02/11/2024 - Edição 550

Artigo da Semana

Israel optou por enfraquecer a Autoridade Palestina e fortalecer o Hamas: a consequência está aí

Ao classificar todos os palestinos como ‘animais’, o governo de Israel se esquece de que os próprios judeus foram assim definidos pelos nazistas

Publicado em 10/10/2023 9:24 - Reinaldo Azevedo - UOL

Divulgação

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O ataque do Hamas vai se tornando pior a cada momento, porque brutalidades novas vêm a público, às vezes por intermédio de vídeos publicados nas redes pelos próprios terroristas. Exaltam o que repugna almas sãs; orgulham-se da violência sem limites; experimentam uma espécie de êxtase da destruição. Líderes extremistas transformam seus militantes em cumpridores de tarefas. Não cabem a estes ponderação, reflexão, escolhas. Devem se transformar, no caso em particular, em máquina de matar e de subjugar. Afinal, há uma causa. Podem atuar também em “guerras” ditas “culturais” para mentir, espezinhar, destruir reputações. Se a causa existe, então tudo é permitido.

A pessoa que disser que sabe o desenho do futuro está mal informada. Eis um daqueles perigosos momentos em que tudo parece possível. O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, o “Bibi”, tonitrua que a sua resposta “vai mudar a história do Oriente Médio”. Está atordoado. Como não se cansa de lembrar a imprensa profissional do seu país, aquela comprometida com os fatos, este senhor dançou uma espécie de minueto com os terroristas que governam Gaza e julgava um golpe de esperteza a irrelevância a que relegava a Autoridade Nacional Palestina. O raciocínio primário era este: o mundo reconhece a ANP, que está na ONU como observadora, e considera Mahmoud Abbas o líder do povo palestino. Logo, se ficar claro que não lidera nada, o problema está resolvido.

O jornal “Israel Hayom” publicou um artigo devastador sobre o ataque e os descaminhos do governo. Sobre o tratamento dispensado ao Hamas e à ANP, escreveu: “Israel optou por enfraquecer a Autoridade Palestina e fortalecer o Hamas. Viu-o como um parceiro; evitou esmagá-lo e assegurou que recebesse dinheiro, trabalhadores e status — tudo isso só para que não agisse. O resultado foi pior do que qualquer um poderia imaginar: o Hamas conseguiu o que queria e atacou; Israel deu-lhe o que queria e sofreu as consequências”. Título do texto: “Um fracasso de proporções inimagináveis e um vácuo de liderança”.

Em editorial de impressionante dureza, o “Haaretz”, jornal mais importante do país, responsabiliza abertamente o primeiro-ministro pela tragédia. Volto ao ponto daqui a pouco. Uma das mais azeitadas e profissionais máquinas de guerra do mundo foi humilhada por uma milícia terrorista que, notem bem, não praticou um atentado por intermédio de algum infiltrado. Houve invasão de território, subjugação de esquadrões de segurança, enfrentamento armado.

A esmagadora maioria dos países, e nem poderia ser diferente, condenou os atos terroristas e se solidarizou com o país agredido. Mas não me parece que tenha dado ao, digamos, polêmico dirigente uma procuração “mudar a história do Oriente Médio”, porque há de se supor que, para tanto, ele teria de falar com alguns outros atores de palco tão vasto. O que isso parece anunciar, aí sim, é uma resposta que se anuncia brutal. Como se dará? O que tem em mente? Israelenses das áreas fronteiriças a Gaza já foram retirados da região.

Em um pronunciamento, ele se dirigiu aos mais de dois milhões de palestinos que moram em Gaza: “Todos os locais onde o Hamas está baseado, todos os locais onde o Hamas se esconde e age serão transformados em escombros por nós. Digo ao povo de Gaza: saiam daí agora, porque estamos prestes a agir em todos os lugares com toda a nossa força”.

Cabe indagar: “Saiam daí e vão para onde?” Não parece que os terroristas peçam licença para transformar residências e prédios públicos em base de operação. Também é conhecida a sua prática de recorrer a escudos humanos para que as ações do inimigo provoquem o maior número de baixas entre civis. “Então o país atacado não deve agir?” A pergunta seria burra. Qualquer que fosse o governante, e a resposta seria certa. A questão é saber como se dará essa reação.

“Estamos impondo um cerco total à Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade.” A fala é de Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel. Pois é… Os assassinos do Hamas são terroristas, não animais, que não praticam atrocidades dessa natureza. E a quase totalidade da população de Gaza é formada de pobres desgraçados — são “animais” inocentes da raça humana, como eram os israelenses assassinados pelos carniceiros.

A brutalidade do Hamas estarreceu o mundo. São imagens que não se apagam da memória — e da história de um povo. Convém que se considerem as consequências da uma incursão terrestre, que é dada como certa. Também ela está fadada a oferecer à opinião pública pencas de cadáveres de inocentes. Sem um senso de proporção e de razoabilidade, ver-se-ão menos terroristas mortos do que mulheres, crianças e homens sem vínculos com os assassinos.

“O RESPONSÁVEL”

Ainda no domingo, em editorial, o “Haaretz” mandou ver (tradução do site “Opera Mundi”):

“O desastre que se abateu sobre Israel no feriado de Simchat Torá é de clara responsabilidade de uma pessoa: Benyamin Netanyahu. O primeiro-ministro, que se orgulha de sua vasta experiência política e de sua insubstituível sabedoria em questões de segurança, não conseguiu identificar os perigos para os quais estava conscientemente conduzindo Israel ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação; ao nomear Bezalel Smotrich [atual ministro das Finanças de Israel, de extrema-direita] e Itamar Ben-Gvir [ministro da Segurança Nacional de Israel, do partido de extrema-direita Otzma Yehudit] para cargos importantes e ao adotar uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos.”

E prosseguiu:

“Um primeiro-ministro indiciado em três casos de corrupção não pode cuidar dos assuntos do Estado, pois os interesses nacionais estarão necessariamente subordinados a livrá-lo de uma possível condenação e de uma pena de prisão. Essa foi a razão para o estabelecimento dessa terrível coalizão e do golpe judicial promovido por Netanyahu, e para o enfraquecimento dos principais oficiais do Exército e da Inteligência, que eram vistos como oponentes políticos. O preço foi pago pelas vítimas da invasão no Negev Ocidental”

O “Israel Hayom” também se estende sobre os desatinos:

“O resultado foi uma continuação direta do pensamento de que nada é urgente; de que as coisas poderiam ser adiadas; de que o problema palestino teria sido resolvido porque os Emirados Árabes, o Bahrein e Marrocos assinaram acordos de reconhecimento conosco (e que logo a Arábia Saudita fará o mesmo). Durante todo esse tempo, Israel optou por ignorar o fato de que os palestinos estão aqui e não vão a lugar nenhum. Eles não aparecerão em Washington, Londres ou Riad pela manhã, mas em Gaza e no Kibutz Nirim. E quem não resolver o problema acabará por ter de lidar com um problema muito maior”.

A exemplo do Haaretz, a publicação aponta o fanatismo de extrema-direita, ironizando seu despreparo. Nada entende de defesa. Seria capaz de confundir nome de um rifle com o de um caça:

“Qualquer pessoa razoável poderia ver que o desastre era iminente e soar o alarme. O ministro da Defesa fez isso e foi demitido (e depois reintegrado com protestos de rua), e o chefe de gabinete e os chefes das organizações de segurança fizeram isso, mas o primeiro-ministro não quis ouvir. Ele é refém de políticos extremistas. Vale a pena notar que nenhum deles apareceu ultimamente uniformizado para ajudar Israel a salvar-se de si mesmo. De qualquer forma, a maioria deles não sabe a diferença entre uma unidade e uma brigada, entre um M-16 [rifle] e um F-16 [um caça], entre Nachal Oz e Kfar Aza [nomes de kitutz]. Mas se Israel quiser sobreviver, seria melhor que fossem removidos agora dos centros de decisão”.

Destaquei ontem as graves advertências feitas por um jornalista como Thomas Friedman sobre os descaminhos em curso. Apontar tais erros; lembrar que eles concorreram para produzir uma tragédia; reiterar que a questão palestina existe — e que aquele povo não vai a lugar nenhum; até porque não tem como sair de Gaza —, isso tudo é um dever da objetividade.

Israel não pode correr o risco adicional de tomar o padrão dos terroristas do Hamas como sua métrica. Basta a renitente e contraproducente estupidez de desmoralizar, a cada dia, a Autoridade Nacional Palestina. Netanyahu não tem força hoje nem para mudar a história de seu governo. Menos ainda a do Oriente Médio. Até aqui, parece apenas vocacionado para empurrar o seu país para um desastre ainda maior.

Reinaldo Azevedo – Jornalista


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