08/05/2024 - Edição 540

True Colors

Não é sobre seus bons costumes

A defesa da diversidade sexual e de gênero é urgente para a democracia

Publicado em 16/08/2023 10:08 - Gustavo Miranda Coutinho

Divulgação Reprodução

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Apenas nos meses de maio de junho, alusivos respectivamente ao combate à LGBTIfobia e ao Orgulho, a sociedade presta atenção na luta de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos. Esquecidos nos outros meses do ano, a garantia de direitos humanos para a população LGBTI+ é fundamental para alcançarmos a democracia plena – e precisa superar barreiras históricas, como as omissões e o mero simbolismo.

A violência contra a nossa população segue em níveis alarmantes: o Dossiê de Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil, publicado anualmente pelo Grupo Acontece, registrou 273 mortes e violências de pessoas LGBT em 2022. Destas, 159 foram mortes violentas de travestis e transexuais, mais vulneráveis.

As violências contra nós são marcadas por crueldade e violência extrema, características próprias dos crimes de ódio. O acesso a bens e serviços como educação e trabalho continuam precários: a evasão escolar de estudantes LGBTI+ devido a homotransfobia é cotidiana, e grande maioria das pessoas trans não tem acesso ao mercado formal de trabalho.

Fomos alvos preferenciais do ódio estimulado pelo inominável. Tópico corriqueiro dos discursos presenciais que se ocupavam em defender a família tradicional como resposta aos problemas sociais, fomos também alijadas da política institucional.

Para nós, o desmonte das políticas públicas nos tornou invisíveis: o Ministério dos Direitos Humanos acrescentou “Mulher” e “Família” (patriarcal, sem dúvida) ao nome e ao modo de atuação; o antigo Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT) teve seu escopo modificado para abarcar toda a diversidade, e alterado na sua composição de modo a inviabilizar o controle da sociedade civil.

Conceitos como “proteção global” e “diversidade” eram frequentemente operados de forma abstrata para nos colocar no não-dito. Somada ao vírus do ódio, pandemia de covid-19 também acirrou as desigualdades sociais.

Ainda assim, resistimos bravamente e fomos peça importante na disputa cultural que levou a eleição do Presidente Lula em 2022.

No emblemático discurso de posse, o Ministro Sílvio Almeida destacou: existimos e somos valiosos. Tivemos ao longo deste ano sinalizações institucionais importantes, como a criação da já histórica Secretaria Nacional dos Direitos LGBTQIA+ e do Conselho Nacional LGBTQIA+.

No entanto, precisamos ainda superar entraves históricos aprofundados no deixados no governo anterior, como a falta de orçamento e a disputa cultural na própria institucionalidade.

As chamadas políticas sexuais sempre foram enquadradas como pautas de costumes, com forte apelo moral e uma afronta a construção hegemônica de família heteropatriarcal. Frequentemente compreendidas como objeto de uma mudança cultural nos moldes neoliberais, por vezes são abarcadas no discurso de defesa das liberdades individuais em detrimento de advogar pela garantia de direitos sociais coletivos.

Assim, ficamos à mercê de gestores públicos que decidem ou não adotar políticas de proteção à população LGBTI+ conforme conveniência da relação com suas bases.

No entanto, as políticas de promoção e defesa dos direitos LGBTI+ são fundamentais a democracia.

Ainda insuficiente, a proteção jurídica expressa dos direitos LGBTI+ no Brasil se deu muito mais tardiamente à garantia de direitos de pessoas negras e mulheres.

Fomos derrotados no pleito de proteção constitucional expressa nos debates da Constituinte de 1987-88 e deixados de fora do conceito jurídico de humanidade e dignidade. A Lei Caó, que define os crimes por preconceito de raça ou cor, foi sancionada pelo então presidente José Sarney em 1989, e a Lei Maria da Penha em 2006. O casamento igualitário foi garantido apenas em 2011, e a criminalização da violência baseada no ódio a orientação sexual e da identidade de gênero ocorreu tão somente em 2019 – sempre por decisões do Supremo Tribunal Federal.

Diante da fragilidade institucional, continuamos à mercê da vontade de governantes e sujeitos a um eventual desmonte de políticas públicas.

Precisamos garantir por instrumentos robustos uma política nacional intersetorial, com a adesão de todos os Estados e do Distrito Federal.

Precisamos de uma lei programática, que estabeleça a proteção integral de pessoas LGBTI+ a partir de previsão de mecanismos variados e complementares entre si para a superação da violência homotransfóbica baseada nas relações assimétricas de poder.

A gente não quer (só) delegacia e punição dos crimes de ódio. A gente quer comida, diversão, arte, trabalho, saúde e existir com dignidade. Em inteireza, e não pela metade.

Não é sobre a defesa dos seus bons costumes, do seu modelo de família e nem sobre o que fazemos em quatro paredes: a defesa da diversidade sexual e de gênero é sobre cidadania plena para todas as pessoas.

A democracia não chegará sem nós.

*Gustavo Miranda Coutinho é advogado, membro do GADvS – Grupo de Advogados Pela Diversidade Sexual e de Gênero, Coordenador da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexo para América Latina e Caribe (ILGALAC) e membro da RENAP-DF.

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Equipe Semana On

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