09/05/2024 - Edição 540

Povos da Terra

Ação do Governo federal é insuficiente e há ‘estado de guerra’, diz liderança Yanomami

Aprovação do marco temporal reabre dúvidas na UE sobre acordo com Mercosul

Publicado em 26/01/2024 10:44 - Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Imagem: Carlos Moura/ST

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A Terra Indígena Yanomami ainda vive um “estado de guerra” e as ações do governo Lula são insuficientes para lidar com a crise. Essas são algumas das principais conclusões da Hutukara Associação Yanomami, que apresenta hoje uma avaliação da atuação do governo federal frente à emergência no território.

O documento é publicado um ano após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ter declarado Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) no território. Além da Hutukara, o material é endossado pela Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume) e a Urihi Associação Yanomami e conta com apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) e do Greenpeace.

Se o garimpo e o desmatamento apresentaram desaceleração em 2023 nas terras do povo Yanomami, a realidade é que a atividade ilegal ainda inviabiliza o atendimento de saúde às comunidades indígenas, a população “segue morrendo por doenças tratáveis”, crianças continuam com baixa cobertura vacinal, armas entram nas zonas protegidas e servidores da saúde se sentem intimidados pelos invasores.

O território yanomami é a maior terra indígena do país e recebe uma operação emergencial desde 21 de janeiro de 2023, para enfrentar a crise sanitária causada pelo avanço do garimpo ilegal e por anos de desestruturação do sistema de saúde local.

“Com a explosão da prática ilegal entre 2018 e 2022, a Terra Indígena Yanomami, demarcada e homologada em 1992, foi fortemente impactada e os povos yanomami e ye’kwana tiveram sua saúde, economia e perspectiva de futuro comprometidas”, diz o informe publicado pela Hutukara Associação Yanomami.

As entidades apontam que “o caminho para a recuperação territorial e sanitária da TI Yanomami ainda é longo e muitos ajustes precisam ser feitos para recuperar um caminho de bem viver e prosperidade para as famílias indígenas”.

De acordo com as entidades, os dados demonstram que, “embora o atual governo tenha se mobilizado para combater o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami em 2023, os esforços foram insuficientes para neutralizar a atividade na sua totalidade”.

“De fato, houve uma importante redução no contingente de invasores, o que pode ser verificado na desaceleração das taxas de aumento de área degradada, mas o que se verificou ao longo de 2023, é que, ainda que em menor escala, o garimpo permanece produzindo efeitos altamente nocivos para o bem-estar da população Yanomami”, afirma o informe.

A manutenção de um alto número de mortes na TI Yanomami — 308 até novembro de 2023 — não se explica apenas por esta razão. Segundo as entidades, houve também “importantes falhas na execução das ações de saúde, como o baixo investimento nas infraestruturas de saúde no território, o déficit de recursos humanos e equívocos de planejamento, mas os efeitos deletérios do garimpo não podem ser subestimados”.

EIS ALGUMAS DAS PRINCIPAIS CONCLUSÕES DO LEVANTAMENTO

Garimpo desacelera, mas ainda expande área de exploração em 7%

Área total acumulada de devastação já chega a 5.432 hectares com impacto em 21 das 37 regiões existentes. Esse número representa uma desaceleração na taxa de crescimento da área degradada, em comparação com o avanço dos últimos anos, nos quais a taxa de incremento anual foram de 42% (2018-2019), 30% (2019-2020), 43% (2020-2021) e 54% (2021-2022).

“Porém, este incremento revela também que a atividade ilegal continua operando com intensidade no território”, diz o texto.

Os meses com maiores alertas de desmatamento associado ao garimpo foram janeiro, março e outubro com 67, 52 e 22 hectares devastados, respectivamente.

Estado de Guerra

308 indígenas yanomami morreram em 2023, sendo 129 por doenças infecciosas e parasitárias (63) e doenças respiratórias (66).

Ao menos sete indígenas morreram em 2023 em confrontos com armas de fogo levadas de forma ilegal ao território por garimpeiros ilegais.

Relatos apontam a presença de homens armados fazendo a segurança do garimpo e reagindo a operações.

Garimpeiros mudaram pontos de exploração para longe dos rios e passaram a usar novas tecnologias de comunicação para burlar operações.

Somando com as mortes de 2022, nota-se claramente que há um verdadeiro ‘estado de guerra’ na região.

A volta dos invasores

Estima-se que de 70% a 80% dos invasores foram retirados no primeiro semestre da Terra Indígena Yanomami. No entanto, no segundo semestre ocorreu retorno massivo.

No segundo semestre, com maior protagonismo das Forças Armadas nas ações repressivas, pistas chegaram a ser destruídas, mas em pouco tempo foram recuperadas pelo invasores que retornaram.

Dados do Greenpeace demonstram que o número de áreas desmatadas voltou a crescer a partir de agosto, após uma redução abrupta de alertas até julho.

De acordo com o informe, foi identificada, por exemplo, a abertura de uma nova pista clandestina na região, distante 3 km do limite internacional e a pouco mais de 4 km de grandes cicatrizes de garimpo em território venezuelano. No país vizinho, nesta zona, também se observou a construção de uma nova pista de pouso de quase 500 metros, que era inexistente até março de 2023.

O garimpo ilegal no Alto Orinoco (Venezuela) tem se intensificando desde o início das operações em 2023, e parte de sua logística é operada no Brasil, em articulação com o garimpo do Alto Catrimani, Homoxi, Xitei, entre outros.

No rio Uraricoera, os relatos indicam uma intensificação no trânsito de garimpeiros, com o afrouxamento das operações no segundo semestre. Da mesma forma, os indígenas denunciaram a reativação de algumas pistas de pouso (Mucuim e Espadinha), depois que muitas delas foram neutralizadas no primeiro semestre de 2023.

Segundo os relatos, há uma média de três aeronaves por dia com destino à Pista do Mucuim. O primeiro avião costuma pousar às 6h, como forma de se esquivar de eventual fiscalização.

A barreira improvisada na altura da região do Palimiu também não tem sido eficaz para controlar o acesso de invasores ao território. De acordo com as lideranças locais, diariamente, antes de amanhecer (entre 4h30 e 6h) a comunidade é acordada pelo barulho dos motores transitando pelo rio, furando o “bloqueio”.

A base de proteção que deveria estar instalada naquele local (Pakilapi) não foi implantada, em manifesto descumprimento à determinação judicial da Justiça Federal de Roraima.

Durante uma vista da Hutukara ao local, em novembro, observou-se que o efetivo do Exército Brasileiro contava com aproximadamente 15 pessoas — este bloqueio já contou com pelo menos 50 militares —, e ocupava a base da Funai no local.

Cerca de uma semana depois, os yanomamis relatam que todos os militares saíram do posto. A informação foi posteriormente confirmada pelo Ibama em reunião com MPF pela total retirada das Forças Armadas e as estruturas por eles instaladas.

Saúde sob ameaça do garimpo

Enquanto garimpeiros insistem na atividade ilegal, profissionais de saúde se sentem intimidados e não conseguem acessar comunidades mais vulneráveis.

Em muitas regiões, a cobertura vacinal não atinge nem metade das crianças, tanto as com menos de 1 ano, quanto as de 1 a 4 anos.

De acordo com o informe, no Xitei, região que possui uma população total de mais de 2 mil pessoas, a vacinação abrangeu apenas 1,8% das crianças de até 1 ano e 4,2% das crianças de 1 a 4 anos.

Nesta região, sabe-se que a equipe de profissionais de saúde, além de ser pouco numerosa, está impedida de realizar as visitas às casas-coletivas, porque o garimpo persiste no local, com inúmeros episódios de violência e ameaças. Ali, pelo menos 12 crianças menores de cinco anos vieram a óbito em 2023, sendo cinco por pneumonia.

De acordo com o informe, a “persistência de núcleos de exploração do garimpo no território impede a retomada das ações de promoção e prevenção em saúde em muitas das comunidades mais vulneráveis”.

Devido ao clima de insegurança e conflito nessas zonas, os profissionais de saúde têm evitado realizar visitas em muitas aldeias, com sérias implicações para a realização de ações fundamentais de atenção básica, como vacinação, busca ativa de malária, pré-natal etc.

“Foi exatamente esse mecanismo que ajudou a produzir a crise, que atingiu seu ápice em 2022. Em 2023, já no cenário da declaração da emergência, a manutenção de altas taxas de mortalidade por doenças do aparelho respiratório, que vitimou pelo menos 66 pessoas na TI Yanomami, é uns dos maiores exemplos da correlação entre manutenção do garimpo e desassistência”, constata o informe.

Recomendações feitas ao governo

As entidades apresentaram recomendações ao governo para que haja um enfrentamento da emergência sanitária. Entre elas:

A retomada urgente de operações de desintrusão (retirada de invasores) de garimpeiros no território yanomami.

A elaboração de um Plano de Proteção Territorial, que considere, por exemplo, o efetivo bloqueio fluvial e controle do espaço aéreo, além de ações regulares de fiscalização no entorno de pistas de pouso, portos e postos de combustível.

Desenvolver um plano para estimular o desarmamento voluntário nas regiões sensíveis.

Apoiar o reassentamento de comunidades afetadas pelo garimpo que manifestam o interesse de se mudar para um novo local por não ter condições mínimas de permanência.

Para conter a crise sanitária, são necessárias: reformas nas estruturas destinadas a atender os yanomamis; investimento na mobilidade dos funcionários dentro de território e criação de novas unidades de saúde.

Criação de uma força tarefa para o controle da malária.

Aprovação do marco temporal reabre dúvidas na UE sobre acordo com Mercosul

A decisão do Congresso Brasileiro de aprovar o marco temporal começa a ter um impacto internacional. Nesta quinta-feira, a Comissão Europeia foi questionada diante da situação dos indígenas no Brasil, principalmente no que se refere ao futuro do acordo entre Mercosul e UE.

No final do ano passado, a lei do marco temporal foi promulgada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), depois de o Congresso ter derrubado os vetos do presidente Lula ao projeto. A aprovação foi considerada como uma derrota dos grupos ambientalistas e indígenas, violando inclusive uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que havia julgado a tese também em 2023. Na ONU, a lei foi criticada por violar os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na defesa dos povos indígenas.

Agora, numa petição entregue para a Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, o Parlamento Europeu quer explicações sobre como a aprovação do marco temporal irá afetar o acordo entre Mercosul e UE, ainda em negociação.

O euro deputado Miguel Urban afirmou que, “apesar das importantes mudanças no Brasil com o novo governo Lula em relação aos povos indígenas, ainda há elementos preocupantes relacionados à garantia dos territórios e à proteção da vida dos povos indígenas no país”.

“Recentemente, ataques violentos contra comunidades em vários estados do país deixaram vítimas fatais”, disse.

“O assassinato de Nega, líder do povo indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia, é um exemplo do persistente padrão de brutalidade no país, praticado por grandes fazendeiros e latifundiários, e que inclui a omissão ou o envolvimento das forças policiais”, alertou.

Em sua moção, ele aponta que, em 2023, “houve pouco progresso na demarcação de terras indígenas e apenas oito territórios foram homologados”.

“Enquanto isso, o Congresso brasileiro, contrariando uma decisão do Supremo Tribunal Federal, aprovou recentemente a lei 14.701/23, que impõe um marco temporal para a política de demarcação e abre as terras indígenas aos interesses econômicos de terceiros, violando os direitos constitucionais dos povos”, disse.

Segundo ele, o acordo UE-Mercosul “pode agravar essa situação, pois reforça a pressão de grandes interesses econômicos sobre esses territórios”.

Diante dessa situação, ele pede que a Comissão esclareça se a lei 14.701/23 “contradiz as cláusulas recentemente incorporadas ao Acordo UE-Mercosul”.

Bruxelas terá 60 dias para dar uma resposta. Mas a iniciativa reabre o debate sobre o acordo que, em 2023, fracassou em ser assinado.

Uma parcela da ala progressista na Europa e ambientalistas insistem que um acordo com o Mercosul apenas pode ser estabelecido se o Brasil der demonstrações de um compromisso de defesa de direitos humanos e do combate ao desmatamento.

“O acordo comercial UE-Mercosul é uma herança bolsonarista e um ataque contra o meio ambiente, os povos originários e os consumidores e as maiorias sociais de ambos os blocos”, disse o euro deputado. “As elites europeias pretendem convencer as partes com cláusulas não vinculantes. Se a lei do marco temporal resultar incompatível com estas cláusulas, podemos saber quanto há de letra morta, além dessas belas palavras”, completou Urban.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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