17/06/2024 - Edição 540

Poder

Brasil recebe missão inédita da ONU para apurar genocídios indígena e negro

Em Haia, denúncia contra Bolsonaro ganha força e mobiliza investigadores

Publicado em 27/04/2023 10:51 - Jamil Chade (UOL) – Edição Semana On

Divulgação Reprodução

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Pela primeira vez, o Brasil receberá a partir do dia 2 de maio a visita de uma representante da ONU que tem, como mandato, investigar riscos de genocídio entre uma população.

A queniana Alice Wairimu Nderitu, conselheira especial do secretário-geral para a Prevenção de Genocídio, ficará no país até 12 de maio e focará sua agenda na situação dos povos indígenas e da comunidade afrobrasileira.

A visita foi autorizada pelo governo brasileiro, o que foi interpretado como um sinal duplo:

– um gesto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para mostrar comprometimento com a pauta de direitos humanos;

– mas também como uma forma de expor o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que enfrenta denúncias no Tribunal Penal Internacional por genocídio dos povos indígenas — o processo que depende do procurador-geral da corte.

Num documento obtido pelo UOL com exclusividade, a entidade comunica ao governo que “o objetivo da visita é que a assessora especial realize consultas com altos funcionários do governo e outros parceiros relevantes sobre seu mandato”.

“Enquanto estiver no país, Nderitu também gostaria de aproveitar a oportunidade e fazer uma visita de cortesia ao chefe de Estado, Luiz Inácio Lula da Silva”, solicita a carta oficial da ONU.

Ao concluir a visita, a representante produzirá um informe que será submetido ao secretário-geral da ONU, António Guterres. Do lado brasileiro, o governo quer usar recomendações e críticas para fortalecer seu posicionamento, blindar algumas das políticas de direitos humanos e dar munição para eventuais processos contra Bolsonaro e seus aliados.

Indígenas e população afrobrasileira

Dois temas centrais estarão na agenda da representante da ONU:

– situação dos povos indígenas, com especial atenção para a região yanomami. A relatoria, porém, não se limitará ao Norte do Brasil. A esperança de entidades de direitos humanos é de que a missão também inclua a cidade de Dourados (MS) para examinar a crise que atravessa o povo guarani-kaiowá.

– visita às comunidades da periferia do Rio de Janeiro. Nesse caso, o foco é a situação da população afrobrasileira, principalmente na comunidade de Jacarezinho.

A escolha não acontece por acaso. Num informe que será apresentado nesta quarta-feira pelo Instituto Vladimir Herzog, constata-se que os últimos anos registraram “os maiores índices de invasão de terras indígenas da história”. De acordo com dados do Conselho Missionário Indigenista de 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro.

“Foram 263 casos que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados – um acréscimo de 137% em relação a 2018”, afirmam.

Outro destaque é o aumento dos ataques e mortes de indígenas, incluindo crianças, por parte de garimpeiros, posseiros e latifundiários. “Segundo o Conselho Missionário Indigenista, em 2020, foram 182 assassinatos de indígenas, 63% mais do que em 2019, quando 113 indígenas foram assassinados”, disse.

A realidade da população negra também chama a atenção internacional. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 mais de 6,4 mil brasileiros foram mortos por intervenção policial. Naquele ano, 78,9% eram negros.

Em sua posse como ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida deixou claro que combater a violência do estado seria uma de suas prioridades.

“Nosso maior compromisso será lutar contra a violência, sobretudo a violência estatal. Isso significa, dentre outras coisas, lutar contra o assassinato de jovens pobres e negros, lutar contra um direito administrativo que rouba camelôs, expulsa crianças da escola, fecha postos de saúde, recolhe pertences de pessoas em situação de rua, e permite agressão contra todos os excluídos e marginalizados da nossa sociedade”, disse.

Depois de negociações com o governo, a agenda da missão da ONU incluirá:

de 2 a 4 de maio: encontros com autoridades em Brasília;

de 5 a 8: visita ao território yanomami, em Roraima

9 a 10: visita a Mato Grosso do Sul, para examinar caso de guarani-kaiowá :

11 e 12: ida à comunidade de Jacarezinho, no Rio

Governo Bolsonaro abriu crise

O Brasil já estava no radar da representante da ONU. Ela, em 2021, citou o país pela primeira vez de forma explícita ao falar da questão do genocídio. Numa reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, naquele momento, a situação dos indígenas foi apontada como alarmante.

“Na região das Américas, estou particularmente preocupada com os povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, eu peço aos governos para proteger comunidades em risco e garantir justiça para crimes cometidos”, disse Wairimu Nderitu, em 2021

Entre diplomatas brasileiros, a referência ao Brasil por parte de uma assessora da ONU foi considerada como preocupante, colocando o Brasil no foco internacional.

O governo Bolsonaro rejeitava a tese de genocídio e adotava uma postura dura nos debates sobre o assunto. A citação inédita do Brasil como exemplo de preocupação levou o assunto a um novo patamar e acendeu o sinal de alerta dentro do governo Bolsonaro.

Em julho de 2021, o Itamaraty pediu direito de resposta na ONU para deixar claro que as instituições nacionais dão respostas e que não havia necessidade de que o tema seja levado a instâncias internacionais.

“O Brasil reitera o seu compromisso no combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e outras intolerâncias relacionadas”, disse a delegação brasileira na ONU, naquele momento. À época, o governo também afirmou seguir “todos os esforços para promover e proteger os direitos dos povos indígenas” e “investigar violações”.

Crimes da ditadura estão impunes e indígenas vivem retrocesso, diz IVH

Os crimes cometidos pela ditadura militar no Brasil contra os povos indígenas continuam impunes, e o Estado brasileiro ainda não deu uma resposta às vítimas. O alerta faz parte do relatório “Fortalecimento da democracia: Monitoramento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, informe que será publicado nesta semana pelo Instituto Vladimir Herzog e elaborado em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil.

O documento avalia a situação de cada recomendação feita pela Comissão Nacional da Verdade, em 2014 em seu relatório final.

Em um dos trechos obtido pelo UOL, conclui-se que as 13 recomendações no capítulo que lida com as violações de direitos humanos dos povos indígenas estão em “estado de retrocesso”.

Entre as medidas não atendidas estão as seguintes recomendações:

– Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos.

– Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena.

– Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo.

– Reconhecimento pela Comissão de Anistia da perseguição a grupos indígenas para colonização de seus territórios durante o período de abrangência da referida lei, visando abrir espaço para a apuração detalhada de cada um dos casos no âmbito da Comissão.

– Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como aos demais casos citados neste relatório.

– Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei no 10.559/2002, de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas.

– Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva.

– Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV.

– Promoção de campanhas nacionais de formação à população sobre a importância do respeito aos direitos dos povos indígenas e sobre as graves violações de direitos ocorridas no período da ditadura.

– Inclusão da temática das “graves violações de direitos humanos ocorridas contra os povos indígenas entre 1946- 1988” no currículo oficial da rede de ensino.

– Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígena.

Retrocesso

Para os pesquisadores do Instituto Vladimir Herzog, os indígenas não apenas não viram essas medidas serem adotadas. Mas ainda foram vítimas de um verdadeiro desmonte de políticas e mecanismos que pudessem resguardar seus direitos.

Segundo eles, “foram registrados os maiores índices de invasão de terras indígenas da história”. De acordo com dados do Conselho Missionário Indigenista de 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao já alarmante número que havia sido registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro.

“Foram 263 casos que em 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados – um acréscimo de 137% em relação a 2018”, afirmam.

Outro destaque é o aumento dos ataques e mortes de indígenas, incluindo crianças, por parte de garimpeiros, posseiros e latifundiários. “Segundo o Conselho Missionário Indigenista, em 2020, foram 182 assassinatos de indígenas, 63% mais do que em 2019, quando 113 indígenas foram assassinados”, disse.

O lançamento do relatório acontece no âmbito da campanha #SemImpunidade #ResponsabilizaçãoJá!, iniciativa do Instituto que visa sensibilizar a sociedade sobre crimes cometidos pelo Estado brasileiro.

Nesta semana, representantes do Instituto Vladimir Herzog e da Fundação Friedrich Ebert Brasil ainda se reunirão com autoridades brasileiras para apresentar o relatório e discutir a urgência e importância do cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade para o fortalecimento da democracia brasileira.

Em Haia, denúncia contra Bolsonaro ganha força e mobiliza investigadores

As denúncias contra o ex-presidente Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI) ganharam a adesão de uma parte importante de investigadores da instituição, dispostos a fazer avançar o processo. Informações dos bastidores da Corte recebidas pelo UOL revelam que, dentro da procuradoria de Haia, uma parcela da equipe espera tomar uma decisão positiva sobre os casos contra Bolsonaro.

Pedindo anonimato diante da sensibilidade do caso, interlocutores da Corte deixaram claro aos autores das denúncias que o caso está mobilizando os funcionários da procuradoria do tribunal, que existe “interesse” e que há uma perspectiva de que não será simplesmente arquivado.

Desde 2020, Bolsonaro é alvo de diferentes denúncias no TPI por crimes contra a humanidade e genocídio, seja no contexto do desmonte das políticas de proteção aos povos indígenas, destruição ambiental ou por conta de sua gestão da pandemia diante de minorias. Por enquanto, a procuradoria da Corte ainda não tomou uma decisão se abre oficialmente um inquérito. Mas está avaliando as informações recebidas. Por ano, Haia recebe cerca de 700 queixas de todo o mundo, sobre dezenas de casos.

Fontes na Corte confirmaram à coluna que cinco casos referentes ao presidente brasileiro estão em avaliação preliminar de jurisdição. Um deles foi descartado. Mas uma das tendências é de que a procuradoria opte por unificar todas as informações submetidas por diferentes grupos brasileiros e estrangeiros para avaliar se existe uma base razoável para abrir uma investigação.

Crise dos yanomami deve chegar a Haia

Em maio, o dossiê de Bolsonaro ainda ganhará um capítulo extra. O UOL obteve a confirmação de que as informações sobre a crise do povo yanomami devem chegar à corte em Haia.

Os dados vão fazer parte da denúncia que foi apresentada ainda em 2021 pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) contra o ex-presidente brasileiro por crime de genocídio e crimes contra a humanidade.

De fato, no final de 2021, os grupos decidiram ampliar a denúncia, incluindo o avanço do desmatamento e a invasão de terras indígenas por garimpeiros. Agora, as novas evidências vão ser anexadas ao processo, com informes sobre a situação descoberta.

Um dos pontos sendo avaliado pela Corte é a admissibilidade. Pelas regras do TPI, um processo apenas deve ser aberto quando o sistema Judicial doméstico do país está incapacitado para lidar com a denúncia.

Para observadores internacionais, as imagens de crianças do povo yanomami em estado avançado de desnutrição, os dados de mais de 570 mortes em quatro anos e a explosão da malária podem ampliar a pressão para que o Tribunal dê seguimento ao processo.

Ainda que o novo governo brasileiro tenha sinalizado sua intenção de mudar a forma de lidar com a situação e que contribuiria para investigações, há um entendimento de que apenas a abertura formal de um inquérito pela procuradoria de Haia poderia dar um ímpeto extra ao processo no Brasil, mesmo que não resulte em uma denúncia final.

Governo Lula veta embaixador de Bolsonaro em Haia

Entre as medidas adotadas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, uma delas foi o veto ao embaixador que o ex-presidente Jair Bolsonaro esperava indicar para ocupar o cargo em Haia, tradicionalmente uma embaixada sem grande destaque para a estratégia global do Itamaraty. O gesto foi interpretado como uma indicação de que o processo contra Bolsonaro terá importância pelo novo governo e que quer alguém de confiança.

No governo Bolsonaro, embaixadores próximos à gestão do ex-presidente chegaram a fazer circular a narrativa de que os casos em Haia tinham sido arquivados.

Não é a percepção na corte que, quando a informação foi incompleta em uma das denúncias, informou aos autores da queixa a fragilidade do caso.

Ainda assim, outro obstáculo é a definição do crime que seria imputado sobre Bolsonaro. Para que um ato seja considerado como genocídio, ele precisa atender aos seguintes critérios:

– O autor infligiu certas condições de vida a uma ou mais pessoas;

– Essa pessoa ou essas pessoas pertencia(m) ou pertence(m) a um grupo nacional, étnico, racial ou religioso particular;

– O autor agiu com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal;

– As condições de vida — que podem incluir, mas não se restringem a, privação deliberada de recursos indispensáveis à sobrevivência, tais como água, comida e serviços médicos — foram afetadas calculadamente para levar o grupo à destruição;

– Os atos se deram no contexto de um padrão de conduta semelhante dirigida contra o grupo ou a conduta era tal que podia causar por si mesma a destruição.

No documento original da denúncia de quase 150 páginas, a Apib diz que o governo Bolsonaro agiu de forma deliberada para “exterminar” etnias e povos e estabelecer um Brasil sem indígenas.

“Está em curso uma política de genocídio dos povos indígenas no Brasil, combinada com a prática de diferentes crimes contra a humanidade. São crimes que estão, neste momento, sendo praticados”, alertava o documento, naquele momento.

“A política anti-indígena em curso no Brasil hoje é dolosa. São atos articulados, praticados de modo consistente durante os últimos dois anos, orientados pelo claro propósito da produção de uma nação brasileira sem indígenas, a ser atingida com a destruição desses povos, seja pela morte das pessoas por doença ou por homicídio, seja pela aniquilação de sua cultura, resultante de um processo de assimilação”, explicava.

Bolsonaro também é acusado de “extermínio e a perseguição a povos indígenas através de um ataque generalizado e sistemático contra os povos indígenas, bem como a imposição de outros atos inumanos, tipificados respectivamente como genocídio e crimes contra a humanidade pelo Estatuto de Roma”.


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