05/12/2023 - Edição 525

Re-existir na diferença

Tarau Paru Sem Fronteiras

Saúde Indígena na Fronteira Brasil – Venezuela

Publicado em 03/09/2022 9:19 - Herbert Tadeu Pereira de Matos Junior e João Paulo Lima Barreto

Divulgação UNICEF/BRZ/Tomás Tancredi

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A formação do atual território brasileiro nos remonta inicialmente ao século XIV, relacionada ao início do período conhecido como das grandes navegações, quando algumas monarquias europeias, sobretudo, as ibéricas, iniciaram um processo de invasão e ocupação de diversos territórios fora do continente europeu. Algum tempo depois, a partir da assinatura do tratado de Madri de 1750, estabeleceu-se uma primeira separação entre terras de Portugal e Espanha também no Continente América (local batizado em homenagem às descrições de Américo Vespúcio, do que chamou de Terra Nova).

Já no século XIX, a fronteira entre Brasil e Venezuela foi delimitada pela assinatura do Tratado de Limites e Navegação Fluvial de 5 de maio de 1859, depois ratificada por meio do Protocolo de 1928. Assim, os trabalhos de caracterização e implantação dos 2.682 marcos de fronteira estiveram a cargo da então Comissão Mista Venezuela-Brasileira Demarcadora de Limites. Esta área de fronteira tem extensão total de 2.199,0 km, sendo 2.109,0 km delimitada pelas bacias hidrográficas dos rios da região, e outros 90,0 km em linhas convencionais demarcadas entre cadeias de montanhas. Esta fronteira geográfica criada começa no ponto triplo entre o Brasil-Colômbia-Venezuela na Rocha Cucuí, continua até o topo de uma montanha chamada Cerro Cupi. Em seguida, segue a divisa de drenagem entre as bacias do Rio Orinoco e Amazonas até a tríplice fronteira Brasil-Guiana-Venezuela no Monte Roraima, seguida da cadeia de Parima, Auari, Urutanim e Pacaraima (Estado de Roraima).

Roraima é o Estado proporcionalmente com maior população indígena no país. Atualmente, são 631 comunidades, sendo 342 no Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI-Leste (aprox. 53 mil pessoas) e 289 no DSEI-Yanomami (aprox. 17 mil pessoas), e residentes na Cidade de Boa Vista (aprox. 30 mil pessoas), somando uma população total aproximada de mais 100 mil indígenas neste Estado. Já estão hoje demarcadas e homologadas como terras indígenas da União mais de 46% do território do Estado de Roraima (ISA, 2021).

Ao Norte do Estado de Roraima está localizada a Terra Indígena (TI) São Marcos, na região limítrofe de fronteira Brasil – Venezuela – Guiana Inglesa, onde vivem aprox. 6,5 mil pessoas dos povos indígenas Macuxi, Taurepang e Wapichana. O povo indígena Taurepang habita tradicionalmente a porção norte da região de campos e serras do Estado de Roraima (T.I São Marcos e Raposa Serra do Sol), área fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Guiana, tendo como vizinhos os Makuxi e Akawaio (no Brasil mais conhecidos como Ingarikó), de filiação lingüística Karíb, e os Wapixana, de filiação lingüística Aruák (ISA, 2021).

Na região limítrofe entre Brasil e Venezuela está localizado o Município de Paracarima, criado em 1995 no interior da TI São Marcos, sendo este o único caso no Brasil de um município estabelecido dentro dos limites de um território indígena. E distante em cerca de 7 km de Pacaraima, vivendo justamente sobre os limites da fronteira, está localizada a Comunidade Indígena Tarau Parú, onde vivem hoje cerca de 180 famílias indígenas Taurepang, que englobam pessoas indígenas brasileiras e venezuelanas.

Nos últimos dias, estivemos desenvolvendo um trabalho sobre cuidado à saúde e medicina indígena nesta referida comunidade de Tarau Parú, e tivemos oportunidade de conversar com as pessoas sobre o que consideram saúde, doença, tratamento e cuidado. Adotando como base uma noção de saúde ampliada, que assim considera as relações desta com o território e história de vida das pessoas, dos vários aprendizados que tivemos oportunidade, as conversas sobre a vida na fronteira e suas relações com a nacionalidade ganharam bastante destaque em nossos trabalhos nesta comunidade.

Segundo nos contaram, em um dia chegaram ali os militares que fariam a delimitação da fronteira Brasil e Venezuela. Ao reconhecer que a comunidade que vivia ali não entendia a necessidade desta divisão um jogo foi proposto. Foram fixadas duas bandeiras lado a lado, Brasil e Venezuela, e defronte formaram uma fila composta pelos membros da comunidade. A orientação foi dada, para que cada um escolhesse uma bandeira de preferência e em seguida saltassem para tentar alcançá-las. Aqueles que tocassem na bandeira do Império do Brasil seriam registrados como brasileiros, e aqueles que tocassem na bandeira da Venezuela, como venezuelanos. Ao que consta, fora uma brincadeira que promoveu muito alegria entre os presentes, mas que continuava sendo apenas isto, uma brincadeira dos não-indígenas, pois ali todos seguiam sendo Taurepang.

Hoje, em meio aos conflitos e sofrimentos gerados pela crise migratória na região estas questões tornam-se mais presentes no cotidiano de vida das pessoas na comunidade. Como nos foi relatado, a questão dos limites e nacionalidades ainda segue sendo uma questão um tanto quanto confusa dos não-indígenas, porém para a comunidade indígena de Tarau Parú essa é uma questão já há tempos resolvida. “Não entendo esta divisão de brasileiros e venezuelanos, aqui somos todos parentes, uns seguiram vivendo no lado de lá da fronteira e outros deste lado. Mas somos todos Taurepang”.

Referências

ISA, Instituto Socioambiental. Plataforma Povos Indígenas do Brasil. ISA, 2021. Disponível: www.isa.org.br

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Emerson Merhy, Túlio Franco, Ricardo Moebus e Cléo Lima


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Uma resposta para “Tarau Paru Sem Fronteiras”

  1. Herbert Tadeu Pereira de Matos disse:

    Brilhante exposição. Importante assinalar que a comunidade indígena, por seus laços naturais, não quer saber de demarcações artificiais entre países. O que importa são os vínculos ancestrais que os mantém inseridos no meio natural.

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