamento do bioma pode causar para a segurança hídrica e energética do país.

Marcelo Camargo – Abr

Menos água

Um dos pesquisadores do estudo, o doutor em Ciências Florestais Yuri Salmona, explicou à Agência Brasil que as longas raízes das árvores típicas do Cerrado podem chegar a 15 metros de profundidade e fazem o bioma ser conhecido como “floresta invertida”. Essas raízes são responsáveis por levar a água das chuvas até o fundo do solo que, durante o período seco, vai liberando novamente a água.

“Essa água vai se acumulando nesse subsolo ou escorrendo entre os rios. Ela vai abastecer o Paraná, o Jequitinhonha, o Araguaia, o Tocantins, entre outros rios. A quebra dessa dinâmica proporcionada pelo desmatamento, que interfere na capacidade de infiltrar essa água, faz com que a água escorra superficialmente, causando erosão, com excesso de vazão nas chuvas e escassez na seca”, explicou o diretor-executivo do Instituto Cerrados.

Yuri alertou que a situação se agrava com o consumo de água para irrigação do agronegócio durante o período da seca. “Ele [agricultor] está inviabilizando o futuro do próprio negócio dele, porque a gente precisa do Cerrado em pé para continuar produzindo a água”, destacou.

O estudo analisou o comportamento de 81 bacias hidrográficas do Cerrado, e calculou que essas bacias perderam, em média, 15,4% da vazão dos rios entre 1985 e 2022. Para 2050, a previsão da pesquisa é de que a redução na vazão das águas dessas bacias chegue a 34% do que já foi um dia, “mesmo com diminuição do desmatamento”.

Exportação de água

“A água segue sendo exportada para China, União Europeia e Estados Unidos em forma de ‘água virtual’, ou seja: água consumida na produção dos grãos e carne”, cita a pesquisa referindo-se às commoditie exportadas pelo Brasil.

Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 49,8% da água consumida no país em 2019 foi com a irrigação da agricultura.

A coordenadora do MapBiomas Cerrado Ane Alencar destacou que as outorgas para o uso da água no Cerrado não são transparentes. “A gente não sabe quais os critérios, se existe um limite para fornecer essas outorgas. Tem pouca transparência sobre isso”, destacou.

“De fato, o que acaba acontecendo é que a água – que é um bem para ser usado por todos –, está sendo usada para a produção agrícola e acaba sendo exportada. A gente tá exportando um recurso natural super importante e fazendo o uso desse recurso de qualquer forma”.

Crises de água  

Onde o uso da água é intenso na irrigação de larga escala, populações locais têm denunciado a redução das vazões dos rios, como no caso do município de Correntina (BA), onde milhares foram às ruas, em 2017, denunciar o uso excessivo de água pelo agronegócio.

Em 2018, moradores chegaram a tentar impedir a instalação de dragas em rios realizada por fazendeiros.

Na avaliação da coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) Isabel Azevedo, que trabalha apoiando comunidades tradicionais do Matopiba, as outorgas para uso de água e as autorizações para supressão da vegetação na região são fornecidas sem controle adequado.

“Está muito irregular esse sistema. O governo federal não está monitorando nada, está tudo por conta dos estados, é cada um por si e as secretarias ambientais são cooptadas pelo agronegócio”, denunciou.

MMA

Em audiência pública no Senado no final de agosto, a ministra do Meio Ambiente Marina Silva informou que a pasta está preparando um novo plano contra o desmatamento do Cerrado que deve ser colocado em consulta público neste mês de setembro. Ao mesmo tempo, Marina destacou que o plano não terá sucesso sem participação dos estados.

“Considerando que mais de 70% dos desmatamentos que estão acontecendo no Cerrado têm a licença para desmatar, o que nós vamos precisar é, digamos, revisitar essas licenças para saber o nível de legalidade delas”, afirmou a ministra.

Nossa reportagem procurou a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), enquanto representantes do agronegócio, para comentar o desmatamento do bioma, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.

Maiana Diniz – Abr

Povos tradicionais resistem à expansão da agricultura no Cerrado

Os povos tradicionais do Cerrado são formados por comunidades herdeiras dos “saberes ancestrais e tradicionais que guiam, há inúmeras gerações, o manejo das matas e paisagens, que fazem dessa rica savana uma das regiões mais biodiversas do mundo”. O conceito foi elaborado pelos organizadores do livro Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade.

São esses povos que enfrentam, diariamente, os danos mais imediatos do desmatamento e da redução da vazão dos rios que têm afetado a savana brasileira.

Os povos do Cerrado são formados por indígenas do tronco Jê (Xerente, Xakriabá e Xavante), do tronco Tupi-Guarani (como os Guarani e Kaiowá), por quilombolas (como os kalungas, jalapoeiros e os mesquitas) e comunidades tradicionais como as quebradeiras de coco-babaçu, raizeiras, além de pescadoras artesanais, pantaneiras, entre outras populações de base camponesa.

No sudoeste do Piauí, uma das áreas mais recentes da expansão da fronteira agrícola no Cerrado, as 78 famílias indígenas da etnia Akroá-Gamela que vivem no território Laranjeiras têm denunciado o avanço da soja sobre terras que consideram originariamente como sendo do povo Akró-Gamela.

“Os conflitos por terra têm aumentado com ameaças por parte do agronegócio, invasões, intimidações e violações de direitos humanos”, denunciou José Wylk Brauna da Silva, de 30 anos. A liderança da Associação dos Povos Indígenas de Laranjeiras diz que eles têm lutado pela demarcação do território.

“Quando eu era criança, nosso povo vivia em harmonia. A gente tinha espaço para viver, plantar, colher e beber”, destacou José Wylk.

“Nos últimos anos, há uma drástica mudança. O desmatamento e o uso excessivo de agrotóxicos contaminam a água e influenciam no clima”.

Wylk acrescentou que, apesar das denúncias feitas ao Poder Público, as respostas são insuficientes. “A gente exige que o Estado vire de frente para a gente e passe a atuar também para expandir as políticas públicas na região”, concluiu.

Quilombo Mesquita  

A luta do povo Akró-Gamela no Piauí é semelhante à do povo do Quilombo de Mesquita, no município de Cidade Ocidental (GO), na região do entorno do Distrito Federal (DF).

A comunidade, já reconhecida como quilombo pela Fundação Cultural Palmares, tem cerca de três mil pessoas, com mais de 250 anos de existência, e tenta conseguir a titulação de 4,2 mil hectares.

Em entrevista recente à TV Brasil, a liderança José Roberto Teixeira Braga denunciou o avanço do desmatamento no quilombo, principalmente por fazendeiros de soja. “Tem muito invasor desmatando e nós não gosta que desmatem. Os bichos estão tudo desesperado entrando na casa do povo porque estão acabando com o Cerrado tudo”, contou Braga, que acrescentou que tem recebido ameaças de morte.

Correntina

O município de Correntina (BA), no extremo oeste baiano, virou notícia internacional em 2017, quando milhares foram às ruas denunciar o uso excessivo da água pelas fazendas, que estariam reduzindo a vazão dos rios usados pelas comunidades tradicionais.

O líder da Associação Comunitária dos Pequenos Criadores do Fecho de Gado Bravo, Jamilton Santos de Magalhães, conhecido como Carreirinha, avaliou que o protesto não teve muito efeito e que as outorgas para o uso da água continuaram.

“O Estado se posicionou, a meu ver, conivente com o que aconteceu e está acontecendo agora, liberando as outorgas novamente. Continua com a mesma prática”, denunciou o agricultor que vive em uma comunidade há cerca de 20 quilômetros (km) do centro do município. Na comunidade, cria-se gado e planta-se feijão, milho, mandioca, entre outras culturas.

Carreirinha destacou que o pai dele já lutava pela terra contra a expansão do agronegócio na região e que ele continua essa luta: “muitos perderam os territórios, mas a gente continua resistindo”, afirmou.

“Não é só pela terra que lutamos, é pela água e pelo Cerrado porque nessas áreas que a gente luta para defender o território são as únicas áreas que restam de Cerrado em pé e, por sinal, são as únicas que ainda têm nascentes vivas”, explicou.

Comunidades dissolvidas

O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) atua apoiando os povos do Cerrado que enfrentam a expansão da agropecuária sobre os seus territórios tradicionais há pelo menos 30 anos. A coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do ISPN Isabel Figueiredo afirmou que a expansão do agronegócio se dá de forma irregular, sem respeitar as terras dos povos tradicionais.

“Existe um modus operandi do agronegócio de lançar mãos de fraudes no sistema cartorial que acabam por ocupar territórios de povos tradicionais”, destacou.

“É um processo institucionalizado com pouquíssimo controle do Estado e que lança mão de muita violência por meio da presença das milícias rurais. As milícias passam a ocupar as comunidades e a comprar casas no meio da comunidade. Isso vai gerando uma sensação de insegurança e medo e algumas comunidades acabam se dissolvendo” relatou Isabel.


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