27/04/2024 - Edição 540

Brasil

Mil denúncias de escravidão estão paradas devido a protesto de auditores

OIT: lucros anuais do trabalho forçado chegam a US$ 236 bilhões ao ano

Publicado em 26/03/2024 10:14 - Leonardo Sakamoto (UOL), Daniella Almeida (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Imagem: Sérgio Carvalho/Inspeção do Trabalho

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Pelo menos mil denúncias de casos de trabalho análogo ao de escravo deixaram de ser apuradas, desde janeiro, por conta de protesto de auditores fiscais do trabalho. Eles exigem que o governo federal cumpra um acordo firmado com a categoria em 2016. A demora em resolver o impasse pode levar a consequências “catastróficas” na avaliação da sociedade civil.

Auditores que atuam no combate à escravidão afirmaram à coluna que os grupos e profissionais dedicados ao tema nas Superintendências Regionais do Trabalho nos estados estão paralisados. E das cinco equipes nacionais do grupo especial de fiscalização móvel, apenas três estão operando – e parcialmente.

Outras 200 denúncias estão em triagem, o que pode aumentar o número de casos não fiscalizados. Minas Gerais, São Paulo, Pará, Rio de Janeiro e Goiás são as unidades com maior quantidade de denúncias não atendidas.

De acordo com o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), houve uma redução de 65% nas ações de enfrentamento ao trabalho escravo em fevereiro deste ano se comparado ao mesmo mês em 2023.

A maioria das denúncias se refere a atividades de safristas de curta duração que, por isso, demandam rápido atendimento.

“É importante entender que boa parte do trabalho escravo ocorre em atividades sazonais. E uma denúncia que não for averiguada em tempo útil está definitivamente perdida, ou seja, o trabalhador vai perder seus direitos e ponto. Não haverá nenhuma reparação do dano sofrido.” A avaliação foi feita à coluna por Xavier Plassat, coordenador da campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra para a erradicação desse crime.

Ele explica que cerca de 30% dos resgatados em lavouras em 2023 foram encontrados entre janeiro e março. E dois terços dos mais de 600 escravizados na cana-de-açúcar ganharam a liberdade nos primeiros três meses do ano.

“Essa paralisação, resultado de uma mobilização justa por parte dos auditores fiscais, vai ter consequências definitivamente catastróficas, sem possibilidade de ser remendadas, porque não se recupera o que foi impossível de fiscalizar no tempo adequado”, afirma.

Esta coluna já havia adiantado, em janeiro, que auditores fiscais do trabalho que atuam no combate ao trabalho escravo estavam entregando seus cargos e que, com isso, operações de resgates de trabalhadores iriam ser suspensas na maior parte do país.

A principal demanda dos auditores é a regulamentação do bônus de eficiência, que pode aumentar a remuneração deles diante do cumprimento de metas de produtividade, acordado em 2016. Isso equipararia a categoria a outras no governo. Também pedem o aumento dos recursos à Inspeção do Trabalho e a melhoria das condições de trabalho.

Além do combate ao trabalho escravo, outros setores da fiscalização trabalhista também estão com atividade reduzida.

A coluna apurou no governo federal que a questão da regulamentação está pronta para análise da Casa Civil.

“Não dá para entender. Em dezembro, foi fechado acordo salarial com a Polícia Rodoviária Federal, que foi usada para tentativa de golpe de Estado pelo governo anterior, mas as categorias que resistiram ao processo de desconstrução, como nós e as equipes do Ibama e do ICMBio, estão sendo ignoradas”, afirmou à coluna um auditor fiscal do trabalho envolvido na mobilização.

No Concurso Nacional Unificado, o governo abriu 900 vagas para repor o déficit de auditores fiscais do trabalho. O salário inicial é de R$ 22.921,71.

Brasil flagrou, em 2023, maior número de escravizados desde 2009

O Brasil encontrou 3.190 trabalhadores em condições análogas às de escravo em 2023. O número é o maior desde os 3.765 resgatados em 2009. Foram 598 operações de fiscalização e mais de R$ 12 milhões de verbas trabalhistas pagas nos resgates, dois recordes no período de um ano, segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego.

Com isso, o país ultrapassou 63,4 mil trabalhadores flagrados desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995. A totalização está passando por revisão e pode oscilar para cima.

A atividade de onde mais trabalhadores foram resgatados foi o cultivo de café, seguida pelo plantio de cana-de-açúcar. Mas considerando a quantidade de operações de resgate, a atividade econômica campeã foi a criação de bovinos de corte, seguida por serviços domésticos. Goiás foi o estado com o maior número de resgatados, acompanhado por Minas Gerais.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) e/ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

OIT: lucros anuais do trabalho forçado chegam a US$ 236 bilhões ao ano

O trabalho forçado em todo o mundo gera lucros ilegais médios de US$ 236 bilhões por ano na economia privada, de acordo com o relatório Lucros e pobreza: aspectos econômicos do trabalho forçado, divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no último dia 20.

A cifra apresentada indica um aumento de 37% (US$ 64 bilhões) dos lucros ilegais vindos do trabalho forçado, quando comparado ao resultado de dez anos atrás, em 2014. A OIT justifica que o resultado é fruto tanto do crescimento do número de pessoas forçadas a trabalhar, como da elevação dos lucros gerados pela exploração das vítimas.

De acordo com a entidade, o trabalho forçado ou compulsório se refere a situações em que as pessoas são coagidas a trabalhar por meio do uso de violência, intimidação, sanção ou por meios como a servidão por dívidas, a retenção de documentos de identidade ou ameaças de denúncia às autoridades de imigração sobre a existência de migrantes ilegais. No Brasil, a situação é descrita como trabalho análogo à escravidão.

O estudo sugere que, frequentemente, as vítimas de trabalho forçado são recrutadas ilegalmente. Em geral, o trabalhador não se oferece espontaneamente para aquela atividade compulsória.

Além disso, a OIT define como lucros ilegais os salários que, por direito, pertencem aos trabalhadores, mas que ficam nas mãos dos exploradores desta mão de obra, a partir de coação.

Detalhamento

O relatório da OIT estima que os traficantes de pessoas e criminosos geram cerca de US$ 10 mil por vítima do trabalho forçado. Há uma década este lucro alcançava US$ 8,2 mil por vítima (valor corrigido pela inflação).

O levantamento identifica a Europa e a Ásia Central como as regiões com os maiores lucros ilegais (US$ 84 bilhões), seguidas pela Ásia e Pacífico (US$ 62 bilhões), pelas Américas (US$ 52 bilhões), por África (US$ 20 bilhões) e pelos países dos Estados Árabes (US$ 18 bilhões).

No entanto, quando considerados os lucros ilegais anuais pela exploração laboral por vítima, o valor mais elevado é o da Europa e Ásia Central, seguido pelos Estados Árabes, Américas, África, Ásia e Pacífico.

Entre as modalidades de trabalho ilegal mais praticadas, a exploração sexual comercial forçada é a mais lucrativa e representa mais de dois terços (73%) do total dos lucros ilegais. A modalidade corresponde a 27% do número total de vítimas de trabalho forçado. A explicação para isso é de que o lucro médio por vítima da exploração sexual comercial forçada (US$ 27,25 mil) é bem superior ao lucro obtido por outras formas de exploração do trabalho (US$ 3,68 mil).

Depois da exploração sexual, os demais trabalhos forçados com os maiores lucros anuais ilegais são:

– Indústria (US$ 35 bilhões), incluindo mineração e pedreiras, construção e manufatura;

– serviços (US$ 20,8 bilhões): atacado e comércio, alojamento, alimentação, arte e entretenimento, serviços pessoais, administrativos e de apoio, educação, serviços sociais, de saúde, transporte e armazenamento;

– campo (US$ 5,0 bilhões): agricultura, pecuária, silvicultura, caça e pesca;

– trabalho doméstico (US$ 2,6 bilhões).

Em 2021, havia em todo o planeta 27,6 milhões de indivíduos em situação de trabalho forçado, o que corresponde a 3,5 pessoas para cada mil pessoas no mundo. Entre 2016 e 2021, o número de pessoas em trabalho forçado aumentou em 2,7 milhões.

Recomendações

O relatório recomenda a aplicação de leis para travar os fluxos de lucros ilegais; a responsabilização dos autores dos crimes; a formação dos responsáveis pela aplicação da lei, reforço dos quadros jurídicos, alinhamento com as normas jurídicas internacionais; expansão da inspeção do trabalho em setores de alto risco; melhor coordenação entre a aplicação do direito do trabalho e do direito penal.

Como medidas adicionais à aplicação da lei, o relatório da OIT sugere que se dê prioridade a abordagens mais profundas sobre as causas do problema e sobre a proteção das vítimas do trabalho forçado.

Em nota à imprensa, o diretor-geral da OIT, Gilbert F. Houngbo, afirmou que o trabalho forçado perpetua os ciclos de pobreza e a exploração e atinge a dignidade humana.

“A comunidade internacional deve se unir, urgentemente, para tomar medidas para acabar com esta injustiça, salvaguardar os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras e defender os princípios de justiça e igualdade para todas as pessoas”, pontua o diretor-geral da OIT.

Para melhor orientar as ações dos países, a OIT aprovou a Convenção n° 29 do trabalho forçado ou obrigatório, durante a 14ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, ocorrida em Genebra, em 1930. A Recomendação n° 203 da OIT também trata do assunto.

Brasil

No Brasil, durante o ano de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 3.190 trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão, maior número de resgates dos últimos 14 anos.

Os resgates foram resultado de fiscalizações de 598 estabelecimentos urbanos e rurais em diversas partes do país. As ações dos fiscais possibilitaram o pagamento de R$ 12,87 milhões em verbas salariais e rescisórias aos resgatados, como forma de responsabilizar as empresas que se beneficiam de trabalho escravo.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma remota e sigilosa no Sistema Ipê, coordenado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com a OIT.

As situações que, em conjunto ou isoladamente, podem ser caracterizadas como de trabalho análogo à escravidão e, portanto, devem ser denunciadas são as seguintes:

– Submissão de trabalhador a trabalhos forçados;

– submissão de trabalhador a jornada exaustiva;

– sujeição do trabalhador a condições degradantes de trabalho;

– restrição da locomoção do trabalhador ou retenção dele no local de trabalho, seja por coação, imposição de dívida, cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou de um preposto, posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador.

O ministério também mantém atualizada a Lista Suja do Trabalho Escravo, com o cadastro de empregadores que submeteram pessoas a condições ilegais de trabalho.


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