27/04/2024 - Edição 540

Brasil

Marielle foi morta para que Brazão conseguisse aprovar PL de grilagem de terras na zona oeste do Rio

Caso mostra o Estado preso entre a polícia que mata e a que encobre

Publicado em 25/03/2024 10:40 - Cecília Olliveira e Tatiana Dias (Intercept Brasil), Leonardo Sakamoto, Josias de Souza e Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Tomaz Silva - Agência Brasil

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O diretor-geral da Polícia Federal diz que são várias as situações que motivaram o deputado Chiquinho Brazão, o irmão, Domingos Brazão, e Rivaldo Barbosa, a planejarem e encomendarem a morte da vereadora Marielle Franco em 2018.

A mais latente é uma disputa imobiliária: os Brazão tinham interesse em fazer loteamentos na zona oeste do Rio, e Marielle se opunha ao empreendimento. O assassino Ronnie Lessa receberia terrenos como pagamento pelo crime.

Em seu relatório final sobre o caso Marielle, a Polícia Federal, e menciona que Chiquinho foi “surpreendido por dificuldades na obtenção de votos para a aprovação [do projeto], sendo certo que, em primeiro turno, com votos contrários da bancada do Psol e, consequentemente, de Marielle Franco, houve a apresentação de um substitutivo, ampliando a abrangência territorial da lei”.

Segundo as investigações, em 2017 os Brazão haviam infiltrado Laerte Silva de Lima no Psol para monitorar Marielle Franco, pela qual eles tinham “repugnância”. Lima e a mulher se filiaram ao partido naquele ano.

Foi por meio do infiltrado que os milicianos souberam que a vereadora pedia para a população para que não aderisse aos loteamentos erguidos em áreas de milícia. Em 2021, a polícia encontrou documentos que apontavam que Laerte lavou milhões de reais para a milícia com criptomoedas. Ele chegou a ser investigado no caso Marielle, mas isso não foi adiante.

Projeto foi aprovado no dia da morte de Marielle

Na Câmara de Vereadores carioca, Chiquinho Brazão, hoje deputado federal pelo União Brasil – e na época do crime vereador pelo Avante –, tinha um interesse especial no PLC n.º 174/2016, projeto sobre regularização de loteamentos em Vargem Grande, Vargem Pequena, Itanhangá e Jacarepaguá.

O projeto, proposto por Chiquinho, visava favorecer a expansão de construções irregulares na zona oeste, área onde ele, Marcelo Siciliano e Junior da Lucinha disputam votos. Ele já havia tentado aprovar um projeto semelhante anos antes.

Em depoimento que consta no relatório da PF, um assessor da Câmara disse que “o risco da não aprovação do PLC 174/2016 teria causado grande insatisfação do Vereador Chiquinho Brazão com a bancada do Psol e, consequentemente, com Marielle, que votou contra por entender que o projeto não atendia ‘áreas carentes’, mas regiões de classe média e alta”.

Chiquinho não gostou da oposição do Psol e de Marielle. Considerava que o voto contrário da vereadora, e a consequente aprovação apertada do projeto, geraria desgaste político a ele. Conforme a testemunha, Chiquinho ficou irritado, algo incomum para alguém habitualmente “discreto e tranquilo”.

A testemunha apontou o Psol como o “calcanhar de Aquiles” do MDB, partido de Brazão, na época. Ela citou ainda um outro caso que desestabilizou ainda mais o partido, que estava sofrendo os impactos da Operação Lava Jato. Uma ação popular do Psol impediu que o ex-deputado Edson Albertassi, do MDB, fosse nomeado ao Tribunal de Contas do Estado. Isso impediria qualquer gerência do MDB sobre a operação para o Superior Tribunal de Justiça.

A testemunha disse ainda que a morte de Marielle “paralisou o Psol no Rio de Janeiro, uma vez que amedrontou os parlamentares, assessores e demais empregados do partido”.

O relatório da Polícia Federal diz que o descontentamento de Brazão “ocorreu em período compatível com aquele mencionado por Ronnie Lessa” em colaboração premiada, no segundo semestre de 2017, “o que pode ter sido o estopim para que fosse decretada a pena capital de Marielle pelos irmãos Brazão”.

Marielle e Anderson foram executados no dia 14 de março de 2018. Foi coincidentemente a mesma data em que foi aprovada a redação final do PLC n.o 174/2016 no Plenário da Câmara.

O PLC acabou vetado pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, do Republicanos, em 5 de abril de 2018. O veto foi derrubado cerca de um mês depois e a Lei Complementar 188/2018 foi publicada. A vontade de Chiquinho foi cumprida.

Caso Marielle mostra Rio preso entre a polícia que mata e a que encobre

A revelação de que o então chefe de polícia Rivaldo Barbosa foi o avalista para que matadores de aluguel executassem a vereadora Marielle Franco a serviço da milícia mostra como o Rio de Janeiro está emparedado entre uma polícia que mata e outra que acoberta seus crimes. Quem é negro, pobre e favelado tem maiores chances de perecer entre as duas.

O Estado tem registrado um aumento no número de chacinas em comunidades pobres pelas mãos de agentes de segurança nas gestões Wilson Witzel e Claudio Castro, como aquelas ocorridas no Salgueiro, na Vila Cruzeiro, no Jacarezinho. Esta última, aliás, é exemplo de como o processo de passar pano também ocorre à luz do dia.

Em 6 de maio de 2021, quando 27 moradores e um policial civil foram mortos em uma ação violenta nessa última comunidade, um delegado afirmou em coletiva à imprensa: “Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante”. Investigador, promotor, juiz e carrasco em uma figura só. Melhor seria assumir o discurso de policial-sol e dizer “a lei sou eu”.

Ao mesmo tempo, as milícias (mutação teratológica da polícia) conquista territórios, principalmente na zona oeste da capital fluminense, fazendo acordos com o narcotráfico, controlando a expansão imobiliária com a regularização de ocupações ilegais (motivo que estaria na gênese da morte de Marielle), ganhando dinheiro com as transações comerciais das comunidades, direcionando os votos dos moradores para eleger as necessidades do crime.

A investigação que levou à prisão de Domingos e Chiquinho Brazão e do próprio Rivaldo mostra o ex-chefe da área de Homicídios e posteriormente de toda Polícia Civil como um homem do crime dentro na cúpula da gestão estadual. Sua função e a de sua equipe: atrapalhar o curso de investigações, protegendo o jogo do bicho, as milícias e qualquer um que pagasse por isso.

Como viver em uma sociedade em que a Polícia Militar mata e a civil acoberta, ou quando a Polícia Civil mata e a Militar acoberta ou quando a milícia mata e as duas acobertam?

Quando agentes de segurança passam a matar quem querem com a certeza de impunidade, temos a cristalização de uma sociedade miliciana em que as regras e normas que balizam a vida são deixadas de lado em nome do desejo do mais forte, ou melhor, do mais armado e do mais protegido.

Essa percepção de que tudo pode para quem tem um berro na cintura é compreendida pela população, que vê proliferar “homens de bem” decidindo resolver da forma como melhor entenderem os seus problemas sem a mediação da Justiça. É o cada um por si e o 38 ou a 9 milímetros sobre todos – lema de brigas de trânsito, questionamento de multas, discussões de casal.

Essa sociedade miliciana invadiu as sedes dos Três Poderes, em Brasília, como parte de uma tentativa tosca e violenta de golpe de Estado. Não queriam Justiça para o que achavam correto, queriam justiçamento, redirecionando o universo para o sentido de sua vontade com a força de suas próprias mãos.

A delação de Ronnie Lessa pode ir muito além de resolver a morte da Marielle Franco e Anderson Gomes. Como disse aqui ontem, abre a possibilidade de refundar instituições do Estado do Rio de Janeiro diante da percepção de podridão do sistema. Mas o sistema não para por conta própria, precisa ser parado.

Resta saber se a sociedade e o Estado brasileiro têm força para isso ou também já estão emparedados entre a morte e a impunidade.

Quem vai reestatizar a segurança no Rio?

Sabe-se desde Isaac Newton que dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Estava aí em cartaz, até domingo, a novela “Quem mandou matar Marielle?”. A prisão dos autores intelectuais do crime impõe a mudança do letreiro. Agora, está em cartaz uma antiga indagação: Quem vai reestatizar a segurança pública no Rio de Janeiro?

A investigação da Polícia Federal revelou um segredo de polichinelo: a criminalidade infiltrou-se no Estado. Os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, que contrataram a morte de Marielle, ocupam respectivamente as funções de conselheiro do Tribunal de Contas do estado e deputado federal. Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, os executores do crime, são egressos da PM.

Rivaldo Barbosa, o delegado da Polícia Civil que deveria elucidar os homicídios, está no bolso dos milicianos. O relatório no qual a PF fecha a conta do caso Marielle injeta as Forças Armadas na encrenca. Anota que Rivaldo foi nomeado chefe da Polícia Civil em 2018, pelo general Braga Netto, que comandava uma intervenção federal na segurança do Rio. Hoje, o general é coadjuvante do inquérito em que arde o alto-comando do golpe tentado por Bolsonaro.

Domingos Brazão foi de deputado estadual a conselheiro de contas em 2015. Coube ao então presidente da Alerj, o petista André Ceciliano, emitir o parecer favorável. Hoje, Ceciliano chefia a Secretaria de Assuntos Federativos do governo Lula 3. Eclético, Domingos já fez campanha no Rio para Dilma e Bolsonaro. O irmão Chiquinho foi à Câmara em coligação com o governador bolsonarista Claudio Castro.

Chiquinho pedia à Justiça Eleitoral aval para migrar do União Brasil para o Republicanos. Com a prisão, foi expulso do União antes de sentar praça na nova legenda. Os dois partidos compõem a coligação de Lula. Até o mês passado, o deputado integrava o secretariado do prefeito Eduardo Paes. Reassumiu a cadeira na Câmara ao saber que Ronnie Lessa levara os lábios ao trombone numa delação à PF.

Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, os executores de Marielle, prestavam serviço ao Escritório do Crime, estruturado por outros dois ex-PMs: o major Ronald Paulo Pereira e o capitão Adriano da Nóbrega. Ambos foram homenageados na Assembleia Legislativa do Rio com menções honrosas propostas pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Adriano enfiou uma ex-mulher e a mãe na rachadinha do gabinete do Zero Um.

As travas que retardaram a elucidação do caso Marielle por seis anos escancararam as entranhas do relacionamento promíscuo entre a criminalidade e o aparato estatal no Rio. As milícias aderiram à lógica das coalizões. Dominam territórios, controlam o voto, elegem bancadas e passam a indicar prepostos para cargos públicos, não apenas na área de segurança. Lula rompeu a inércia quando autorizou Flávio Dino a colocar a PF no encalço dos responsáveis pela criminosos. Deveria aprofundar o serviço, capitaneando um movimento pela reestatização da segurança —no Rio e em outras praças. Resta saber se terá ousadia compatível com o tamanho da empreitada.

Caso Marielle consolida-se como um vexaminoso crime do Estado

A prisão dos três “autores intelectuais” da execução de Marielle Franco -o deputado Chiquinho Brazão, o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro Domingos Brazão e o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa— consolida a execução da vereadora do PSOL e seu motorista Anderson Gomes como um vexaminoso crime estatal. O vexame é potencializado pelo fato de que os irmãos Brazão, estrelas do epílogo escrito pela Polícia Federal, já frequentavam o rol dos suspeitos desde o prefácio do crime. Foram blindados com o auxílio de Rivaldo, um delegado que se dizia “amigo” de Marielle enquanto era remunerado pela milícia.

Ironicamente, a família de Marielle, escorando-se na confiança que o delegado Rivaldo inspirava, guerreou contra a federalização das investigações, sugerida desde 15 de março de 2018, um dia depois do crime, pela então procuradora-geral da República Raquel Dodge e pelo então ministro da Segurança Pública Raul Jungmann. A manutenção do caso no âmbito estadual foi vital para que os criminosos conseguissem embaralhar as apurações por seis anos. A coisa mudou no aniversário de cinco anos do crime, quando Flávio Dino, primeiro ministro da Justiça de Lula 3, incluiu no jogo as cartas de que dispunha a Polícia Federal.

Em setembro de 2019, no último dia de sua gestão como procuradora-geral, Raquel Dodge tentou novamente nacionalizar o caso. Requisitou a federalização ao Superior Tribunal de Justiça, foro do conselheiro de contas do Rio Domingos Brazão. O pedido foi indeferido. Àquela altura, já estavam presos Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, hoje executores confessos do crime. Os irmãos Brazão —Domingos e o agora deputado Chiquinho— já eram tratados como suspeitos de encomendar a execução de Marielle.

Ou seja: a PF não partiu do zero ao ser acionada por Flávio Dino, no ano passado. Mesmo o envolvimento do delegado Rivaldo Barbosa, que chegou a consolar a família de Marielle após o crime, já era cogitado há pelo menos cinco anos. Em 2019, o atual superintendente da PF no Rio, Leandro Almada, havia coordenado uma investigação das obstruções que travavam a elucidação do caso. Em relatório de maio daquele ano, Almada anotou que a atuação de Rivaldo merecia ser averiguada, pois suspeitava-se que ele recebera R$ 400 mil para acobertar o crime.

A presença no epílogo da investigação de personagens que frequentam a cena desde o prefácio do caso Marielle reforçam duas evidências: 1) As relações promíscuas entre criminosos, autoridades e o aparato policial produzem um câncer que carcome as entranhas do Estado, tornando-o coautor do crime. 2) O tumor não será extirpado sem a participação do governo federal. Nesse contexto, a elucidação tardia do caso Marielle deveria ser considerada não como o fim, mas como o início de um processo de reestatização do combate ao crime organizado no Brasil.

Justiça sobre Marielle é importante para toda sociedade brasileira, diz ONU

O Alto Comissariado da ONU para Direito Humanos afirmou que está seguindo “de perto” o caso envolvendo o assassinato de Marielle Franco.

Num comunicado enviado ao UOL, a entidade destaca: “O assassinato de Marielle Franco é um caso emblemático, e é extremamente importante, não apenas para sua família, mas para a sociedade brasileira como um todo, que seja feita justiça plena em seu caso”.

O UOL revelou com exclusividade que a ONU passou a acompanhar o caso de Marielle, desde os primeiros dias do processo. Quando Jair Bolsonaro tomou posse, em 1 de janeiro de 2019, havia uma carta sobre a mesa de sua administração. Nela, relatores da ONU cobravam explicações sobre a morte de Marielle Franco.

Dois meses depois, Damares Alves fez sua primeira visita às Nações Unidas, na condição de ministra dos Direitos Humanos. Mas, apesar da pressão internacional e das cobras de órgãos estrangeiras, ela optou por se calar diante da morte da vereadora.

Longe do foco da imprensa, nos bastidores, a ONU e governos estrangeiros passaram a cobrar o Brasil por respostas. O debate chegou a fazer parte de negociações, como a criação de um mecanismo nas Nações Unidas que iria examinar a questão do racismo.

O governo Bolsonaro fez de tudo para esvaziar o estabelecimento do mecanismos. Mas, com a pressão global também pela morte de George Floyd, nos EUA, o processo foi adiante.

Quando o primeiro relatório surgiu, o caso de Marielle Franco era um dos citados e tomado como emblemático no mundo.

Em 2023, a ONU apontou que era necessário que os mandantes do crime enfrentassem a Justiça, e alertou que o ex-presidente, Jair Bolsonaro alimentou a violência política no país. “Não deveria haver impunidade: não apenas para aqueles que realmente executaram o assassinato de Marielle Franco, mas também para aqueles que presumivelmente o ordenaram”, disse Jan Jarab, representante do Escritório de Direitos Humanos da ONU na América do Sul.

“Seu assassinato foi um caso emblemático, fazendo parte de uma preocupante tendência mais ampla de violência política – de discurso de ódio misógino, racista e homofóbico, assédio on-line e ameaças de morte e, em alguns casos, ataques reais contra mulheres, particularmente mulheres negras, e pessoas LGBTIQ na política local ou nacional, ativistas e jornalistas”, disse.

“Esta tendência tem crescido nos últimos cinco anos, impulsionada em grande parte por apoiadores do ex-presidente Bolsonaro, que ele mesmo a alimentou”, alertou.

Na sede das Nações Unidas, em Genebra, a cúpula da entidade ainda recebeu nos úlrimos anos Anielle Franco e Monica Benício, que também denunciaram os obstáculos por parte da gestão anterior em fazer o tema avançar.

“É encorajador que o novo governo esteja tomando uma posição forte contra o racismo e todas as formas de discriminação e a nomeação da irmã de Marielle Franco, Anielle, como ministra da Igualdade Racial envia uma mensagem poderosa”, disse Jarab, ainda no ano passado.

“Entretanto, é claro que na sociedade brasileira a misoginia, o racismo e a homofobia são profundos. Esforços sustentados de toda a sociedade serão necessários para superar isto. O Escritório de Direitos Humanos da ONU está pronto para dar apoio ao Brasil a este respeito”, completou o representante.


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