30/04/2024 - Edição 540

Poder

Aras usa Lava Jato para centralizar poder na PGR, dizem procuradores

Publicado em 31/07/2020 12:00 -

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Em meio a um discurso crítico à Operação Lava Jato, Augusto Aras está em campanha para centralizar poder na Procuradoria-Geral da República e reduzir a independência do Ministério Público. A avaliação foi unânime entre procuradores e subprocuradores-gerais da República e procuradores de MPs estaduais ouvidos pela coluna após a entrevista concedida por ele, na noite desta terça (28), ao grupo de advogados Prerrogativas.

Ganhou destaque nas manchetes o número de "38 mil" citado por Aras, que seria o total de pessoas com informações inseridas na base de dados da força-tarefa de Curitiba. "Ninguém sabe como [esses nomes] foram escolhidos, quais foram os critérios", disse Aras, que defendeu a existência de um "MPF do B", que operaria nas sombras. Também disse que sua gestão buscaria maior unicidade do MPF (Ministério Público Federal) e afirmou que "cada membro pode agir como sua consciência, mas cada membro não é senhor da instituição".

Não é de hoje que o procurador-geral critica duramente o modelo de forças-tarefa temáticas.

Membros do Ministério Público, mesmo aqueles críticos à operação Lava Jato, apontam que o foco de Aras não foi uma exaltação à transparência, mas se insere em um processo de ataque à independência dos integrantes do MP.

Para uma das procuradoras, a defesa da independência funcional, liberdade de atuação garantida aos procuradores desde que atuem dentro da lei, é a matéria mais importante para o MP em quatro décadas de democracia. "E há o sentimento coletivo de que está em curso um processo de sua destruição", diz.

"A independência funcional é a única garantia que os procuradores têm de que podem atuar em causas que não interessam ao poder econômico e ao poder politico local ou nacional", explica uma das ouvidas pela coluna. Ela também ressalta que o MPF não atua apenas contra corrupção. "Mudanças afetam temas como indígenas, grupos de extermínio, escravidão contemporânea, racismo, milícia, violência policial, fraude em licitação, violência doméstica, grilagem de terras, desmatamento."

Outra procuradora avalia que Aras demonstrou um desejo por um Ministério Público hierarquizado. Diz que, para ele, a ideia de horizontalidade faria parte de um "anarcossindicalismo" que tomou conta da instituição. Ele usou o termo para criticar, na entrevista, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

Força-tarefa da Lava Jato e os 38 mil nomes

"Assim como eu, muitos colegas creem que certos procedimentos em Curitiba são equivocados desde o início. Os pecados da Lava Jato têm que ser discutidos e debatidos, incluindo os excessos e o espetáculo, mas estou perplexo de como o procurador-geral usou isso para atacar a instituição [o MPF]. O que vai muito além da própria Lava Jato", diz outro procurador.

"Ele reclama que havia 38 mil nomes com Curitiba. Bem, agora estarão com pessoas próximas a ele. Como garantir que Aras não usará isso para seus interesses políticos? Os PGRs [procuradores-gerais] costumavam ser mais sóbrios em suas declarações", afirma.

Uma procuradora defendeu que a base de dados era gigante por conta do tamanho da operação, uma das maiores da história do país. "Eles apenas integraram todos os dados em uma única base de dados para facilitar cruzamento de dados. Não concordo com muitos dos métodos da Lava Jato, mas usar isso como evidência de alto incorreto é equivocado", explica.

"O PGR acaba usando esse número de forma descontextualizada para atacar a independência funcional dos membros do MP", diz outra procuradora.

"Lista tríplice fraudável"

Outra crítica que não caiu bem foi Aras ter dito que a lista tríplice da eleição realizada entre os procuradores para a escolha do chefe da Procuradoria-Geral da República usa um sistema "fraudável". Não chegou a afirmar que foram encontradas fraudes nas eleições passadas, mas disse que esse modelo estava esgotado.

"Não há uma guerra interna, o que existe é um projeto de Aras para desestruturar o que construído no Ministério Público Federal desde 1988. E isso beneficia políticos de todas as tendências", afirma outra procuradora ouvida pela coluna. "Esse projeto de MPF não foi e não é debatido com ninguém. Ele, a partir de sua posição, tenta impor. E como não quer o debate de ideias, coloca ideias diversas no campo genérico dos 'adversários' e das 'fake news'", avalia.

Aras foi escolhido diretamente pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que ignorou a lista tríplice no ano passado. Foi a primeira vez, desde 2003, em que isso aconteceu.

"Ele foi eleito para o Conselho Superior do Ministério Público Federal pelos pares e para a lista do Superior Tribunal de Justiça pelo mesmo sistema que diz que tem fraudes e só descobriu em 2019, quando não concorreu à lista tríplice?", questiona outra procuradora.

Controle x independência funcional

Outra procuradora lembra que o acesso à base de dados do ofício de cada procurador tem que ter um motivo. E o compartilhamento de informações entre o procurador-geral e o procurador de um caso é comum, desde que haja indicação precisa da razão e do uso da informação.

Segundo ela, o processo legal exige cuidado e controle com provas que serão apresentadas contra alguém no tribunal. Dessa forma, garante-se um julgamento e uma punição justos. O controle dessa base de dados já é feito em cada processo, pelas Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF e pelo juiz da causa. "É possível apertar mais o controle das provas, mas é preciso que não seja destruída a independência funcional no caminho", diz a procuradora.

O procurador-geral ressaltou na entrevista a atuação das Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF, que são temáticas, e podem determinar que um caso seja reaberto por outro membro da instituição caso discordem do encaminhamento dado.

"As Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal não têm atribuição de execução e os atuais grupos de apoio não são suficientes. A compreensão estrutural do PGR sobre o MPF não tem adequação às demandas atuais e como ele não dialogou ou dialoga com mais profundidade, fica difícil", conclui uma fonte ouvida.

Na avaliação de todos os ouvidos, as declarações de Augusto Aras serão usadas por advogados a favor da defesa de clientes, não só em casos de corrupção, mas também em áreas diversas, como crimes ambientais ou tributários.

Proposta concentra poderes de decisão sobre 'delações de pessoas jurídicas' na CGU e na AGU

O governo federal e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, finalizam uma proposta para regulamentar a negociação de acordos de leniência, que funcionam como delações premiadas de empresas. A minuta do projeto retira o Ministério Público Federal (MPF) das negociações e concentra poderes na Controladoria-Geral da União (CGU) e na Advocacia-Geral da União (AGU), órgãos subordinados ao presidente Jair Bolsonaro.

A proposta abre brecha para esvaziar os poderes do MPF em investigações contra empresas. Os grandes acordos de leniência da Operação Lava-Jato, com companhias como o Grupo J&F e a Odebrecht, foram conduzidos inicialmente por procuradores do Ministério Público, para só depois terem a adesão de órgãos como a CGU. Na longa negociação com o MPF, a J&F ofereceu inicialmente R$ 700 milhões, mas, no final, aceitou pagar R$ 10,3 bilhões de ressarcimento.

Pelas novas regras propostas, o MPF não conduzirá mais as negociações dos acordos de leniência. “Visando a incrementar-se a segurança jurídica e o trabalho integrado e coordenado das instituições, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência nos termos da lei nº 12.846, de 2013”, diz o texto.

Isso significa que procuradores responsáveis por investigar os crimes de uma empresa podem ficar fora da análise de quais fatos criminosos essa empresa está confessando no seu acordo.

De acordo com a minuta, qualquer investigação do MPF ou da Polícia Federal que constate o envolvimento de uma empresa em fatos ilícitos deve ser enviada para conhecimento da CGU e da AGU. O texto estipula uma exceção a esse padrão: que o compartilhamento não seja feito caso coloque as investigações em risco. Ainda assim, na avaliação de investigadores, o novo modelo abrirá brecha para que o governo tenha informações de diversas investigações sigilosas em andamento pelo país.

A iniciativa ocorre em meio a uma crise dentro do MPF, deflagrada após iniciativas do procurador-geral da República, Augusto Aras, contra a Lava-Jato. O novo modelo precisa do aval de Aras, que ainda está analisando o assunto. A atual minuta é diferente da proposta inicialmente defendida por ele, que previa também a participação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A minuta é discutida entre CGU, AGU, Ministério da Justiça, STF, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Tribunal de Contas da União (TCU). O assunto já está em estágio adiantado. Trata-se de um “acordo de cooperação técnica” que seria assinado por esses órgãos para garantir que todos sigam os termos estabelecidos. Não é necessário submeter o projeto ao Congresso Nacional.

A proposta cria um “balcão único” na negociação de acordos de leniência. Hoje, uma empresa precisa negociar com diversas instituições diferentes e fica vulnerável a sanções caso não consiga fechar acordo com todas.

Por isso, Toffoli e Aras concordaram que seria necessário desburocratizar o sistema e permitir que uma pessoa jurídica resolva todas suas pendências com apenas um acordo, o que, segundo este entendimento, proporcionaria maior segurança jurídica.

No acordo de leniência, a empresa precisa confessar os crimes cometidos, fornecer provas a respeito deles e se comprometer a ressarcir os cofres públicos. Em troca, fica isenta de punições, como multas ou proibição de fechar contratos com órgãos públicos.

Outro trecho diz que CGU e AGU devem tentar coordenar com o MPF e a PF a negociação de delações premiadas das pessoas físicas envolvidas nos ilícitos, para que sejam feitas em conjunto, mas não explica como poderia haver intercâmbio de informações sobre os diferentes acordos. A “quarta ação operacional” afirma que as provas obtidas serão compartilhadas com o MPF e os outros órgãos competentes somente depois da assinatura do acordo de leniência com a CGU e AGU.

A metodologia para o cálculo do dano ao erário e dos ressarcimentos ficaria a cargo de CGU, AGU e TCU.

A assessoria de Toffoli afirmou que ele não se manifestaria porque o texto ainda está em negociação. AGU e CGU, também responsáveis pela redação final do projeto, não responderam.

Principais pontos da proposta

Sem participação do MPF nas negociações dos acordos: A CGU e a AGU “conduzirão a negociação e a celebração dos acordos de leniência” com as empresas, sem previsão de participação do Ministério Público Federal. Poderá haver participação do TCU, caso haja fatos da alçada do tribunal.

Provas só serão compartilhadas após assinatura: Somente após a assinatura do acordo de leniência, CGU e AGU vão compartilhar com os demais integrantes do acordo de cooperação técnica as informações, documentos e demais elementos de prova fornecidos pela empresa.

Acordo pode ser assinado caso TCU não se manifeste: O cálculo do ressarcimento aos cofres públicos será feito por CGU, AGU e TCU. Após a definição do acordo, o TCU terá 90 dias para se manifestar sobre a extinção de processos contra a empresa. Se não houver resposta, o acordo pode ser assinado.

Órgãos tentarão unir leniência com delação premiada: A CGU e a AGU, ao negociar a leniência com uma empresa, buscarão coordenar com o MPF e a Polícia Federal a possibilidade de assinatura de delação premiada pelas pessoas físicas que participaram dos crimes relatados.

Contexto: Negociação hoje esbarra em travas jurídicas

A proposta do “balcão único” para os acordos de leniência tem o objetivo de resolver os entraves jurídicos que envolvem esse tipo de negociação e salvar as empresas que são flagradas em casos de corrupção, impedindo-as de quebrar financeiramente.

Esses acordos, criados pela Lei Anticorrupção, de 2013, sempre estiveram envoltos em dificuldades, porque uma empresa precisava fazer diferentes negociações, com vários órgãos, cada um responsável por uma parte do processo de responsabilização.

Foi somente em julho de 2017 que a Controladoria-Geral da União (CGU) conseguiu fechar com a empreiteira UTC seu primeiro acordo de leniência, de ressarcimento de R$ 574 milhões ao erário.

Mas diversos acordos, mesmo após assinados, foram questionados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apontava discordâncias sobre os termos e ameaçava suspender o instrumento.

Para minimizar a insegurança jurídica, a CGU passou a realizar acordos de leniência em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF) e com outras instituições, mas sem um arcabouço legal que regulamentasse essa integração.

A proposta do “balcão único” busca unir todos os órgãos em um único acordo e superar esses entraves.

Por isso, diversos pontos do texto buscam resolver as pendências com o TCU. A minuta estabelece que, durante a negociação, o tribunal deve analisar se é possível extinguir os processos que possui contra a empresa colaboradora e abater deles os valores cobrados no acordo.

Além disso, para evitar que o tribunal trave um acordo, o projeto estabelece que o TCU precisa se manifestar em 90 dias. Caso não responda, AGU e CGU poderão assinar o documento. A minuta deixa aberta a possibilidade de aditar o acordo com um valor adicional correspondente à cobrança feita pelo tribunal.

Isso, porém, deixa a empresa colaboradora vulnerável a novos problemas jurídicos perante o TCU.

“Havendo manifestação do TCU no sentido de considerar que os valores negociados no acordo não satisfazem aos critérios estabelecidos para a quitação do dano por ele estimado, a CGU e a AGU buscarão realizar negociação complementar para eventual ajuste dos valores a título de ressarcimento de danos, não estando impedidas de formalizar o acordo de leniência, sem a quitação no ponto, caso não seja possível alcançar consenso”, diz um trecho do documento.


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