Artigo da Semana
Publicado em 11/12/2018 12:00 -
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Há um naco considerável de brasileiros que acredita que "direitos humanos" são um grupo de pessoas que ficam, de um lado para o outro, defendendo bandidos.
Essa é a consequência de anos de programas sensacionalistas na TV e no rádio que venderam a ideia de que essas organizações resumem os tais "direitos humanos". Ideia, diga-se de passagem, distorcida. Porque tais entidades querem que sejam cumpridas todas as leis, como as que dizem que o Estado não pode torturar e matar como fazem alguns bandidos.
Ou que direitos humanos são uma coisa de "comunista". Ignoram que o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o principal documento norteador desses princípios, teve forte influência das democracias liberais. E incluiu até o direito à propriedade privada, sob críticas dos países socialistas.
Esse preconceito também existe pela falta de tratamento sobre direitos humanos na sala de aula. Por ser um parâmetro curricular nacional deveria estar presente na educação básica de forma transversal – ou seja, tratado em todas as disciplinas.
Mas raramente está. E não é porque causa do equívoco chamado Escola Sem Partido, mas por conta da Escola Sem Recursos, da Escola Sem Formação Continuada dos Professores, da Escola Sem Salários Decentes, da Escola Sem Alunos Motivados, da Escola Sem Livros, entre outros movimentos que dão muito certo por aqui desde sempre.
O que são direitos humanos, afinal? Grosso modo, é aquele pacote básico de dignidade que você deve ter acesso simplesmente por ter nascido. Independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer condição.
Se esse pacote básico fosse respeitado, não haveria fome, crianças trabalhando, idosos deixados para morrer à própria sorte, pessoas vivendo sem um teto. Não teríamos uma taxa pornográfica de quase de 64 mil homicídios por ano, nem exploração sexual de crianças e adolescentes, muito menos trabalho escravo. Aos migrantes pobres seria garantida a mesma dignidade conferida a migrantes ricos. Todas as crenças seriam respeitadas – e a não-crença também. A liberdade de expressão seria defendida, mas os incitadores de crimes contra a dignidade seriam responsabilizados. Se direitos humanos fossem efetivados, não teríamos mulheres sendo estupradas, negros ganhando menos do que brancos e pessoas morrendo por amar alguém do mesmo sexo. Teríamos a garantia de ar respirável e água potável.
É claro que os direitos humanos não começam com o documento que completa 70 anos, nesta segunda (10). É uma longa caminhada pela história da humanidade, em que fomos pressionando governantes a não tolherem direitos civis e políticos, mas também para que o Estado agisse a fim de garantir direitos sociais, econômicos, culturais, ambientais.
Mas tratemos da Declaração, nosso documento mais relevante. O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos para tentar evitar que esses horrores se repetissem. De certa forma, com o mesmo objetivo, o Brasil, ainda olhando para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever a Constituição Federal de 1988. Ambos não são documentos perfeitos, longe disso. Mas, com todos seus defeitos, ousam proteger a dignidade e a liberdade de uma forma que, se hoje sentássemos para formulá-los, não conseguiríamos.
É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.
E, por isso, ao completar 70 anos de sua proclamação pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem sido vítima de ataques. Tal como a Constituição, que completou 30 anos em outubro. Elegemos líderes ao redor do mundo que chamam os direitos humanos de ultrapassados ou fake news quando, em verdade. E, por conta disso, esses princípios são mais necessários do que nunca.
Minha geração herdou esses textos – um de nossos avós e outro de nossos pais. Agora, precisamos ensinar à geração de nossos filhos sua própria história sob o risco de que o espírito presente em 1948 e 1988 se perca por desconhecimento.
Discursos misóginos, homofóbicos, fundamentalistas e violentos têm atraído rapazes que, acreditando serem revolucionários e contestadores, na verdade agem de forma a manter as coisas como sempre foram. Creem que estão sendo subversivos lutando contra a "ditadura do politicamente correto" – que, na prática, se tornou uma forma pejorativa de se referir aos direitos básicos que temos por termos nascido humanos.
Parte dos jovens também abraça esses discursos como reação às tentativas de inclusão de grupos historicamente excluídos, como mulheres, negros, população LGBTT. Há rapazes que veem na luta por direitos iguais por parte de suas colegas de classe ou de coletivos feministas uma perda de privilégios que hoje nós, os homens, temos. Nesse contexto, influenciadores digitais, formadores de opinião e guias religiosos ajudam a fomentar, com seus discursos violentos e irresponsáveis, uma resposta agressiva dos rapazes à luta das jovens mulheres e outras minorias pelo direito básico a não sofrerem violência.
É exatamente nesses momentos de dificuldade que precisamos nos lembrar da caminhada que nos trouxe até aqui. Para ter a clareza de que, mais importante do que reinventar todas as regras, é tirar do papel, pela primeira vez, a sociedade que um dia imaginamos frente aos horrores da guerra ou da ditadura. O que só se fará com muito diálogo e a promessa de garantia desse quinhão mínimo de dignidade.
Infelizmente, para algumas pessoas politica e economicamente poderosas, os direitos humanos, do alto de seus 70 anos, são vistos como um problema incômodo a ser imolado no altar do crescimento econômico ou em nome de Deus e da chamada "tradição".
Portanto, devemos encarar todas as conquistas nessa área, desde 10 de dezembro de 1948, como portas que, depois de muito sacrifício, conseguimos abrir no muro da opressão e da injustiça. Portas que, se não forem monitoradas bem de perto, se fecharão novamente na nossa cara.
E o trabalho começa por explicar a toda pessoa que xinga os direitos humanos que, ao fazer isso, ela chama a si mesma de lixo.
Leonardo Sakamoto – Jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
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