17/05/2024 - Edição 540

Brasil

Violência contra entregadores tem herança escravista, diz pesquisador

PM que atirou no entregador não foi preso: juristas opinam sobre o caso

Publicado em 08/03/2024 11:06 - Rafael Cardoso (Agência Brasil), ICL Notícias, Eliana Alves Cruz (ICL Notícias) – Edição Semana On

Divulgação Foto Fernando Frazão/Agência Brasil

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Não é um caso isolado. Não é apenas sobre entregadores de aplicativos. A história de Nilton Ramon de Oliveira, de 24 anos, baleado por um cliente policial militar na terça-feira (4), na zona oeste do Rio de Janeiro, tem dimensões estruturais que remetem ao passado escravista brasileiro. Esse é o posicionamento de Leonardo Dias Alves, mestre em política social e professor da Universidade de Brasília (UnB).

Nas ciências sociais, a ideia de estrutura é frequentemente usada para falar de um fenômeno de longa duração. Por isso, apesar da abolição da escravidão no Brasil ter mais de 135 anos, o professor defende que alguns princípios que organizavam as relações raciais e trabalhistas da época escravista continuam no presente.

“O processo de exploração da força de trabalho do escravizado era baseada no controle e na violência. Com o advento da abolição, a violência continuou a ser algo central, com atributos que desumanizam a força de trabalho. E a população negra foi colocada à margem da sociedade, ocupando espaços racialmente discriminados no mercado de trabalho. Ela vai ocupar postos com menor remuneração, maior degradação humana, funções braçais e servis”, disse Leonardo.

“Quem são as pessoas que fazem trabalhos de limpeza? Quem são os que estão majoritariamente em trabalhos de entrega? Que fazem jornada gigantes? São essas pessoas que podem tomar um tiro, ser agredidas por aqueles que acham que podem tudo por estarem pagando. É uma violência voltada para a população negra, em um espaço de trabalho que é destinado à população negra. O racismo é tratado como algo moral, pessoal, comportamental. E nunca dimensionado enquanto uma estrutura. Todo o Estado e a sociedade deveriam ser cobrados e responsabilizados”, complementa o pesquisador.

O caminho para ter relações de trabalho justas e antirracistas passaria por uma transformação social profunda, com mudança de consciência coletiva, analisa Leonardo Dias. Mas, de forma imediata e específica sobre a situação dos entregadores, ele cobra atuação mais incisiva das plataformas digitais que os empregam, como o iFood.

“É necessário um trabalho reflexivo e crítico dessas plataformas. Se isso for do interesse delas também. Porque, pela lógica do capital e do lucro, será que é importante para elas que o trabalhador tenha segurança? A segurança de não sofrer racismo no ambiente de trabalho? Depois de uma jornada exaustiva, ter a possibilidade de morrer por conta disso? Há interesse em resolver e lidar com isso, estabelecer políticas antirracistas? Ou está tudo bem, porque morreu um, coloca mais dois que estão interessados no trabalho também?”, questiona o pesquisador.

Dados e iniciativas do iFood

A empresa iFood disse que tem uma central de apoio jurídico e psicológico para tratar casos de violência contra os entregadores. Em 2024, foram notificadas 13.576 denúncias de ameaça e agressão física à plataforma. Em 16% dos casos atendidos, os problemas aconteceram porque o cliente exigiu que os entregadores subissem nos apartamentos.

O Rio de Janeiro é considerado o lugar mais crítico, o que fez a empresa criar a primeira central física de atendimento para tratar casos como esses, na Vila da Penha, bairro da zona norte. Também foi lançada uma campanha específica, com o nome Bora Descer, para conscientizar as pessoas que elas têm que pegar o pedido.

“A iniciativa recebe denúncias do Brasil todo. Existem áreas onde os problemas são maiores. No caso do Rio, com mais incidentes, isso pode acontecer pelo fato de ser uma cidade que enfrenta desafios socioeconômicos, como desigualdade de renda, falta de acesso aos serviços básicos, além de altos índices de violência urbana. E esses problemas podem se manifestar nas interações entre entregadores e clientes”, explica Dione Assis, fundadora da Black Sister in Law, coletivo de advogadas negras criminalistas responsável pela central de atendimento do iFood.

Dione Assis entende que existe uma naturalização das agressões e que, muitas vezes, elas são vistas como parte constituinte da atividade de entregador. A principal explicação para esses comportamentos, segundo ela, é o racismo.

“Há estudos que comprovam que os entregadores no Brasil são majoritariamente homens pretos e pardos. Isso é uma informação importante porque, no imaginário do cliente, necessariamente virá ao seu encontro uma pessoa com essas características. O que dá a ele a sensação de que pode agir assim, com determinadas exigências. E isso pode gerar uma situação de discriminação desses trabalhadores”, diz a advogada.

Direitos trabalhistas e sociais

O Ministério Público do Trabalho (MPT) disse estar atento aos episódios de agressão e humilhação contra os entregadores e destacou a existência de normas específicas que proíbem o racismo e outras formas de discriminação no ambiente de trabalho.

“Existem disposições constitucionais que vedam condutas discriminatórias contra os trabalhadores. Por exemplo, a Lei 9.029, que proíbe qualquer prática discriminatória e limitativa nas relações do trabalho. Para o MPT, as empresas que exploram esse tipo de atividade devem garantir que os trabalhadores não sofram qualquer tipo de discriminação e possam desenvolver suas atividades com segurança, para que não sofram nenhum dano nenhum ou agravo à saúde”, disse a procuradora do trabalho, Juliane Mombelli.

O MPT também reforçou que as empresas proprietárias dos aplicativos de entrega são responsáveis pela segurança dos trabalhadores e devem assumir a responsabilidade pelo cumprimento dos direitos deles.

“Essas plataformas digitais devem implementar medidas de proteção, independentemente do questionamento quanto à natureza jurídica dos vínculos que os trabalhadores têm com as empresas. Ou seja, é dever dos empregadores e das empresas proprietárias de plataformas monitorar e avaliar regularmente todos os riscos e impactos na rotina de trabalho”, afirma Juliane.

PM que atirou no entregador não foi preso; juristas opinam sobre o caso

Em mais um caso de violência contra um entregador que trabalha vinculado a aplicativo, Nilton Ramon Barromeu de Oliveira, de 25 anos, foi baleado à queima-roupa na noite de segunda-feira por um policial militar após ter se recusado a levar o produto até a porta da casa da cliente, esposa do PM, em um condomínio de Vila Valqueire, zona Oeste do Rio.

O tiro foi disparado após uma discussão, gravada em vídeo por Oliveira. Nas imagens, é possível ver que o entregador está desarmado enquanto o cabo PM Roy Martins Cavalcanti empunhava uma pistola.

Atingido na coxa, o jovem passou por duas cirurgias e está em estado grave, de acordo com o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier. Após o crime, o policial atirador se apresentou na 32ª DP (Taquara), alegou legítima defesa e foi liberado, levando sua a arma. O caso foi registrado como lesão corporal.

Para o jurista Lenio Streck, o PM deveria ter sido preso em flagrante. “Incrível. O Brasil não se ajuda. A polícia não se ajuda. Presos mesmo são as vítimas”, criticou ele, ao ICL Notícias. “Somos reféns desse passado violento que se realiza no presente e que se projeta forte no futuro. Nesse crime cometido de forma bárbara — atirou na perna do entregador — o autor deveria estar preso. Sem dúvida”. Streck classifica a situação dessa forma: “‘Normal’ num país anormal”.

Também o jurista Pedro Serrano opina que o policial não poderia ficar em liberdade depois do depoimento. “Uma das hipóteses para a prisão em flagrante é que pode ser feita logo depois do crime. Na minha opinião, o delegado deveria ter mantido o atirador preso em flagrante”, avalia.

Serrano admite que pode haver interpretação em sentido diferente.

Mas, além da perplexidade diante de mais um caso de violência gratuita, o caso levanta algumas perguntas de fácil resposta:

Se o homem negro tivesse atirado no policial branco, seria liberado do flagrante?

Nessa hipótese, o caso também seria registrado como lesão corporal e não como tentativa de homicídio?

O homem negro poderia ir para casa com sua arma?

O jurista Marco Aurélio de Carvalho acredita que as circunstâncias para prisão em flagrante do policial estavam mais do que comprovadas. “Foi uma liberalidade, digamos, injustificada, e na minha opinião ilegal inclusive, da autoridade policial, que é quem verifica se as condições do flagrante estão ou não estão presentes”, diz o advogado. Ele classifica o caso como triste.

“Respondendo a essa pergunta, a realidade brasileira mostra que se fosse o contrário seguramente o rapaz negro estaria preso. Não tenha dúvida nenhuma”, lamenta Carvalho.

Familiares de entregador baleado no RJ são coagidos por PMs em hospital

Os familiares do entregador Nilton Ramon de Oliveira afirmaram que foram intimidados por policiais militares no Hospital Salgado Filho, onde o jovem está internado em estado grave.

O cunhado do entregador, Luiz Carlos, relatou que, enquanto sua esposa concedia uma entrevista, policiais gravaram e zombaram da situação. Eles buscam por medida protetiva e pedem por justiça.

“Ontem [terça-feira], estávamos na porta do Salgado Filho, e, enquanto minha esposa dava entrevista no hospital, tinham policiais gravando, tirando foto, zombando e rindo. Na minha concepção, eles são pagos para proteger, não coagir, e ela se sentiu coagida”, disse Luiz Carlos ao RJ1, da TV Globo.

Diante do acontecido, o cunhado da vítima se reuniu na quarta-feira (6) com a Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). “Eu clamo por justiça. A gente não sabe o que pode acontecer. O policial cometeu uma tentativa de homicídio contra meu cunhado, não pode ficar impune”, afirmou.

Em entrevista ao programa “Encontro”, da TV Globo, o também entregador Yuri Oliveira contestou a justificativa do PM, afirmando não ter visto Nilton fazendo qualquer movimento para pegar a arma de Roy.

Policiais de SP também intimidam familiares de vítimas

Familiares de vítimas da Operação Verão, que está em curso na Baixada Santista, no litoral paulista, desde fevereiro, estão sendo intimidados por policiais do governo Tarcísio de Freitas. Segundo os parentes, eles têm comparecido aos velórios e enterros dos mortos para pressioná-los. A informação é da coluna da jornalista Monica Bergamo na Folha de S. Paulo.

Os depoimentos foram dados a uma comitiva formada por representantes de entidades de defesa dos direitos humanos, que viajou ao local no domingo (3) para ouvir as famílias. O número de óbitos chegou a 39 desde a morte do soldado da Rota Samuel Wesley Cosmo, no dia 2 do mês passado. A Operação Verão é mais uma operação de vingança da polícia paulista, assim como ocorreu no ano passado, quando 28 pessoas foram mortas na Operação Escudo, iniciada após o assassinato do também soldado da Rota Patrick Bastos Reis.

Apesar dos nomes diferentes (Verão e Escudo), as investidas dos policiais são semelhantes, ocorrendo principalmente nas periferias de Santos, São Vicente e Guarujá.

“Além de pegar detalhes de como se deram os assassinados, o que chamou a nossa atenção foi a atitude da polícia, pós-chacina, de intimidar familiares para evitar denúncias”, diz o presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), Dimitri Sales, que integrou a comitiva.

“Há episódios de policiais acompanhando velórios e enterros de vítimas. Há imagens da polícia dentro do cemitério. Há relatos de agentes entrando na casa para quebrar coisa e intimidar”, afirma.

O clima de ameaça seria tamanho, segue ele, que a comitiva iria se reunir com cinco famílias no domingo, mas três cancelaram o encontro com medo de retaliação.

A partir dos depoimentos colhidos, o grupo deve elaborar um relatório semelhante ao que foi apresentado ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, na semana passada.

Como mostrou a coluna, o documento denunciou casos de execução sumária, tortura, ameaças e abusos por parte da atuação de agentes da Polícia Militar (PM). Os relatos incluíam tortura com saco plástico e policiais sobrepondo cadáveres uns aos outros para formar o símbolo da cruz.

A casa grande 2.1

Muita gente no Brasil insiste em colocar no terreno da coincidência e dos casos isolados o que quem olha a história do país com honestidade e cuidado enxerga como projeto de nação arquitetado para o longuíssimo prazo. Tudo tem conexão e não se trata de “teoria da conspiração”. É metodologia testada e aprovada por séculos de colonização. É a tecnologia da exclusão devidamente atualizada. É a casa grande dois ponto um.

Esta semana tivemos mais dois episódios para a enciclopédia de exemplos neste campo. O entregador de comida baleado pelo cliente e a censura ao livro “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório.

Como dizem no jargão do futebol, a regra é clara. Chegou a comida no edifício, o cliente desce, fornece o código, pega o seu ranguinho e sobe para matar sua fome. Ponto final? Não.  Como boa sociedade acostumada a ter amas, mucamas, andas (os homens que carregavam cadeirinhas com pessoas pelas ruas), criadas e criados, entrar em um elevador e ir na direção do entregador pode parecer humilhante demais, trabalho demais. É preciso que chegue nas mãos sem esforço, no máximo conforto possível. “Eu pago, então devo ser servido e não servir”.

E assim temos um farto noticiário de violências racistas e classistas contra profissionais que estão num perigoso, exaustivo e mal remunerado “corre” pela sobrevivência. Violências que por vezes alvejam esses corpos literalmente, com intenção de matar.

Na outra ponta, no campo intelectual, o mesmo Brasil colônia que despreza trabalhadores de baixa renda, se entende como balizador moral da nação. Como o racismo é um marcador da nossa formação, como ele é argamassa desta mesma casa grande com softwear atualizado que oprime entregadores em pleno século 21, é ele também que embasa os ataques aos pretos que não estão na bicicleta com a mochila de comida nas costas, mas escrevendo as histórias que em muito explicam, denunciam e revelam os mecanismos deste país ainda hipócrita e mantenedor de privilégios.

Numa demonstração do quanto pode ser perniciosa uma campanha de difamação, uma profissional de educação retira duas frases com alguns palavrões sexualizados e racializados do livro “O avesso da pele” e, indignada, vai para as redes falar do absurdo que é ter a obra nas escolas.

Um livro ganhador do Prêmio Jabuti, avaliado por outras dezenas de educadores e adotado em milhares de escolas, mas toda esta gente é tida como ignorante pela professora ofendida e pelo visto não sabem o que é bom para jovens do ensino médio.  Adolescentes que, às vezes dentro própria escola, passam horas sem mediação nas redes sociais em contato com todo tipo de linguajar, notícias falsas, conteúdos para lá de violentos e duvidosos com teor sexual, piadas racistas, machistas, etc. Tudo isso pode. O que não pode é um livro que justamente problematiza o racismo nas relações, inclusive as que acontecem na cama.

O Brasil passou mais de 300 anos da sua história sem permissão para publicar livros em solo nacional. O que era lido nestas bandas precisava passar pelos censores da metrópole e, mesmo depois deste período, livros sempre foram objetos temidos por uns, detestados por outros e desejados por quem intuía que ali poderia ser um campo onde o pensamento e o espírito poderiam voar sem amarras.

Tudo isto, obviamente, tem efeitos na forma como o país percebe a literatura até hoje e com reflexos na educação, este lugar interrompido e corrompido para uma maioria negra e pobre, que cedo precisa se apressar para pagar o jantar com o dinheiro do almoço vendido, às vezes, com o mochilão de comida nas costas e o pé na tábua de uma bicicleta ou de uma moto de segunda mão.

Sobre a dona professora tão moralista, escandalizada e indignada, que expôs a escola, seus colegas, os alunos, o autor, a editora e o sistema de ensino ao ridículo com suas observações superficiais de quem não leu a obra, dizem que será candidata a vereadora. Se for verdade, grande chance de ser eleita pelos que estão ávidos pela volta de um passado distante e recente de retrocessos.

Sobre o policial que atirou no jovem entregador… alegou legítima defesa, foi liberado na hora e, mesmo que aconteçam desdobramentos ruins para ele, estas informações bastam.

Por fim, uma outra notícia desta mesma semana: em presídios de Minas Gerais, onde o super encarceramento de homens pretos não é diferente do restante do país, livros não podem entrar.  Apenas os de autoajuda… e a Bíblia. Quem determina a leitura que alivia quem está na agonia da prisão?  Voltamos aos tempos do censor da coroa, pois, sim, a literatura é verdadeiramente um campo onde o pensamento e o espírito podem se libertar e voar sem as amarras.

Não são casos isolados e desconectados. São faces do combo de Brasil colônia com roupas de século 21. É este mesmo o país que queremos?


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