10/09/2024 - Edição 550

Mundo

Vitória da extrema direita na França afetará guerras, Mercosul e clima

União entre forças democráticas no 2º turno será fundamental contra o fascismo

Publicado em 01/07/2024 2:24 - Jamil Chade (UOL), DW, ICL Notícias – Edição Semana On

Divulgação Foto: Alain Jocard/AFP/Getty Images

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Uma vitória da extrema direita ameaça gerar um profundo impacto na política externa da França –a segunda maior economia da Europa– com repercussão na guerra na Ucrânia, relação com os EUA, no destino da UE (União Europeia), no acordo comercial com o Mercosul e na própria atuação da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

A extrema direita foi a grande vencedora do primeiro turno da eleição legislativa na França, num voto considerado como histórico, e se aproxima de assumir o governo do país pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial.

O partido que surge como vencedor no primeiro turno da eleição é comandando por Marine Le Pen. Ainda que ela tenha oficialmente abandonado a ideia de uma saída da França da UE, seu posicionamento promete questionar o funcionamento do bloco.

A extrema direita já alertou que, se sair vitoriosa, vai determinar quem será o comissário da França na nova Comissão Europeia.

Membro permanente no Conselho de Segurança da ONU e potência nuclear, a França tem sua política externa em grande parte definida por seu presidente. De fato, em um recente encontro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Emmanuel Macron deixou claro que nada mudaria nesse setor.

Mas o homem que pode assumir o cargo de primeiro-ministro pela extrema direita, Jordan Bardella, já deixou claro que vai confrontar o posicionamento de Macron no mundo e que considera que não existe um consenso legal sobre a atribuição exclusiva da presidência a dar as cartas em temas de defesa e de diplomacia.

Ainda durante a campanha, Bardella já anunciou que não vai permitir que a França envie tropas para a Ucrânia ou que se engaje em uma guerra direta contra a Rússia, uma proposta que chegou a ser considerada por Macron.

Sem qualquer experiência em governos, o líder de apenas 28 anos também indicou que vai usar seu eventual posto de primeiro-ministro para barrar o envio de certas armas para Kiev. Para isso, porém, ele terá de formar maioria no segundo turno, no próximo domingo (7).

O movimento de extrema direita foi acusado de manter relações com Vladimir Putin, inclusive com financiamento para suas campanhas no passado. Foi o mesmo partido que sugeriu que a França não devesse integrar o comando da Otan.

Mercosul ainda mais distante

Um governo da extrema direita também ameaça enterrar de vez qualquer perspectiva de um acordo comercial com o Mercosul. O grupo de Le Pen tem como parte de sua base justamente o setor rural, a maior resistência contra qualquer tipo de abertura comercial ao Brasil.

Em conversas com a diplomacia brasileira, os representantes de Macron chegaram a alegar que não poderiam fazer mais concessões ao Mercosul, sob o risco de perder esses eleitores.

Agora, entre negociadores, um eventual governo de Bardella não irá permitir que a França ratifique um acordo com o Mercosul e o risco é de que o processo fique congelado por mais três anos, até a próxima eleição presidencial.

Para analistas e diplomatas estrangeiros, um desacordo na política externa da França pode enfraquecer ainda mais o posicionamento da Europa no palco global.

Palestinos podem perder aliado

Um governo da extrema direita ainda ameaça os interesses dos palestinos. Sob Macron, a França passou a ser um dos poucos governos europeus a criticar abertamente Israel, defender o Estado palestino e votar a favor de um cessar-fogo no Conselho de Segurança.

Mas Le Pen tampouco conta com o apoio de uma parcela dos judeus franceses. Em comunicado, estudantes judeus no país alertaram que o “perigo é iminente” e apelam para que haja uma união para derrotar a extrema direita.

Jean Marie Le Pen, pai da atual líder do RN, chegou a dizer no passado que o Holocausto havia sido um “detalhe da história”.

Imigração e clima

Não faltará ainda uma pressão extra para que a Europa redefina sua política de imigração, com um impacto tanto para grupos de africanos como do Oriente Médio.

O grupo de Le Pen promete formar alianças com outros governos de extrema direita pela Europa para transformar o debate sobre imigração essencialmente em uma questão de segurança nacional, com novas barreiras e deportações.

Entre os negociadores, as dúvidas também persistem sobre o compromisso da extrema direita com os pactos climáticos assinados pela França e que preveem, pelo menos teoricamente, que as grandes potências destinem bilhões de euros para a transição energética nos emergentes.

Tampouco fica claro qual seria o resultado nos projetos comuns do Brasil e França para a preservação da floresta.

“Entraremos em um território desconhecido”, admitiu um negociador.

União entre forças democráticas no 2º turno será fundamental contra extrema direita

A união entre forças democráticas para o segundo turno do pleito será fundamental. A cientista política francesa Florence Poznanski explica que “a grande incógnita, que será o eixo central desta semana antes do segundo turno, será a possibilidade de candidatos desistirem da disputa” para a votação que está marcada para o próximo domingo (07).

Isso porque, com o sistema eleitoral de dois turnos, é possível que a segunda fase do pleito seja disputada entre três candidatos em alguns distritos franceses. Na maioria deles, a corrida deverá se dar entre um candidato do Reagrupamento Nacional (RN), de extrema direita, da Nova Frente Popular (NFP), de esquerda, e da coalizão governista, apoiada pelo presidente Emmanuel Macron.

“As esquerdas já anunciaram que caso cheguem em terceiro lugar elas iriam desistir para apoiar o outro candidato no segundo turno contra a extrema direita. O que fará a diferença será a posição do governo, ou seja, se o partido governista respeitará essa ‘Frente Republicana’”, afirma a analista, que é membro do NFP.

Segundo os números divulgados por projeções neste domingo, o partido RN de Marine Le Pen e seus aliados obtiveram mais de 34% dos votos. Em segundo lugar aparece a coalizão de esquerda NFP, que teria mais de 29% dos votos, enquanto a grande derrotada teria sido a aliança de Macron, com pouco mais de 20%.

Logo após o resultado, o líder da coalizão de esquerda e do partido França Insubmissa, Jean Luc-Mélénchon, reafirmou a disposição da aliança de desistir das disputas nas quais seus candidatos estejam em terceiro lugar. “Nossa diretriz é simples e clara: nem mais um voto para o Reagrupamento Nacional”, disse.

Momentos após o pronunciamento de Mélénchon, o primeiro-ministro Gabriel Attal, aliado de Macron, disse que “a lição desta tarde é que a extrema direita está nas portas do poder” e que a “atitude responsável” seria a retirada de candidatos em terceiro lugar para “apoiar outros candidatos que defendem os valores da República”.

Para Poznanski, a decisão do governo ainda gera dúvidas, já que Macron nas últimas semanas buscou “criminalizar a esquerda”. “Ele chamou a esquerda de extremista, o que não é verdade. Ele tentou criminalizar [a esquerda], dizendo que ao lado da extrema direita, a extrema esquerda seria igual. Ele nunca se posicionou considerando que o bloco de esquerda era republicano”, diz.

“Talvez considerando esse cenário, diante do risco do RN conquistar maioria absoluta, é possível que sob influência de grande parte do seu campo ele tome essa decisão”, afirma.

O RN já anunciou que, se conseguir a maioria absoluta com seus aliados, irá indicar como primeiro-ministro o jovem líder Jordan Bardella, que aos 28 anos levou seu partido à vitória nas eleições europeias.

Fundado em 1972 como Frente Nacional, o partido foi liderado durante décadas pelo político extremista Jean-Marie Le Pen, conhecido pelas suas posições negacionistas em relação ao Holocausto, por proferir discursos de ódio e ser próximo de grupos fascistas. Sob a liderança de Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen, o partido foi rebatizado como Reagrupamento Nacional em 2018, na tentativa de se afastar da imagem negativa associada ao seu fundador.

Participação não garante vitória na França

A unidade entre partidos e coalizões que apoiam a democracia também é vista como essencial para o professor de Relações Internacionais da UFABC Giorgio Romano. Ao Brasil de Fato, ele afirma que a extrema direita já é a grande vencedora das eleições e que o desafio agora para as outras coalizões será evitar que o RN conquiste maioria absoluta no Legislativo.

“O primeiro passo seria criar uma frente democrática, onde se juntariam todos os partidos que não são de extrema direita. Se isso realmente acontecer, precisamos ver se a população aceita. Porque a extrema direita surge quando há uma grande insatisfação com Macron. Então quem vota na esquerda, pode até estar disposto a votar na extrema direita também, mas votar em candidatos do Macron já é mais difícil”, diz.

O professor ainda analisa a alta participação eleitoral — mais de 59%, índice maior do que o do ano passado — e afirma que os níveis recorde se justificam pois “os dois lados entendem que esse é a hora da verdade”. “A extrema direita pode finalmente ter a maioria e, do outro lado, as forças democráticas querem evitar isso”.

Romano, no entanto, destaca que a saída de uma frente democrática não é receita garantida, já que as manobras políticas devem se refletir em apoio popular. “Primeiro passo: os partidos democráticos devem dar sinal claro para não votar na extrema direita, vote em qualquer candidato, e retirar terceiros candidatos. Segundo passo: a população tem que aceitar isso.”

Orbán forja nova aliança de ultradireita na UE

O primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán anunciou ontem (30) a criação de uma nova aliança de partidos populistas europeus de extrema direita – a terceira do Parlamento Europeu.

Intitulada “Patriotas pela Europa”, a agremiação é formada pelo partido de ultradireita de Orbán, o Fidesz, pelo anti-imigração e campeão nacional de votos Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ) e pela eurocética Aliança dos Cidadãos Descontentes (ANO), grupo político do ex-premiê tcheco Andrej Babis. Juntas, as três siglas fizeram 24 dos 705 eurodeputados.

Atualmente há sete coalizões no Parlamento Europeu, que representam partidos políticos dos 27 países-membros da UE. As bancadas são organizadas de forma supranacional, reunindo partidos de países distintos.

Alguns partidos nacionais, porém, não integram nenhuma dessas bancadas – é o caso, por exemplo, da alemã Alternativa para a Alemanha (AfD), que foi recentemente excluída da bancada de ultradireita Identidade e Democracia (ID), após sucessivos escândalos que irritaram outros partidos. A AfD foi o segundo partido mais bem votado da Alemanha nas eleições europeias, com 15 eurodeputados.

Objetivo é tornar-se “maior grupo de direita da Europa”

Falando em coletiva de imprensa na Áustria, Orbán, que hoje (01/07) assume a presidência rotativa do Conselho da UE pelos próximos seis meses, afirmou que o Patriotas pela Europa quer se tornar o “maior grupo de forças de direita na Europa”.

“Uma nova era começa aqui. E o primeiro, talvez mais decisivo momento desta nova era é a criação de uma nova bancada europeia que vai mudar a política europeia”, afirmou Orbán.

O líder húngaro prometeu que a aliança lutaria por “paz, segurança e desenvolvimento” em vez de “guerra, migração e estagnação” geradas pelo que ele chamou de “elite de Bruxelas”, e que as portas estão abertas a todos que queiram se juntar a eles.

Para ser reconhecida no Parlamento Europeu como uma bancada de fato, a nova aliança precisará ainda do apoio de partidos de pelo menos outros quatro países da UE. Além da AfD, possíveis adesões poderiam vir da Liga italiana (8 cadeiras, hoje no ID), do Partido da Liberdade holandês (6 cadeiras, também no ID), do Chega de Portugal (2 cadeiras, hoje no ID), da polonesa Konfederacija (6 cadeiras, sem bancada) e do búlgaro Renascimento (3 cadeiras, sem bancada).

O trio não respondeu às perguntas da imprensa, mas o FPÖ disse que logo faria uma nova coletiva de imprensa para anunciar a adesão de outros partidos.

O Fidesz de Orbán foi até 2021 membro do Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita e maior bancada no Parlamento Europeu. O FPÖ, que fazia parte do ID, também abandonou a aliança para criar o Patriotas. Já o ANO deixou o Renovar a Europa.

Mais soberania, menos poderes à UE

O manifesto de fundação do Patriotas pela Europa critica o que afirma serem planos para “um Estado europeu central” e promete “priorizar a soberania antes do federalismo, a liberdade antes de imposições, e a paz”.

“Queremos que a democracia direta tenha mais peso e seja mais importante que o direito europeu. Queremos enxugar essa administração da UE. Queremos um Parlamento Europeu muito menor. E queremos trazer de volta para nossos países as atribuições que hoje estão em Bruxelas.”

Segundo o trio, outras prioridades da aliança devem ser o fim do Acordo Verde Europeu e a luta contra a imigração ilegal.

A UE registrou quase 53,3 mil migrantes ilegais chegando pelas fronteiras nos primeiros cinco meses de 2024. Se o ritmo for mantido, seriam quase 128 mil pessoas em um ano, uma queda de 53% em relação às 275 mil chegadas irregulares em 2023.

Mais fortes ou mais fragmentados?

Partidos populistas de direita saíram fortalecidos nas últimas eleições ao Parlamento Europeu, no início de junho.

Seu desempenho, porém, variou de país para país.

Siglas nacionalistas surfaram no descontentamento do eleitorado com a inflação, a migração e o custo da transição verde.

Até agora, esses partidos têm se dividido basicamente em dois grupos no Parlamento Europeu. Com a criação de uma terceira bancada, porém, eles esperam ter mais influência sobre as decisões do bloco, mas podem acabar também mais fragmentados.

Políticos de ultradireita como Orbán e a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni queixaram-se de terem sido excluídos das negociações para definir os principais cargos do bloco – apesar de terem ampliado seu espaço no Parlamento.


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