08/05/2024 - Edição 540

Eles em Nós

O dinheiro europeu não é limpinho

Clubes europeus estão assustados com a dinheirama do Golfo levando todos os seus melhores jogadores

Publicado em 04/09/2023 11:03 - Idelber Avelar

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Vou inverter a ordem das coisas e, antes de falar da Liga Saudita propriamente tal, falarei das reações dos europeus à Liga Saudita. Especialmente de alguns europeus e algumas reações.

Semana passada, Toni Kroos, mito de Bayern de Munique, Real Madrid e seleção alemã, que não tem mais onde enfiar dinheiro, se julgou no direito de ir ao mural de Gabri Veiga, jogador de 21 anos do Celta Vigo que aceitou proposta da Liga Saudita, e escrever “embarrassing” (vergonhoso). Eu acho essas atitudes uma graça.

O moleque que está prestes a virar milionário não precisa de defesa minha, claro, mas o episódio é instrutivo, porque já estamos completando a terceira década seguida em que os grandes da Europa basicamente levam todos os jogadores sul-americanos que querem levar, e isso sempre foi entendido como uma lei de mercado: se há valorização do produto, quem tem mais dinheiro leva.

No caso de alguns garotos, eles os levam aos 13, 14 anos de idade. Se viram jovens craques de seleção no Brasil ou na Argentina, a chance de que permaneçam jogando em seus países é próxima de 0%.

Agora, os europeus estão assustados com a dinheirama do Golfo levando todos os seus melhores jogadores! E nós, sul-americanos, batemos o olho na choradeira e pensamos: “oi, gente, onde é que vocês estiveram nos últimos trinta anos?”

Claro, o argumento de Kroos é que “vergonhoso” é ir jogar na Arábia Saudita, uma ditadura sanguinária em que as mulheres são cidadãs de segunda classe e LGBTs são criminosos. É diferente de um sul-americano ir jogar no Bayern ou no Liverpool.

O argumento é meritório, mas o problema é a realidade. O êxodo de jogadores sul-americanos para a Europa vem de bem antes de esta poder apresentar suas credenciais universalmente democráticas. Um dos êxodos mais significativos aconteceu nos anos 50/60, quando Di Stéfano, Didi e outros sul-americanos foram jogar na Espanha, em geral no Real Madrid, o clube beneficiado por uma das ditaduras mais sanguinárias do século XX, o falangismo cristão de Franco.

Mas aceitar o dinheiro do Real Madrid, juntado sobre os cadáveres de incontáveis republicanos espanhóis, isso sim, pode né, Toni Kroos? O dinheiro europeu é limpinho, né? Babaca.

Em suma: não é que eu não esteja preocupado com o efeito da dinheirama infinita saudita sobre o futebol. Estou, sim. Todo mundo está.

A questão é que começar a discutir o problema conferindo a certos dinheiros e a certos agentes, de certas partes do mundo, um monopólio sobre a virtude, como se a desigualdade estivesse sendo inventada agora, que os europeus estão do lado desprivilegiado dela, é o jeito errado de começar.

O jeito certo de começar eu não sei. Talvez seja possível tentar forçar na FIFA (doce ilusão!) um teto salarial global. Talvez com suficiente pressão isso possa funcionar. Não sei.

O que sei é que jogador bilionário do Real Madrid, alemão ainda por cima, fazendo discurso escroto para garotos de 21 anos que aceitaram uma oportunidade financeira, como se o bilionário tivesse monopólio sobre a virtude, como se ele nunca tivesse tocado nenhuma cédula com gotinha de sangue, é conto da carochinha demais para meu gosto.

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Idelber Avelar


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