13/05/2024 - Edição 540

Ogroteca

Como a extrema direita fez seu ninho no meio nerd

Difícil imaginar que uma tribo urbana que sofreu discriminação por décadas agora esteja com suas fileiras tomadas por fascistas, nazistas e todo tipo de escória

Publicado em 02/09/2022 11:33 - Fernando Fenero

Divulgação Pixabay

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Pode parecer estranho para a molecada de hoje em dia, mas nas décadas passadas o termo “nerd” era usado de forma pejorativa. O estereótipo reforçado no cinema, games e no restante da cultura pop era sempre igual, alguém com roupas sociais sem qualidade, óculos de grau e armações quadradas normalmente emendados com durex, mas principalmente era uma figura patética e sem habilidades sociais.

E, ilustrando para quem tenha já nascido em um mundo menos rígido e preconceituoso, havia o conteúdo para nerd, e o conteúdo para “pessoas comuns”, com raras exceções como o filme do Superman (com roteiro de Mario Puzo e estrelando Marlon Brando). Parece bizarro contar isso para quem vê o cinema lotar a cada filme dos Vingadores, mas era como as coisas eram.

Fato é que a cultura nerd se somou e mesclou com a cultura pop em geral, até porque uma de minhas definições favoritas diz que nerd é o cara que consome quase que religiosamente o conteúdo sobre algum assunto, podendo existir nerds de computadores, novelas, estilos musicais e coisas bizarras como facas e tesouras.

Difícil imaginar então que uma tribo urbana que sofreu discriminação por décadas agora esteja com suas fileiras tomadas por fascistas, nazistas e todo tipo de escória de extrema direita. Mas, uma análise rápida pode explicar como isso aconteceu, ainda que não faça o menor sentido.

Se o nerd antes vibrava com os rebeldes em Star Wars lutando contra um império totalitário teocrata, agora não é raro ver essa mesma criatura defendendo o regime militar brasileiro e a tortura como política de segurança pública. Se antes eram os caras que gostavam muito de ciência, não foi difícil ver essa mesma galera que assistia “Mundo de Beakman” na infância defender o boicote à vacina que protege contra Covid-19, que máscara era um cuidado desnecessário e que qualquer remédio para matar piolho curaria a doença.

Esse fenômeno maluco é uma química radioativa de conceitos diferentes.

Começo no basicão de Paulo Freire, um dos maiores intelectuais do Brasil (e do mundo), referência na educação segundo o que há de melhor em estudos da área. Freire, na obra “Pedagogia do Oprimido”, ensina que “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. Era o cara zoado por gostar de Hulk lá nos anos 80? Agora ele vai despejar ódio e misoginia nas redes sociais sobre a série da Disney + da She Hulk. Era humilhado por gostar de animações japonesas? Esse mesmo cara vai ser o ultra conservador do Twitter.

Mas, continuando a dissecação desse monstro da extrema direita, o nerd sem habilidades sociais não se relacionou com o mundo à sua volta, que mudou muito, e muito rápido. Trancado em seu quarto jogando no PC, ele, além de perder a percepção básica do que realmente é o mundo e a vida, acaba fechado em sua bolha onde tudo que seja diferente do que ele conhece é errado e mimimi. Quando o mundo da pessoa se resume a voltar pra casa (muitas vezes pode envolver nem sair de casa) para voltar para o computador, assistir animações, series e horas nos jogos, esse indivíduo vai ter dificuldade em entender questões sociais simples como classes sociais e seus conflitos, feminismo, movimentos identitários que protegem negros, índios e gays. Confrontado com isso, ele prefere o conforto de apontar de longe e ignorar todas essas questões. Seria mais uma vez algo como “vou te tratar como me trataram no passado”?

Por fim, algo que a extrema direita tem caprichado para fazer com muita atenção e carinho: explorar o efeito Dunning-Kruger, que em um resumo simplista – do tipo que se usa para uma criança de onze anos – se refere a alguém muito burro que acredita saber muito mais que um especialista. Tipo homens discutindo ciclo menstrual com mulheres ginecologistas, ou qualquer mancebo inexperiente, trancado em um quarto escuro, discutindo no Facebook com engenheiros aeroespaciais sobre suas teorias de terra plana.

Aí você pode estar querendo vestir de imediato o paletó do advogado do Diabo e dizer: “Calma lá Fernando, isso é realmente um fenômeno da direita?” E eu te respondo com a clareza de um copo de água das fontes cristalinas do Nepal: “É CLARO QUE SIM”.

A direita sempre foi burra (nem sempre), mas como são amantes do conservadorismo, na maior parte das vezes em que se organizam fica óbvio que a estupidez vaza pelos ouvidos. E olha lá, é de onde vem paradas bizarras como eugenismo (a fantasia de ciência do fascismo) e pérolas mais brandas como “terra plana” e movimento antiviral.

Gostaria de oferecer uma solução simples para isso, mas Leandro Karnal e Mário Sérgio Cortella que se explodam, isso de mostrar com todo cuidado do mundo que o fascista é um imbecil, e convencer eles com amor, carinho e conhecimento… bem… é algo que simplesmente não funciona.

Primeiro porque a criatura contaminada com esse chorume maligno deixou de ser racional, ele quer se sentir especial com seu racismo, acha que seu machismo o torna valoroso e que nenhuma mulher não percebe isso porque estão sendo enganadas, e as desculpas podem preencher um rolo de 45 metros de papel higiênico.

Segundo que, enquanto a gente perde tempo corrigindo o estrupício, tem gente morrendo. Vide o verme que atualmente ocupa a presidência da república e é responsável por pelo menos 400 mil das 680 mil mortes – e falo isso com a certeza triste da confirmação de estudos sobre a mortalidade da covid-19 no Brasil. Mas, enquanto ele insistia para que as pessoas saíssem do isolamento, a comunidade gamer aplaudia como um coro de asnos a redução de impostos sobre videogames, ainda que a desvalorização da nossa moeda tenha tornado a compra de um equipamento uma missão impossível.

Esse é só um dos exemplos de como e porque isso é perigoso, e que não basta deixar pra lá.

Como resolver esse problema?

Várias frentes… primeiro ocupando os lugares com firmeza e convicção. Não tolere que sejam racistas, machistas e homofóbicos nos chats e chamadas de jogos online; promova ambientes que sejam receptivos às pessoas e as diferenças; converse sobre isso, produza conteúdo sobre isso, participe de eventos e demarque o território, pois, acredite, eles estão fazendo isso o tempo todo e há muito tempo.

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Fernando Fenero


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Uma resposta para “Como a extrema direita fez seu ninho no meio nerd”

  1. Lilian disse:

    Esse efeito bolha também pode ser observado nos atuais “metaleiros”, que em seu conceito original eram rebeldes que lutavam por tudo aquilo que hoje defendem!

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