08/05/2024 - Edição 540

Comportamento

Com 72 projetos de lei que limitam aborto, Brasil será questionado na ONU

Estudo aponta que negras são mais vulneráveis ao aborto no Brasil

Publicado em 27/09/2023 11:38 - Jamil Chade (UOL), Ana Cristina Campos (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação TV Brasil

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A situação do aborto será alvo de uma cobrança por parte da ONU que, nesta quinta-feira e sexta-feira, realiza uma sabatina com o Brasil por conta de direitos econômicos e sociais no país. A reunião ocorre em Genebra e terá a presença de uma ampla delegação brasileira.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) informou que 18 peritos internacionais irão avaliar o cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

“A delegação brasileira será chefiada pela secretária-executiva da pasta, Rita Oliveira, que redirecionará os posicionamentos da atual gestão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania a respeito do relatório entregue no governo anterior e apresentará as políticas em curso atualmente no Brasil sobre a temática”, explicou o governo.

Se os informes deixam claro que diversos aspectos serão tratados nas seis horas de debates, um deles é a situação do aborto no Brasil, onde 72 projetos de lei tramitam no Congresso apontando para a ampliação de restrições contra essa prática e dificultando qualquer ação por parte de mulheres.

Num documento enviado pelo Comitê de Direitos Econômicos e Sociais da ONU ao governo brasileiro, fica claro que a entidade cobrará respostas sobre o tema. Os peritos pedem que o estado:

Informe o comitê sobre o progresso feito para liberalizar a lei restritiva do aborto do Estado Parte, que atualmente criminaliza as mulheres que se submetem a abortos.

Descreva os obstáculos para a obtenção do acesso universal à assistência à saúde sexual e reprodutiva e à assistência à saúde materna de qualidade no Estado Parte.

Numa resposta ainda enviada no ano passado pelo governo de Jair Bolsonaro, o Brasil indicou que o Pacto Internacional não faz referência a um eventual “direito” ao aborto. “Pelo contrário, o Artigo 10 protege expressamente a família: “A mais ampla proteção e assistência possíveis devem ser concedidas à família, que é a unidade grupal natural e fundamental da sociedade”.

Em sua resposta, o governo Bolsonaro indicou que “o Brasil defende a vida incondicionalmente desde a concepção”. “Mesmo levando isso em conta, o Estado brasileiro respeita integralmente as disposições legais que permitem a realização de abortos em situações extremamente específicas”, disse.

O governo anterior ainda apontou que “o aborto não é punido, quando praticado por médicos, nos casos em que a gravidez põe em risco a vida da mulher, quando é resultado de estupro, e em caso de anencefalia, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, demonstrando, assim, que o arcabouço jurídico brasileiro prescreve normas que visam dar maior proteção à vida, inclusive à vida intrauterina”.

Ativistas contestam versão do governo Bolsonaro

O posicionamento do governo levou a sociedade civil a reagir. Mais de uma dezena de informes paralelos foram enviados para a ONU por ativistas e ONGs nos últimos meses, subsidiando os peritos com outras versões sobre a realidade do país.

De acordo com documentos enviados ao Comitê pela entidade Human Rights Watch, de 2018 a 2022, os tribunais brasileiros julgaram uma média de 400 casos criminais de aborto por ano. Os dados são do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito de Columbia.

“As mulheres negras têm maior probabilidade de serem processadas, o que geralmente acontece depois que os profissionais de saúde as denunciam por suspeita de aborto, violando seu direito à privacidade”, diz.

O documento também informa que o Brasil teve o maior número de casos de estupro registrados em sua história em 2022: 74.930, de acordo com um relatório recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em mais de 60% dos casos, a sobrevivente tinha menos de 14 anos de idade.

Embora as grávidas sobreviventes de estupro tenham direito ao aborto legal, o acesso a ele pode ser quase impossível.

Trecho de documento enviado pela HRW para peritos da ONU

Segundo a entidade, o governo Bolsonaro “tentou restringir ainda mais o acesso a abortos, emitindo uma regulamentação em 2020 que exigia que a equipe médica denunciasse à polícia qualquer pessoa que buscasse aborto após estupro, sem o consentimento da sobrevivente e mesmo que ela não desejasse denunciar a agressão”.

O governo Lula revogou a norma em janeiro de 2023. Mas apenas 73 hospitais em um país com mais de 203 milhões de pessoas realizaram abortos legais, informou a organização Artigo 19 em setembro de 2022. “A falta de acesso a unidades de saúde que realizam abortos legais, gratuitos e seguros e a negação do acesso ao aborto legal em unidades de saúde se somam a barreiras como o estigma e o medo de processos que podem violar os direitos humanos de mulheres e outras pessoas grávidas”, alerta.

“Esses fatores também podem impedi-las de procurar atendimento quando sofrem emergências obstétricas ou complicações decorrentes de abortos autogeridos ou abortos espontâneos. Entre 2016 e 2020, pelo menos 300 mulheres morreram de complicações relacionadas ao aborto, de acordo com a Gênero e Número”, destacou.

Diante dessa situação, a Human Rights Watch recomendou que o Comitê pergunte ao governo do Brasil:

– Como o governo está garantindo que todas as pessoas com direito legal ao aborto possam ter acesso a um aborto seguro e legal?

– Que medidas o governo está tomando para reduzir a morbidade e a mortalidade devido ao aborto inseguro e para combater o estigma em torno do aborto?

– A Human Rights Watch ainda pediu que o Comitê solicite ao governo do Brasil que:

– Descriminalize o aborto e garanta que ele seja seguro, legal e acessível a todos.

– Garanta o acesso à assistência pós-aborto sem discriminação, maus-tratos ou medo de processos, inclusive em casos de aborto autoadministrado.

– Fornecer educação sexual abrangente em todas as escolas, incluindo um enfoque na desestigmatização do aborto.

Num outro documento entregue para a ONU, a GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra – destacou que “mulheres com melhores condições socioeconômicas buscam recursos técnicos para um aborto seguro, enquanto mulheres negras e pobres buscam soluções inseguras e acabam com complicações, sofrimento e mortes”.

Para a entidade, o estado brasileiro viola artigos do Programa de Ação de Durban e pede que essa situação seja corrigida.

Projetos de Lei no sentido contrário às normas internacionais

Em outro documento recebido pelos peritos, a entidade Conectas alertou que existem 72 projetos de lei tramitando no Congresso que poderiam ampliar as restrições ao aborto.

Uma delas é o Projeto de Lei no. 434/2021, denominado Estatuto do Nascituro, que propõe a proteção integral do “nascituro”. Na prática, segundo o documento, a iniciativa “sugere que nunca será admissível causar diretamente a morte do nascituro, mesmo que um de seus genitores tenha cometido violência sexual, pois “o nascituro concebido a partir de um ato de violência sexual tem os mesmos direitos de todos os demais nascituros”.

“Esse projeto de lei é um imenso ataque aos direitos das mulheres e representa um retrocesso em termos de saúde reprodutiva”, alerta a entidade.

“O Projeto de Lei também ignora as recomendações da ONU sobre direitos sexuais e reprodutivos, bem como os direitos à dignidade, liberdade e autodeterminação das mulheres como parte crucial da luta pela igualdade de gênero”, destaca.

A Conectas também aponta como, num guia ainda apresentado em 2022, o governo Bolsonaro declarou que “não existem abortos legais no Brasil” e que “todo aborto é crime”.

O grupo ainda denuncia a ex-ministra e hoje senadora Damares Alves. No documento entregue para a ONU, a entidade destaca que ela “fez várias declarações contra o aborto legal e, em 2020, envolveu-se diretamente no caso de uma menina de 10 anos que deveria se submeter ao procedimento após ter sido agredida sexualmente por um tio”.

“Alves e sua equipe tentaram transferir a criança para outro hospital, pressionaram e intimidaram os profissionais de saúde responsáveis pela realização do procedimento e chegaram a revelar publicamente os dados pessoais da criança e o endereço onde a gravidez seria interrompida para impedir a realização do procedimento”, declarou.

Fernando Frazão – Abr

Estudo aponta que negras são mais vulneráveis ao aborto no Brasil

Mulheres negras apresentam probabilidade 46% maior de fazer um aborto, em todas as idades, em relação às mulheres brancas. Isso significa que para cada 10 mulheres brancas que fizerem aborto, haverá 15 mulheres negras na mesma situação.

Esses dados estão presentes em um estudo recente publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Trata-se de uma análise com perspectiva de raça da Pesquisa Nacional de Aborto, realizada nos anos de 2016, 2019 e 2021. Quando observadas detalhadamente, as desigualdades raciais são consistentes no tempo: têm a mesma direção em todas as edições da pesquisa, em todas as combinações possíveis, e se mantêm quando se usam diferentes métodos.

“O problema fundamental é que o aborto é tratado como um crime. A criminalização restringe o acesso das mulheres ao sistema de saúde antes do aborto, pois não é disponível, e depois do aborto, por medo de denúncias e represálias. Não é fácil imaginar qualquer outra proibição que tenha a mesma magnitude na restrição do direito à saúde da população brasileira”, explicam os autores do estudo.

No último dia 22, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, adiantou seu voto para a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que prevê a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O voto da ministra foi favorável e reconhece o aborto como uma questão de saúde pública e reprodutiva da mulher.

Atualmente, o aborto só é permitido no Brasil em três condições: em caso de estupro, de risco para a vida da gestante e de fetos anencéfalos. Em todos os outros casos, o aborto é ilegal.

A pesquisa indica que a estimativa para o período 2016 a 2021 é de que, aos 40 anos de idade, uma em cada cinco mulheres negras e uma em cada sete mulheres brancas terá feito um aborto. Com o título Aborto e raça no Brasil, 2016 a 2021, o artigo reforça que a criminalização restringe o acesso das mulheres ao sistema de saúde antes do aborto, pois não é disponível e, depois do aborto, por medo de denúncias e represálias.

“Existem desigualdades raciais em todas as edições da Pesquisa Nacional de Aborto. São sempre as mulheres negras que mais realizam abortos. São sempre as mulheres negras as mais vulneráveis ao aborto e consequentemente ao aborto inseguro. Então, esse resultado vai se somar a outras pesquisas sobre as desigualdades raciais nos direitos reprodutivos, pois as mulheres pretas e pardas são as que mais morrem com procedimentos inseguros. Esse é um debate importante que aponta para a necessidade da descriminalização”, avalia Emanuelle Góes., coautora do artigo e pesquisadora associada do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia).

Também assinam o artigo pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Columbia (EUA).

De acordo com os pesquisadores do estudo, a criminalização tem três implicações. Primeiro, impede que as mulheres acessem os serviços de saúde público e privados para realizar aborto e, por isso, faz com que as mulheres usem métodos inseguros para abortar, o que as expõem a riscos importantes e desnecessários, pois os métodos de aborto recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) são simples e seguros.

Em segundo lugar, as complicações do aborto inseguro não recebem tratamento, pois as mulheres temem denúncias. De acordo com o artigo, a criminalização faz com que um volume imenso de mulheres evite exercer seus direitos de tratamento independentemente das causas do problema de saúde por medo de represálias.

Por fim, impede a prevenção do aborto. “Por um lado, a criminalização impede a discussão do tema nos ambientes adequados. Discutir aborto pode ser visto como apologia ao crime e só isso basta para conter discussões positivas que resultariam em prevenção. Por outro lado, a criminalização não permite que o sistema de saúde dê atenção adequada às mulheres de modo a evitar o aborto de repetição”, diz a Fiocruz.


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