04/10/2024 - Edição 550

Mundo

Na França, esquerda e democratas unidos mostram que é possível barrar a extrema direita

Lula afirma que aliança progressista dos franceses serve de inspiração ao Brasil

Publicado em 08/07/2024 11:03 - Leonardo Sakamoto e Jamil Chade (UOL), Agência Brasil – Edição Semana On

Divulgação CNN

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Mais uma vez a democracia francesa deu um chega-pra-lá na extrema direita, repetindo o que já fez em outras eleições. Uma coisa é divergir sobre a condução da economia de um país, outra é discordar da essência e dos princípios que mantém esse país unido.

Adotando uma estratégia de desistência em distritos onde o adversário democrata teria mais chance contra o candidato do extremista Reunião Nacional, a Nova Frente Popular, coalizão de esquerda, e a aliança do presidente Emmanuel Macron devem ficar em primeiro e segundo lugares na Assembleia Nacional.

A maioria dos macronistas não iria votar na extrema direita. Os fascistas ampliaram seu teto na França, mas não arrancaram o teto.

Ver a xenófoba e excludente extrema direita de Marine Le Pen cantar vitória antes da hora e dar de cara com as urnas deveria animar qualquer espírito democrata.

Ao mesmo tempo, o resultado indica a possibilidade real que as esquerdas têm caso superem suas diferenças e resolvam se unir.

Foi impressionante e inédita a união das agremiações desse campo ideológico em tempo recorde, tanto para formar a coalizão menos de dois dias após o anúncio surpresa de nova eleição feita por Macron, quanto para planejar taticamente as desistências entre o primeiro turno e o segundo junto com a direita democrática.

Em Portugal, a união das esquerdas gerou um governo que durou algum tempo. Vamos ver o que acontecerá na França caso a Nova Frente Popular consiga apontar um primeiro-ministro e mantenha uma coabitação com o Palácio do Eliseu.

Ressalte-se que a esquerda conseguiu chegar na frente, mas não teve maioria absoluta, portanto ainda resta ver que tipo de governo emergirá dos diálogos e negociações sobre composição na Assembleia. Macron já está tentando dividir o grupo, insinuando que pode levar seu partido a criar governo de coalizão com a esquerda desde que ela se separe de Jean-Luc Mélenchon, chefe do França Insubmissa.

As urnas também mostram o descontentamento com as políticas da direita liberal de Macron, em um país que sempre prezou pela força do Estado de bem estar social.

O receituário neoliberal global se esgotou, e o crescimento da extrema direita, reunindo e vocalizando a insatisfação daqueles excluídos pela globalização, é a prova disso.

Contudo, não são apenas xenófobos, racistas e fascistas da extrema direita que podem propor uma alternativa. Eleições como a da França criam uma oportunidade para as esquerdas refletirem, reinventarem-se e proporem novas políticas que resolvam a insatisfação através da inclusão, não do ódio e do medo.

Coalizão republicana impediu vitória da extrema direita na França

Uma frente republicana impediu que a Reunião Nacional, grupo de extrema direita, vencesse a eleição legislativa na França.

Com a apuração encerrada, os partidos de esquerda, centro e ecologistas se uniram e conseguiram barrar a onda populista que ameaçava ficar em primeiro lugar e chegar ao poder pela primeira vez desde a ocupação nazista da França, na Segunda Guerra Mundial. Horas depois, a Place de la République, em Paris, estava tomada por militantes, ativistas e por parte da população francesa que comemoraram a derrota do movimento ultraconservador.

A liderança ficou com a Coalizão de Esquerda, que obteve o maior número de assentos. A extrema direita terminou em terceiro lugar. Ainda assim, dobrou seu número de assentos.

Para observadores e cientistas políticos, trata-se da maior surpresa eleitoral da história da França.

Mas tudo indica que os resultados abrem um período de profunda incerteza política num país dividido. Nenhum grupo ficou próximo de obter assentos suficientes para formar uma maioria absoluta no Legislativo.

O presidente Emmanuel Macron, cuja coalizão ficou em segundo lugar, sinalizou que não vai tomar medidas imediatas e que irá esperar até o dia 18 de julho, quando a Assembleia Nacional se reúne em sua nova formação.

Macron indicou que vai “esperar a estruturação da nova Assembleia para tomar as decisões necessárias”. Na terça-feira, viaja para Washington para a cúpula da Otan.

Como ficaram os resultados

A coalizão de partidos de esquerda chegou em primeiro lugar, com 182 cadeiras na Assembleia Nacional.

A coalizão de partidos aliados a Macron terminou com 168 cadeiras.

A Reunião Nacional, que havia terminado o primeiro turno no topo, acabou apenas em terceiro lugar, com 143 assentos.

Esquerda reivindica assumir governo

Jean-Luc Mélenchon, chefe do grupo de esquerda França Insubmissa, fez um apelo para que o presidente Emmanuel Macron convoque seu grupo a formar um governo, sinalizando a volta da coabitação na política francesa. Segundo ele, a esquerda não abrirá mão dessa condição.

“Estamos prontos para governar”, disse Mélenchon. Ele, porém não tem maioria para formar um governo, de maneira automática.

“Os franceses disseram não à extrema direita”, disse Olivier Faure, primeiro secretário do Partido Socialista, que faz parte da coalizão de esquerda.

“Evitamos o pior”, afirmou. Faure admitiu que não tem uma maioria absoluta. Mas sugeriu que Macron reconheça sua derrota e que permita que a esquerda possa escolher um primeiro-ministro.

François Hollande, ex-presidente socialista e eleito como deputado, destacou como a coalizão de Macron perdeu “dezenas de assentos” e que, mesmo sem maioria absoluta, a esquerda deve governar.

Primeiro-ministro renuncia

O campo presidencial, porém, não garantiu que irá conceder o cargo de chefe de governo para Mélenchon.

Gerald Darmanin, ministro do Interior de Macron, não disfarçava a satisfação ao comentar a derrota da extrema direita. Mas alertou que não se trata de um cargo automático para a esquerda.

“Hoje, ninguém pode dizer que venceu. A maioria do presidente continua sólida”, disse.

Gabriel Attal, primeiro-ministro de Macron, também sinalizou que os riscos de um governo de extrema direita ou de extrema esquerda foram evitados. “Nenhuma maioria pode ser feita pelos extremos”, disse.

Attal anunciou que entrega seu cargo nesta segunda-feira e apresenta sua renúncia, diante da falta de uma maioria para os aliados de Macron. Mas admitiu que “muitos franceses sentem a incerteza” prestes a receber o mundo para os Jogos OIímpicos e diz estar à disposição para administrar o país até que um novo governo seja implementado.

Ao fazer seu pronunciamento, Attal deixou claro que a dissolução da Assembleia feita por Macron não era sua opção, numa declaração que mostrou seu distanciamento em relação ao presidente.

O processo da escolha de um governo, agora, depende de uma negociação entre Macron e a Coalizão de Esquerda.

A tradição aponta que o presidente convida o partido em primeiro lugar a iniciar um processo de escolha de um governo. Mas, neste caso, trata-se de um grupo que não terá maioria e terá dificuldades para aprovar leis e, portanto, para governar.

‘Cordão sanitário’ funciona pela quarta vez

O resultado eleitoral foi consequência de um pacto para criar um “cordão sanitário” contra os ultraconservadores no segundo turno.

De fato, essa foi a quarta vez que uma frente republicana funcionou para barrar a extrema direita, depois de também se unir nas eleições de 2002, 2017 e 2022.

Ainda assim, a extrema direita conseguiu ampliar de forma importante sua participação política. No primeiro turno, o grupo de Marine Le Pen havia chegado em primeiro lugar e, mesmo chegando em terceiro lugar, dobra de tamanho no parlamento.

Mais de 220 políticos de esquerda ou de centro aceitaram desistir de suas candidaturas, na esperança de que seus votos fossem transferidos para o melhor colocado que tivesse chance de barrar a eleição de um representante da extrema direita.

A eleição para os 577 representantes na Assembleia é distrital. Foram para as urnas neste domingo todos os candidatos que obtiveram mais de 12% dos votos no primeiro turno.

Extrema direita denuncia ‘acordos nojentos’

Tentando esconder sua frustração, a líder da extrema direita, Marine Le Pen, disse que a vitória do RN “foi apenas adiada”. Apesar dos números não indicarem nessa direção, ela insistiu que seu movimento é “líder” na França.

“A maré está subindo. Não subiu o suficiente desta vez, mas continua subindo e, como resultado, nossa vitória foi apenas adiada”, insistiu. “Tenho muita experiência para ficar desapontada com um resultado em que dobramos nosso número de deputados”, completou.

Jordan Bardella, que esperava ser o primeiro-ministro da extrema direita, denunciou a desinformação contra seu campo e insistiu que o avanço do RN foi o maior em sua história.

“A aliança da desonra (entre os partidos) e acordos eleitorais impediram que os franceses obtivessem as reformas que pedem”, disse. “A França agora está nos braços da extrema esquerda”, afirmou.

Bardella também criticou Macron por abrir um período de incertezas. “Os arranjos orquestrados pelo presidente isolado e uma esquerda incendiária levarão o país a lugar algum”, disse.

“São acordos nojentos que foram feitos contra nós”, disse o porta-voz do grupo RN, Julien Odoul.

Tensão

O segundo turno, realizado neste domingo, foi marcado por mais de 30 mil soldados e policiais nas ruas e por um alerta por parte de acadêmicos, jogadores e artistas sobre os riscos que a França correria caso a extrema direita saísse vencedora.

O voto na França não é obrigatório. Mas a participação foi a mais elevada em décadas.

A eleição foi convocada pelo presidente Emmanuel Macron, depois que a extrema direita venceu o pleito para o Parlamento Europeu, no mês passado.

Sua decisão de dissolver a Assembleia Nacional causou choque e incompreensão. Seu argumento era de que os franceses não votariam da mesma forma numa eleição nacional.

Ingovernável

Com a formação de um parlamento fragmentado e com a maioria presidencial abalada, as previsões também indicam que os últimos três anos da presidência de Emmanuel Macron prometem ser marcadas por um enfraquecimento do chefe de estado.

Macron tem um desafio a partir de agora: organizar uma coalizão capaz de criar uma certa estabilidade.

A outra opção é a de nomear um governo técnico, formado por economistas e personalidades, até que haja um entendimento entre os partidos para a nomeação de um primeiro-ministro.

Extrema direita quer poder em 2027

Ainda que tenha fracassado, o movimento de Marine Le Pen tentará pautar o debate nacional, apresentar projetos e se preparar para a campanha para a presidência em 2027.

A RN, herdeira direta de grupos xenófobos e polêmicos, decidiu moderar seu discurso para ampliar sua capacidade de atrair votos. Houve uma ofensiva para “limpar” a imagem do bloco, evitar discursos de ódio e insistir que o centro do debate é a capacidade de renda e qualidade de vida dos franceses.

Mas a mudança estética não alterou seu programa, com propostas claras de expulsão de estrangeiros, limitar certos cargos para pessoas apenas com a nacionalidade francesa, refazer o currículo escolar para insistir uma educação mais nacionalista e ampliar as respostas contra o multiculturalismo.

Negacionistas e racistas: o ‘museu de horrores’ da extrema direita francesa

O partido Reunião Nacional fez de tudo para provar aos franceses que não são herdeiros de um movimento fascista, xenófobo e discriminatório. Moderaram o tom e, publicamente, condenam a violência. Mas pesquisas realizadas pela imprensa francesa revelam que a maquiagem esconde o que o jornal Libération chega a chamar de “museu de horrores”.

Neste domingo, a extrema direita espera obter seu maior resultado e, eventualmente, chegar a ter maioria na Assembleia Nacional para poder formar um governo. Para isso, foram buscar eleitores de centro e da direita tradicional, tentando romper com os fundadores do próprio partido.

Nos anos 70, quando o RN ainda era controlado por Jean Marie Le Pen, pai de Marine Le Pen, seu tesoureiro era Pierre Bousquet, ex-membro de uma das divisões da Waffen SS, no nazismo. Nos anos 80, Jean Marie Le Pen ainda afirmou que o Holocausto era “um mero detalhe da história” e, ao longo de sua vida, foi condenado 15 vezes por crimes de ódio. Há dez anos, ele confirmou que acredita na tese da “desigualdade das raças” e defendeu uma aproximação entre russos e franceses para salvar o “mundo branco”.

Há poucos anos, o guru de Donald Trump, Steve Bannon, esteve num comício do partido de Le Pen e fez uma sugestão aos políticos franceses: “se te acusarem de racistas, usem isso como uma medalha de honra”.

Hoje, muitos de seus candidatos não conseguem esconder suas raízes. Na região de Hautes-Pyrénées, por exemplo, a candidata Marie-Christine Sorin acusou a imprensa francesa de fazer “terrorismo climático” ao falar dos temas de meio ambiente. Ela apontou que “nem todas as civilizações valem” e que algumas “ficaram abaixo da bestialidade na cadeia da evolução”.

Frédéric Boccaletti, candidato na região de Toulon, chegou a ser condenado por “violência com arma”. Ele ainda é conhecido por seu relacionado com personagens que contestam crimes nazistas.

Sophie Dumont, candidata de Côte-d’Or, é uma adepta às teorias da conspiração, inclusive que indicam supostamente que a primeira-dama, Brigitte Macron, poderia ser um homem. Ela ainda chegou a apoiar a tese de que a Ucrânia seria o maior fornecedor de crianças para redes de pedofilia.

Gilles Bourdouleix, candidato de Maine-et-Loire, foi pego declarando que “Hitler não matou suficiente”, ao se referir a ciganos em sua região. Ele foi condenado por fazer apologia aos crimes contra a humanidade.

Emmanuelle Darles, da região Vienne, comparou a vacinação de crianças contra a covid-19 a um estupro. A candidata Caroline Parmentier, de Pas-de-Calais, defende abertamente a teoria do complô que supostamente confirma que a França estaria vivendo uma substituição de sua população. Ou seja, uma redução da população branca por negros e asiáticos.

Roger Chudeau, deputado de Loir-et-Cher, vai numa direção similar quando criticou o governo pela escolha da ministra de Educação, Najat Vallaud-Belkacem, diante do fato de ela ser “franco-marroquina”. Segundo ele, ela poderia ter “uma dupla lealdade”.

Existem também aqueles vinculados com a criação de grupos neofascistas, como Louis-Joseph Gannat Peche, de Meurthe et Moselle. O mesmo candidato, que acabou sendo substituído na eleição, ainda insultou um ministro por ser homossexual.

Hervé de Lépinau, de Vaucluse, é da opinião que o aborto é equivalente ao Holocausto e aos crimes do Estado Islâmico.

Não faltam ainda aqueles que flertam com ditadores e regimes pouco democráticos, como o caso de Jacques Myard e sua visita ao ditador sírio Bachar-al-Assad ou de Pierre Gentillet, criador do Cercle Pouchkine, um “think tank” considerado favorável ao Kremlin.

Lula afirma que aliança progressista na França serve de inspiração

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva celebrou ontem (07) os resultados das eleições da França.

“Muito feliz com a demonstração de grandeza e maturidade das forças políticas da França que se uniram contra o extremismo nas eleições legislativas de hoje. Esse resultado, assim como a vitória do partido trabalhista no Reino Unido, reforça a importância do diálogo entre os segmentos progressistas em defesa da democracia e da justiça social. Devem servir de inspiração para a América do Sul”, afirmou Lula.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, também se manifestou nas redes sociais. Para ele, o resultado das urnas francesas apontam para uma revolução mundial pela vida. “Sempre nos momentos mais tristes da humanidade, a Humanidade reage”, disse Petro.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, classificou de “histórica” a vitória da Nova Frente Popular. “Saudações ao povo francês, aos movimentos sociais e às suas forças populares, por este importante dia cívico que fortalece a unidade e a Paz”, destacou Maduro.

A presidenta de Honduras, Xiomara Castro de Zelaya, comemorou a vitória da esquerda francesa e aproveitou para também parabenizar o partido trabalhista inglês. “A Europa avança. O Partido Trabalhista triunfou no Reino Unido e agora em França, uma coligação de forças progressistas deteve a extrema direita e as suas ameaças. Parabéns aos povos inglês e francês por defenderem os direitos e a liberdade do povo”, disse Xiomara, nas redes sociais.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *