04/05/2024 - Edição 540

Ecologia

Aquecimento global e descaso impulsionam dengue no Brasil

Quanto mais calor no planeta, mais a dengue dispara, diz agência da ONU

Publicado em 22/02/2024 1:21 - Gustavo Basso (DW), Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

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Resistindo às dores no quadril e coceira pelo corpo, o aposentado Aramis de Lima, de 62 anos, assiste com alívio a um batalhão de funcionários da limpeza pública retirarem cerca de duas toneladas de lixo e entulho do terreno vizinho a sua casa. Ele acredita que, se tivessem vindo duas semanas antes, já em meio à rápida expansão da dengue, teria escapado de sua primeira contaminação pela doença.

“Aqui na rua, 90% dos moradores pegou, certamente por causa desse lixo que estava acumulado”, acredita. “Minhas netas tiveram sintomas que provavelmente foram de dengue, mas eu tenho histórico de amputação, dores em decorrência disso, aí juntou com a doença e resultou em dores muito fortes, espasmos musculares. Foi complicado”, conta. Como sequela temporária, comum para a doença, ficaram as coceiras pelo corpo.

Pelas ruas da Vila Jaguara, na zona oeste de São Paulo, não faltam áreas e terrenos que sejam alvos da indignação de Lima e seus vizinhos. Numa área de pouco mais de dois quilômetros quadrados, equipes de saúde mapearam ao menos seis ferro-velhos e focos de acúmulo de lixo e entulho perfeitos para a procriação do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, do zika vírus e da chikungunya.

Paralelamente, 7.369 imóveis receberam intervenções com inseticida ou assistência social para evitar os focos do mosquito entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano.

Os esforços, porém, não tiveram sucesso e não impediram a Vila Jaguara de deter o título de epicentro da dengue no município de São Paulo. Por lá, a taxa de contaminação é 28 vezes maior que a média paulistana. No Brasil, perde apenas para o Distrito Federal, onde cerca de 2,5% da população contraiu o vírus da dengue nos últimos meses.

Estufa de mosquito

Em condições normais de temperatura e chuva, o ciclo de vida do Aedes aegypti, da colocação dos ovos até a formação do mosquito, é de sete a dez dias, explica o coordenador de vigilância em saúde da capital paulista, Luiz Artur Caldeira.

“Se a condição for, por exemplo, de muito calor intenso, esse período pode baixar para até quatro dias, dobrando assim o número de mosquitos em relação ao ciclo normal”, alerta. “Isso é algo que vem ocorrendo em boa parte do país desde pelo menos setembro do ano passado, muito por conta do El Niño”, afirma, referindo-se ao fenômeno caracterizado pelo aquecimento anormal e persistente da superfície do Oceano Pacífico na região da Linha do Equador.

Especialistas vem alertando que os fenômenos climáticos extremos de 2023 são fruto direto do aquecimento global provocado pela ação humana. No entendimento do epidemiologista e professor da USP Paulo Lotufo, o que a atual epidemia de dengue ilustra é a extensão dos impactos que as mudanças climáticas gerarão sobre as populações humanas.

“Quanto maior for o aquecimento do planeta, mais o mosquito vai conseguir se reproduzir. Tanto é assim que ele já está chegando a lugares onde há muito tempo não estava, como Estados Unidos e Argentina. Até bem pouco tempo seria inimaginável fazer fumigação às margens do rio Sena, em Paris, para eliminação do Aedes“, explica.

Com o calor dos últimos meses, os brasileiros vêm sentindo na própria saúde essa explosão da proliferação dos mosquitos. Em todo o país, o número de casos confirmados ou sob suspeita de dengue já passa de 653 mil — ou um infectado a cada 347 mil brasileiros. No mesmo período de 2023, o número de casos não chegava a 130 mil. Trata-se de um aumento de 294% de um ano para o outro, e que já provocou 113 mortes, enquanto 438 estão sendo investigadas.

Pelos dados do Ministério da Saúde, o avanço da dengue nunca foi tão rápido no Brasil, e o país pode chegar a 4,2 milhões de casos até o fim do ano.

“A taxa de letalidade da população como um todo varia de 3 a 7 por mil, ou seja, 0,3% a 0,7%. Quando eu falo que a taxa de letalidade da dengue é de cerca de 1%, o pessoal fala ‘puxa, é pouco’, mas não é! É o dobro do que é esperado sem a doença”, ressalta Lotufo.

Imunização lenta

De todas as unidades da federação, o Distrito Federal apresenta o cenário mais complicado. Até 10 de fevereiro, data do último boletim epidemiológico, haviam sido registrados 23 óbitos pela doença em meio ao surto, que do ano passado para este explodiu em mais de 1.000%, atingindo quase todas as regiões com gravidade. Na capital do país, quase metade das mortes por dengue é de pessoas com mais de 60 anos.

Apesar da estimativa de que 70% da população da Vila Jaguara, em São Paulo, esteja nesse grupo, nenhuma morte foi registrada por dengue neste ano no bairro. O que não impede, entretanto, que moradores mais velhos temam a doença.

“Moro há 60 anos aqui e nunca vi nada parecido. Até mesmo minha filha e meus netos têm deixado de me visitar nas últimas semanas por medo desse surto provocado pelo lixo espalhado. Esperamos que agora melhore, mas o repelente está sempre na mão, não desgrudamos dele”, conta a aposentada Nanci Albanez, que diz aguardar ansiosa pela vacina, que não tem prazo para chegar à maior cidade do país.

Por conta de limitações na produção da farmacêutica japonesa Takeda Pharma, o Ministério da Saúde adquiriu para este ano o suficiente para imunizar 2,5 milhões de pessoas com a vacina Qdenga. Por conta disso, apenas 10% de todos os municípios do país serão contemplados este ano, 11 deles em São Paulo, onde a vacinação começa nesta terça-feira (20/02), com crianças entre 10 e 11 anos na região do Alto Tietê.

A partir de 2025, entrará em campo ainda a vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan, que ao contrário da japonesa, exige aplicação única. O epidemiologista Paulo Lotufo, porém, enfatiza que a vacina é um auxiliar e que, agora e no futuro, o fundamental é reduzir o contato da população com o mosquito.

Quanto mais calor no planeta, mais a dengue dispara, diz agência da ONU

A onda de dengue no Brasil e no restante do mundo pode piorar nos próximos anos, impactada pelas mudanças climáticas. O alerta é do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC) que, nos últimos anos, constatou a relação entre as temperaturas no planeta e a expansão geográfica da doença.

O órgão da ONU, em seu informe de 2022, foi contundente: se nada for feito para frear a transformação climática, 5 bilhões de pessoas a mais estarão vivendo em regiões do mundo onde poderão estar suscetíveis à doença. Hoje, ela é presente em áreas onde habitam 3 bilhões de pessoas.

Ainda que a população mundial em crescimento tenha um impacto nessa previsão, o principal fator é a expansão das condições propícias para a sobrevivência do vetor da dengue, o mosquito Aedes aegypt.

Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde), afirmou nesta quarta-feira (7) no Brasil que o surto de dengue era um fenômeno global e que o problema, em 2023, havia atingido números significativos.

Mas, para o IPCC, o cenário pode ficar ainda mais grave. “Espera-se que as mudanças climáticas aumentem o risco de dengue e facilite sua disseminação global, com o risco sendo maior em cenários de altas emissões” aponta o informe de mais de 3.000 páginas.

“O risco de dengue aumentará com estações mais longas e uma distribuição geográfica mais ampla na Ásia, Europa, América Central e do Sul e África Subsaariana, podendo colocar bilhões de pessoas adicionais em risco até o final do século”, afirma o IPCC, apontando como o Aedes aegypti se deslocará para altitudes mais elevadas, aumentando as populações em risco.

“A exposição futura ao risco será influenciada pelos efeitos combinados da mudança climática e de fatores não climáticos, como a densidade populacional e o desenvolvimento econômico”, destaca o texto, citando dezenas de estudos.

De um modo geral, espera-se que os níveis de risco aumentem em todos os continentes.

Em comparação com 2015, projeta-se que 1 bilhão de pessoas a mais estarão em risco de exposição à dengue até 2080, em um cenário mais positivo. Esse número sobe para 2,2 bilhões em um cenário intermediário. E, no pior dos cenários, 5 bilhões de pessoas extras seriam afetadas.

O impacto seria sentido em todas as regiões:

Na América Central e do Sul, o potencial de reprodução para a transmissão da dengue aumentou entre 17% e 80% no período de 1950-1954 a 2016-2021, como resultado de mudanças na temperatura e na precipitação.

Prevê-se que os casos de dengue aumentem nos cenários de aquecimento de 1,5°C e 3,7°C até 2050 e 2100, com aumentos que variam de 28,9 mil a 88,8 mil no Peru, 34,6 mil a 110 mil no Equador e 97,4 mil a 317 mil na Colômbia.

Na América do Norte, projeta-se que o risco se expanda no centro-norte do México, com a incidência anual de dengue no México aumentando em até 40% até 2080, e se expanda dos estados do sul dos EUA para as regiões do meio-oeste.

Na China, a exposição à dengue aumentaria de 168 milhões de pessoas em 142 condados para 490 milhões de pessoas em 456 condados até o final do século 21.

No Nepal, espera-se que a dengue se expanda ao longo das décadas de 2050 e 2070.

Na Tanzânia, quase todas as regiões serão afetadas até 2050.

A incidência de dengue aumentará para 16 mil casos por ano até 2100 em Dhaka, Bangladesh. Isso representaria um aumento na incidência de mais de quarenta vezes em comparação com 2010.

Em comparação com os números médios de 1997 a 2012, o número anual de dias adequados para a transmissão da dengue nas décadas de 2020, 2050 e 2080 aumentará em 15, 25 e 40 dias, respectivamente. Além disso, as áreas em que ocorrem epidemias de dengue durante todo o ano provavelmente aumentarão em 4.500, 8.800 e 20.700 km² nas décadas de 2020, 2050 e 2080.

De acordo com o IPCC, a “duração e a taxa de sobrevivência do desenvolvimento do mosquito da dengue, a densidade do mosquito, a atividade de picada do mosquito, o alcance e a distribuição espaço-temporal do mosquito e a distância de voo do mosquito são todos afetados pela temperatura.

“A temperatura, a precipitação, a umidade e a pressão do ar são os principais fatores climáticos associados à transmissão da dengue”, constata.

Colonizando novas áreas

Segundo os especialistas do IPCC, a dengue não é a única a potencialmente migrar para novas regiões do mundo.

A mudança climática está possibilitando que muitas doenças colonizem áreas historicamente mais frias que estão se tornando mais quentes e úmidas.

Um dos exemplos citados é o dos carrapatos que carregam o vírus que causa a encefalite e que se mudaram para as regiões subárticas do norte da Ásia e da Europa. “Vírus como o da dengue, chikungunya e encefalite japonesa estão surgindo no Nepal, em áreas montanhosas e de colinas. Novos surtos de envenenamento por frutos do mar causados pela bactéria Vibrio estão sendo rastreados até os Estados Bálticos e o Alasca, onde nunca foram documentados antes”, aponta.

“As mudanças climáticas também podem ter efeitos complicados, combinados e contraditórios sobre patógenos e vetores”, afirma.

“O aumento da precipitação cria mais habitat para os mosquitos que transmitem doenças como a malária, mas o excesso de chuva leva à destruição desse habitat”, aponta. Mas a diminuição das chuvas também aumenta o risco de doenças quando as pessoas sem acesso confiável à água usam recipientes para armazenar água, onde os mosquitos, como os vetores da dengue Aedes aegypti, depositam seus ovos.

“As temperaturas mais altas também aumentam a taxa de picadas de mosquito, o desenvolvimento de parasitas e a replicação viral”, alerta o IPCC.

Nada disso é novo. Segundo os especialistas, desde 1950, “o ônus global da dengue cresceu e pode ser atribuído a uma combinação de expansão associada ao clima na área geográfica das espécies de vetores e a fatores não climáticos, como tráfego aéreo globalizado, urbanização e medidas ineficazes de redução de vetores”.

“As variáveis de temperatura, umidade relativa e precipitação pluviométrica estão associadas de forma significativa e positiva ao aumento da incidência de casos de dengue e/ou às taxas de transmissão em todo o mundo, inclusive no Vietnã, Índia, Indonésia, Filipinas, EUA ou Jordânia”, completa.


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