Poder
Publicado em 05/04/2019 12:00 -
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O governo de Jair Bolsonaro enviou telegrama à ONU (Organização das Nações Unidas) afirmando que "não houve golpe de Estado" em 31 de março de 1964 e que os 21 anos de governos militares foram necessários "para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria".
O governo afirma que "os anos 1960-70 foram um período de intensa mobilização de organizações terroristas de esquerda no Brasil e em toda a América Latina" e que o golpe contou com o apoio da "maioria da população".
A BBC News Brasil teve acesso ao conteúdo integral do telegrama confidencial enviado pelo Itamaraty no último dia 3 a Fabian Salvioli, relator especial da ONU sobre Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição. O conteúdo do texto foi confirmado por membros do governo Bolsonaro e fontes que atuam dentro das Nações Unidas.
O texto é uma resposta a críticas feitas pelo relator Salvioli no último dia 29 aos planos do governo de celebração do 31 de março, então classificadas como "imorais e inadmissíveis".
Na oportunidade, o argentino afirmou em comunicado que "tentativas de revisar a história e justificar ou relevar graves violações de direitos humanos do passado devem ser claramente rejeitadas por todas as autoridades e pela sociedade como um todo".
"Comemorar o aniversário de um regime que trouxe tamanho sofrimento à população brasileira é imoral e inadmissível em uma sociedade baseada no Estado de Direito. As autoridades têm a obrigação de garantir que tais crimes horrendos nunca sejam esquecidos, distorcidos ou deixados impunes", escreveu Salvioli.
Em sua resposta, o governo brasileiro subiu o tom e classificou as críticas como "sem fundamento". Também disse à autoridade das Nações Unidas que ele "deve respeitar os processos nacionais e procedimentos internos em suas deliberações".
Disputa judicial
Segundo o telegrama do Itamaraty, o "governo defende o direito à liberdade de expressão e de pensamento e saúda o debate público sobre os eventos ocorridos no período 1964-1985 no Brasil".
"Neste contexto, o presidente Bolsonaro está convencido da importância de colocar em perspectiva a data de 31 de março de 1964", continua o texto.
"O presidente reafirmou em várias ocasiões que não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo que contou com o apoio do Congresso e do Judiciário, bem como a maioria da população. As principais agências de notícias nacionais da época pediram uma intervenção militar para enfrentar a ameaça crescente da agitação comunista no país."
Segundo a gestão Bolsonaro, a decisão de instruir as Forças Armadas brasileiras a lembrar a data de 31 de março de 1964 "foi tomada com pleno respeito à lei nacional, incluindo a Constituição Federal".
O governo também destaca que a instrução para a comemoração do golpe foi confirmada pelo Poder Judiciário em 30 de março, "quando o Tribunal Regional Federal declarou que a decisão do presidente é compatível com as prerrogativas de seu alto cargo, respeita a legislação nacional e não viola as obrigações de direitos humanos, de acordo com o direito internacional".
Horas após o comunicado enviado pelo relator da ONU, no último dia 29, uma juíza federal de Brasília atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União e proibiu que o governo realizasse eventos relacionados aos 55 anos do golpe militar.
Na decisão, a juíza Ivani Silva da Luz argumentava que a proibição pretendia "a não repetição de violações contra a integridade da humanidade, preservando a geração presente e as futuras do retrocesso a Estados de exceção".
No dia seguinte, um sábado, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), revogou a liminar e liberou comemorações, argumentando que "tendo em vista que existem eventos agendados para amanhã e domingo, dado o tamanho do Brasil e capilaridade das Forças Armadas, algumas unidades estão devidamente preparadas para a realização das cerimônias, as decisões recorridas colocam em risco gravemente a organização da administração, devendo a suspensão das mesmas ser imediata".
No comunicado enviado nesta quarta à ONU, o governo brasileiro ressaltou seu "compromisso com a democracia, o estado de direito e a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais" e ressaltou que "atos semelhantes (as comemorações do 31 de março neste ano) foram realizados por unidades militares em anos anteriores, sem qualquer efeito deletério ao corpo político brasileiro".
Revisionismo e manipulação
Há um revisionismo histórico, com fins políticos, em curso no Brasil. Ele é baseado na negação e manipulação de fatos e é promovido por integrantes do governo Jair Bolsonaro e seguidores da "nova direita". Dizer que não houve golpe em 1964 e que o nazismo foi um movimento de esquerda, como afirmou o próprio presidente, são apenas alguns exemplos.
Esses exemplos, segundo especialistas, fazem parte de uma estratégia maior, de um movimento que busca legitimar os seus projetos políticos a partir de uma visão distorcida da historiografia acadêmica praticada por historiadores no Brasil e no mundo com base em métodos científicos.
Promovido pelo ideólogo Olavo de Carvalho e seus seguidores, entre eles o chanceler Ernesto Araújo e o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, esse negacionismo histórico é carregado de teorias de conspiração, imprecisões e omissões.
O negacionismo histórico foi se espalhando por páginas conservadoras nas redes sociais. E, aos poucos, foi se incorporando ao discurso bolsonarista. Em julho de 2018, isso ficou claro quando o então candidato a presidente Bolsonaro chocou os brasileiros ao culpar os africanos pelo tráfico negreiro.
"Se você for ver a história realmente, o português não pisava na África, era [sic] os próprios negros que entregavam os escravos", disse Bolsonaro numa entrevista à TV Cultura.
A declaração, que vai contra as pesquisas historiográficas produzidas sobre o tema nas últimas décadas, simplesmente ignora a responsabilidade de portugueses no tráfico negreiro ocorrido entre os séculos 16 e 19 e omite que o modelo de escravidão comercial que promoveu a colonização das Américas foi criado pelos europeus.
A transformação da escravidão por europeus num negócio gerou conflitos no território africano e expandiu a prática a números gigantescos. Estima-se que 12,5 milhões de africanos escravizados foram traficados por europeus a partir de 1501. O Brasil foi o destino do maior número, 5,5 milhões. Destes, mais de 667 mil teriam morrido durante a viagem. O país foi ainda o último do continente a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888.
"A História tem sido manipulada por setores desta 'nova direita' com o objetivo principal de legitimar os seus projetos políticos. O que orienta a narrativa sobre o passado que esses grupos e indivíduos produzem não é o rigor acadêmico, nem os princípios da divulgação científica, da história pública ou do ensino de História, mas um projeto político", afirma o historiador Bruno Leal, da Universidade de Brasília.
Esse revisionismo histórico, baseado unicamente na deturpação de fatos, teria como alvo tudo que é percebido como uma ameaça à ideologia destes grupos. "Esse processo de deslegitimação chega a questionar os próprios métodos científicos ou a ciência como um paradigma de explicação da sociedade. Temos atualmente a situação em alguns casos de discutir se a Terra é ou não redonda. A História é o elo mais atacado por essa extrema direita", diz a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O falso passado conciliador
Para a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, que já presidiu a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, esse negacionismo releva posições autoritárias e preconceituosas.
Durante este processo de produção de uma versão distorcida da História, que é vendida ao público como sem tabus e voltada para recuperar heróis nacionais que supostamente teriam sido esquecidos, os revisionistas se apegam a uma visão historiográfica do século 19 e ignoram a própria complexidade histórica.
Com o desenvolvimento da disciplina, de acordo com historiadores, a História passou a olhar de forma crítica para personagens tradicionais, como a família real, e começou a estudar figuras que ficaram esquecidas por muito tempo. Neste ano, por exemplo, a escola de samba Mangueira levou para a Sapucaí algumas destas figuras, como Luísa Mahin, que articulou levantes e revoltas de escravos na região da Bahia no início do século 19.
"A disciplina deixou de olhar somente para as grandes figuras e passou a ter uma visão da sociedade como um todo. Já não é mais uma história laudatória e acrítica", argumenta o historiador Paulo Pachá, da Universidade Federal Fluminense.
E, segundo Leal, que fundou o site Café História, são justamente essas novas perspectivas da análise do passado que incomodaram setores mais conservadores da sociedade, por produzirem efeitos no presente, como na Comissão Nacional da Verdade e nas políticas de ação afirmativa e de direitos das mulheres.
"Para esses setores, mais vale um falso passado conciliador que a dor latente de um passado cheio de falhas que ainda deixa marcas em nosso presente. Esses grupos entenderam que a manutenção de seus privilégios historicamente construídos depende fundamentalmente do controle da narrativa sobre o passado", destaca o historiador.
Série de documentários
Teses deste revisionismo foram condensadas numa série de documentários produzidos por um canal simpático à extrema direita e à linha de pensamento de Olavo de Carvalho no Youtube. Em seus vídeos, o grupo Brasil Paralelo alega querer apresentar uma História "livre de narrativas ideológicas", porém, segundo historiadores ouvidos pela DW Brasil, faz justamente o contrário ao não mencionar as fontes de onde vieram as informações citadas pelo narrador.
O historiador Thiago Krause, da Unirio, destaca ainda que, entre os entrevistados, não há especialistas e pesquisadores reconhecidos na área. "Como parte deste processo de conquista de corações e mentes, é construída uma visão de mundo extremamente hermética e sem qualquer base acadêmica", acrescenta Krause.
Além de apresentarem uma história baseada em narrativas do século 19, historiadores destacam que há omissões e até mesmos erros na série, que por exemplo criou, no primeiro episódio, uma visão imaginada de uma Idade Média que seria branca, patriarcal e cristã.
"O processo histórico real é muito mais complexo do que o que aparece na narrativa do documentário e da nova direita em geral", afirma Pachá, especialista em História Medieval, que analisou o interesse deste grupo por esse período no artigo Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia.
Em outro episódio, a série glorifica a miscigenação, apresentada de forma simplista como uma virtude do Brasil. O narrador chega a afirmar que o sangue dos brasileiros seria "o tratado de paz da humanidade". O mesmo vídeo trata a "cultura" como algo trazido para o país pelos portugueses.
"Ao fazer essa visão simplista para valorizar a cultura ocidental, minimizam a importância dos africanos e indígenas, além da exploração e violência. Neste sentido, essa narrativa pode ser perigosa, porque está subestimando a opressão característica da sociedade brasileira que se baseou no racismo e na desigualdade", argumenta Krause, que é especialista em História colonial.
Santos acrescenta que a miscigenação foi fruto de uma relação de poder violenta e que precisa ser analisada historicamente de forma crítica, e não romantizada. "A miscigenação é a falácia da democracia racial no Brasil. Ficar apenas na parte lírica disso é negar essa história de violência e opressão. Os primeiros mestiços são frutos de estupros de mulheres indígenas e depois de africanas escravizadas", ressalta a historiadora.
Confrontação de professores
O revisionismo tem aparentemente chamado a atenção de cada vez mais brasileiros. O canal Brasil Paralelo possuiu atualmente mais de 810 mil inscritos (foi a essa página que, em entrevista, o chanceler Araújo disse que o nazismo era de esquerda). Alimentado por discursos sobre uma suposta "doutrinação ideológica", esse ataque ao conhecimento tem se voltado contra professores.
"Tenho visto com muita preocupação grupos que se identificam como uma 'nova direita' definindo os professores e professoras em geral, mas com destaque para os de História, como um grande inimigo da sociedade. Para afirmar sua autoridade, esses grupos desautorizam e deslegitimam o trabalho do professor", afirma Leal.
O historiador vê neste processo uma tentativa de interromper o desenvolvimento de uma geração crítica e questionadora. "Colocar os alunos e a sociedade contra o professor é uma maneira eficiente de parar esse processo emancipador", acrescenta.
Além da desvalorização de profissionais da educação, esse revisionismo histórico impede o debate e inibe o conhecimento baseado em metodologias científicas. Krause afirma que essa deslegitimação do saber também serve para a consolidação da extrema direita no país.
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