30/04/2024 - Edição 540

Agromundo

Deputados pecuaristas querem impedir pesquisas sobre ‘carne de laboratório’

Arroz bovino: solução sustentável para quem gosta de carne?

Publicado em 02/04/2024 12:10 - Daniel Haidar e Carlos Juliano Barros (Repórter Brasil), Fred Schwaller (DW) – Edição Semana On

Divulgação Filé de frango produzido em laboratório pela Embrapa: as chamadas “carnes cultivadas” são fabricadas o sem abate de animais (Foto: Lucas Scherer/Embrapa)

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“Bolsa-Carne” para a população de baixa renda e proteína suína obrigatória na merenda escolar: há anos o lobby dos pecuaristas tenta emplacar propostas como essas no Congresso Nacional para alavancar seus negócios.

Agora, além de patrocinar medidas para impulsionar a venda de bife, essa ala da bancada ruralista também atua para dificultar pesquisas científicas sobre as chamadas “carnes animais cultivadas”. A partir de técnicas de genética, elas são fabricadas em laboratório, sem a necessidade de criação e abate de rebanhos.

Filho e irmão de pecuarista, o deputado federal Tião Medeiros (PP-PR), ex-presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, apresentou no começo de março um projeto de decreto legislativo (PDL 27/2024) para anular uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que trata da “comprovação de segurança e a autorização de uso de novos alimentos e novos ingredientes”.

Publicada em dezembro, a resolução permite ao órgão federal analisar pedidos de produção e comercialização de proteína fabricada em laboratório. Segundo a justificativa do projeto de lei, “o ato normativo combatido com a presente proposição contribui para ampliar os riscos sanitários dos alimentos e, em razão disso, deve ser eliminado do ordenamento jurídico”.

Seis meses antes, Medeiros já havia apresentado outro PL (4616/2023) para proibir a “pesquisa privada, produção, reprodução, importação, exportação e comercialização de carne animal cultivada”. O texto sustenta que a “medida é necessária para proteger a indústria pecuária nacional”.

Apesar dos familiares envolvidos com o negócio da pecuária, Medeiros afirma não ter interesse pessoal em barrar a concorrência da carne de laboratório. “O objetivo do meu projeto é aprofundar o debate sobre o assunto para que tenhamos uma regulamentação que priorize a saúde humana. Mas estamos abertos ao diálogo”, sustenta.

‘Lobby da pecuária é muito poderoso’

Até o presente momento, as proposições contra a carne cultivada não avançaram para votação. Porém, as iniciativas levantam questionamentos sobre potenciais conflitos de interesses, já que parlamentares ligados à pecuária estariam legislando em causa própria, afirmam fontes ouvidas pela reportagem.

“Os lobbies da pecuária e da agricultura são muito poderosos. Mas não é só lobista que está atuando. Há deputados que são, eles próprios, pecuaristas”, explica a pesquisadora Daniela Canella, professora de nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

No caso do ainda inexistente mercado de proteínas animais cultivadas, o projeto de Medeiros tramita junto à proposta de outro deputado criador de boi: Lucio Mosquini (MDB-RO). Em novembro, ele apresentou o PL 5402/2023, para impor moratória técnica e científica à pesquisa e à produção de carne animal cultivada. Dois meses antes, ele havia protocolado proposta para ajudar pecuaristas, com a criação de uma linha emergencial de crédito rural.

Em entrevista à Repórter Brasil, Mosquini alegou que não enxerga conflito de interesses nos seus projetos porque possui apenas “um pouquinho de gado”, considerando o rebanho bovino total do país, oficialmente estimado em cerca de 234 milhões de animais.

“Devo ter 600 ou 700 cabeças de gado. Então, jamais pode-se falar de conflito de interesse para quem tem um pouquinho de gado como eu”, argumenta Mosquini. “Meu projeto tem cunho personalístico, sim. Pelo fato de ser produtor rural, eu tenho que realmente defender os conceitos que prego. Se eu fosse um artista ou músico, estava lutando pela cultura. Entendo que temos que repensar o avanço de tudo que não for natural, não só na carne sintética”, complementa o deputado.

Outros países também tentaram barrar carne cultivada

A investida legislativa contra a carne de laboratório não ocorre só no Brasil. Na Itália e no Paraguai, parlamentares também aprovaram medidas para proibir a produção e a venda de carnes cultivadas, com discursos em defesa da pecuária tradicional.

Só em Singapura e em Israel esse tipo de produto já é comercializado para consumo, de acordo com o Good Food Institute (GFI). A organização promove a pesquisa de bifes cultivados em laboratório e de outras alternativas ao abate de animais, como proteínas baseadas em vegetais e produtos fermentados.

Com o avanço de investimentos do mercado privado e a necessidade de combater o desmatamento e as emissões de metano do gado, Alexandre Cabral, vice-presidente de políticas públicas do GFI, avalia que o principal desafio da carne cultivada no momento é o de “engenharia”: reduzir os custos de produção para ganhar escala.

Cabral também avalia que o PL de Medeiros viola a Constituição Federal. “O artigo 218 diz que o Estado promoverá o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica”, argumenta.

‘Preocupação é falta de informação’

A primeira tentativa de produção de carne cultivada no Brasil teve início em 2021, por meio de uma parceria da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade de São Paulo (USP).

O projeto ganhou financiamento de quase R$ 1 milhão de um edital aberto pelo GFI. Os pesquisadores começaram o protótipo com o cultivo de células extraídas de frangos, misturadas a carboidratos e minerais. A expectativa é de que a pesquisa seja concluída ainda neste ano, com a finalização de laudos nutricionais e toxicológicos.

“O Brasil tem que estudar. Somos o maior exportador mundial de frango. Por que não exportar também um ingrediente ou produto final cultivado?”, questiona a pesquisadora-chefe do projeto, Vivian Feddern, da Embrapa Aves e Suínos. “Não tem o menor sentido a preocupação de pecuaristas. É totalmente falta de informação”, acrescenta.

A especialista avalia que a eventual viabilidade comercial da carne cultivada dependerá não só do barateamento do custo de produção, mas também da funcionalidade nutricional. “A análise toxicológica e nutricional vai mostrar quanto de proteína tem. Se tiver pouco, ninguém vai querer comer, a não ser por questão ambiental”, afirma.

A pesquisadora da Embrapa é otimista ao falar das potenciais qualidades da carne de laboratório. “É um alimento que pode ser personalizado. Se você estiver com deficiência de ferro, pode pedir carne cultivada com [mais] ferro”, explica.

Ainda segundo ela, o produto elimina as doenças zoonóticas, transmitidas por animais. “Na vida real, planta de frigorífico tem contaminação de salmonela, gripe aviária, etc. Na carne cultivada, não se cultiva intestino e sangue”, complementa.

A carne cultivada mobiliza também investimentos milionários de gigantes do mercado de proteína animal. Líder mundial do segmento, a JBS anunciou aporte superior a R$ 300 milhões para construir seu primeiro centro de pesquisa de proteínas cultivadas, no Sapiens Parque, em Florianópolis (SC).

Carne cultivada é um ultraprocessado?

Mas os produtos cultivados em laboratório também acendem preocupações em pesquisadores. Para alguns, esses produtos podem inclusive ser considerados um novo tipo de “ultraprocessados”, como são chamados os alimentos fabricados em várias etapas de industrialização, à base da adição de químicos e componentes prejudiciais à saúde.

“É importante a discussão, porque tem toda a questão ambiental. Mas talvez o caminho seja comer menos carne e não inventar outra coisa. Vamos comer feijão, grão de bico”, finaliza a professora Daniela Canella, da UERJ.

Foto: Kim Soo-hyeon/REUTERS

Arroz bovino: solução sustentável para quem gosta de carne?

Essencial para uma dieta saudável, a proteína pode ser obtida por meio de plantas e animais, como feijões, ervilhas, nozes e sementes de cereais integrais, além de peixes, aves e outras carnes.

Especialistas em nutrição da Escola de Saúde Pública de Harvard aconselham que a maior parte das proteínas sejam oriundas de fontes vegetais. Carnes vermelhas, como a bovina, segundo eles, “devem ser consumidas em uma base mais limitada”.

A produção de carne é, por um lado, considerada insustentável em termos ambientais. E o excesso de carne também pode levar a problemas de saúde, a exemplo do câncer de intestino. Muitas vezes, isso se deve mais à forma como a carne é cozida do que à carne em si. Ainda assim, vale a pena ter em mente o ditado que diz: você é o que você come.

Muitas pessoas, porém, gostam de comer carne. Portanto, a ideia de misturar arroz – uma proteína de origem vegetal – com carne bovina sustentável, cultivada em laboratório, pode ser saudada como uma boa notícia. É isso que cientistas da Coreia do Sul dizem ter criado e estão chamando de “arroz bovino” (beef rice).

O que é o arroz bovino?

Pesquisadores de Seul pegaram células de carne e de gordura de gado, revestiram-nas com gelatina de peixe e as inseriram em grãos de arroz, onde cresceram.

O revestimento de gelatina ajudou os nutrientes do material animal – músculo bovino e células-tronco de gordura – a crescer e enriquecer o arroz.

O vegetal foi cultivado por cerca de dez dias, permitindo que a proteína e a gordura das células animais se desenvolvessem. E o que apareceu foi um grão branco-rosado.

Mas e o sabor?

“O sabor inicial é predominantemente o do arroz. No entanto, há vários sabores complexos interconectados. Tem um gosto de proteína um tanto farináceo, mas também de nozes, seguido por um sabor ligeiramente cremoso e amanteigado”, revela Jinkee Hong, um dos principais autores do estudo na Universidade de Yonsei.

Quão nutritivo é?

Hong diz que o arroz com carne bovina contém 8% mais proteína e 7% mais gordura do que o arroz tradicional, o que o tornaria uma fonte rica de aminoácidos essenciais, que produzem proteínas.

“Isso demonstra seu potencial como um superalimento futuro e também oferece ideias para o desenvolvimento de novas formas de produtos alimentícios híbridos”, afirma Hong.

Alguns especialistas em alimentos, no entanto, questionam o valor nutricional do arroz bovino.

“O produto final contém 4,8 gramas de células bovinas cultivadas por quilo de arroz. Isso significa que 0,5% do produto final é carne cultivada, e 99,5% é arroz. Para substituir a carne, a porcentagem da proteína no produto final precisaria ser maior”, argumenta Hannah Tuomisto, professora de sistemas alimentares sustentáveis da Universidade de Helsinque, na Finlândia.

O arroz com carne bovina é apenas um dos vários experimentos para modificar esse grão com o objetivo de obter mais nutrientes para dietas básicas. O arroz dourado, por exemplo, é geneticamente modificado para conter uma forma de vitamina A que se descobriu estar em falta na dieta em regiões da Ásia e da África.

Quão “verde” é o arroz bovino?

Hong e sua equipe afirmam que o cultivo do arroz híbrido produziria menos gases de efeito estufa do que a produção de carne bovina convencional.

Segundo os pesquisadores, 100 gramas de produção de proteína de carne bovina liberam cerca de 50 kg de dióxido de carbono (um número comprovado por estudos anteriores), enquanto a produção de 100 gramas de proteína de arroz híbrido liberaria menos de 6,27 kg.

“A carne cultivada é um campo extremamente promissor devido a seus possíveis benefícios para o meio ambiente, a segurança alimentar, a sustentabilidade e a ética animal”, defende Hong.

A equipe também não é a primeira a trabalhar em produtos de carne cultivados em laboratório. O primeiro hambúrguer desse tipo foi apresentado em 2013 pelo cientista holandês Mark Post.

Menos de uma década depois, o setor se expandiu para mais de 150 empresas em todo o mundo, a maioria concentrada na produção de alternativas para carnes comuns, como porco, gado e frango.

Por que é tão difícil comprar essa carne?

Hong afirma que a carne cultivada em laboratório ainda é muito cara para a produção em massa, o que significa que tem sido difícil colocá-la nas prateleiras dos supermercados.

Um dos principais desafios é que ela depende de produtos de origem animal para cultivar as células. No estudo de Hong, os pesquisadores obtiveram seus lotes iniciais de células musculares e de gordura de gado abatido em um matadouro local.

“Todas as carnes produzidas em laboratório dependem de soro bovino, o sangue de um boi, como suplemento de crescimento. É a melhor maneira que temos de cultivar uma quantidade tão grande de células com as quais se pode fazer algo. Mas isso levanta argumentos ecológicos e questões de crueldade com os animais, e é caro”, diz Alfredo Franco-Obregon, da Universidade Nacional de Cingapura. Ele também já trabalhou com carne cultivada em laboratório.

Os produtores têm ainda um longo caminho até convencer as pessoas a comer carnes cultivadas em laboratório.

Uma pesquisa realizada no Reino Unido pela Agência de Normas Alimentares (Food Standards Agency) revelou que apenas um terço dos participantes está disposto a experimentar o alimento.

Quase metade relatou que nada poderia incentivá-los a experimentar carne cultivada em laboratório, e mais de um quarto disse que poderia ser persuadido se soubesse que a carne é segura para consumo.

SÉRGIO PEDRA

É agrônomo e pequeno produtor rural em Mato Grosso.

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