06/10/2024 - Edição 550

Especial

Vocação autoritária

Publicado em 11/02/2019 12:00 -

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O Palácio do Planalto quer conter o que considera um avanço da Igreja Católica na liderança da oposição ao governo Jair Bolsonaro, no vácuo da derrota e perda de protagonismo dos partidos de centro-esquerda e esquerda. Na avaliação da equipe do presidente, a Igreja é uma tradicional aliada do PT e está se articulando para influenciar debates antes protagonizados pelo partido no interior do País e nas periferias.

O alerta ao governo veio de informes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e dos comandos militares. Os informes relatam recentes encontros de cardeais brasileiros com o papa Francisco, no Vaticano, para discutir a realização do Sínodo sobre Amazônia, que reunirá em Roma, em outubro, bispos de todos os continentes. 

Durante 23 dias, o Vaticano vai discutir a situação da Amazônia e tratar de temas considerados pelo governo brasileiro como uma “agenda da esquerda”.  O debate, na verdade, irá abordar a situação de povos indígenas, mudanças climáticas provocadas por desmatamento e quilombolas.

SÍNODO

O que é?

É o encontro global de bispos no Vaticano para discutir a realidade de índios, ribeirinhos e demais povos da Amazônia, políticas de desenvolvimento dos governos da região, mudanças climáticas e conflitos de terra.

Participantes

Participam 250 bispos.

Cronograma do Sínodo

19 de janeiro de 2019: início simbólico com a visita do papa Francisco a Puerto Maldonado, na selva peruana;

7 a 9 de março: seminário preparatório na Arquidiocese de Manaus;

6 a 29 de outubro: fase final no Vaticano, com missas na Basílica de São Pedro celebradas por Francisco.

Tema do encontro

Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral.

As três diretrizes do evento

“Ver” o clamor dos povos amazônicos;

“Discernir” o Evangelho na floresta. O grito dos índios é semelhante ao grito do povo de Deus no Egito;

“Agir” para a defesa de uma Igreja com “rosto amazônico”

“Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”, disse o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que comanda a contraofensiva movida pela paranoia da extrema-direita brasileira.

Com base em documentos que circularam no Planalto, militares do GSI avaliaram que os setores da Igreja aliados a movimentos sociais e partidos de esquerda, integrantes do chamado “clero progressista”, pretenderiam aproveitar o Sínodo para criticar o governo Bolsonaro e obter impacto internacional. “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”, disse Heleno.

Arapongas da Abin em Manaus, Belém, Marabá, no sudoeste paraense (epicentro de conflitos agrários), e Boa Vista (que monitoram a presença de estrangeiros nas terras indígenas ianomâmi e Raposa Serra do Sol) estão sendo mobilizados para acompanhar reuniões preparatórias para o Sínodo em paróquias e dioceses. 

O GSI também obteve informações do Comando Militar da Amazônia, com sede em Manaus, e do Comando Militar do Norte, em Belém. Com base nos relatórios de inteligência, o governo federal vai procurar governadores, prefeitos e até autoridades eclesiásticas que mantêm boas relações com os quartéis, especialmente nas regiões de fronteira, para reforçar sua tentativa de neutralizar o Sínodo. 

O GSI planeja envolver ainda o Itamaraty, para monitorar discussões no exterior, e o Ministério do Meio Ambiente, para detectar a eventual participação de ONGs e ambientalistas. Com pedido de reserva, outro militar da equipe de Bolsonaro afirmou que o Sínodo é contra “toda” a política do governo para a Amazônia – que prega a defesa da “soberania” da região. “O encontro vai servir para recrudescer o discurso ideológico da esquerda”, avaliou ele.

Vamos entrar a fundo nisso, afirma Heleno

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro, afirmou que há uma “preocupação” do Planalto com as reuniões e os encontros preparatórios do Sínodo sobre a Amazônia, que ocorrem nos Estados. “Há muito tempo existe influência da Igreja e ONGs na floresta”, disse.

Mais próximo conselheiro do presidente Jair Bolsonaro, Heleno criticou a atuação da Igreja, mas relativizou sua capacidade de causar problemas para o governo. “Não vai trazer problema. O trabalho do governo de neutralizar impactos do encontro vai apenas fortalecer a soberania brasileira e impedir que interesses estranhos acabem prevalecendo na Amazônia”, afirmou. “A questão vai ser objeto de estudo cuidadoso pelo GSI. Vamos entrar a fundo nisso.”

Tanto o ministro Augusto Heleno quanto o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, hoje na assessoria do GSI e no comando do monitoramento do Sínodo, foram comandantes militares em Manaus. O vice-presidente Hamilton Mourão também atuou na região, à frente da 2.ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira.

Aliados italianos?

Como parte da uma estratégia para combater a ação do que chama de "clero progressista", o Palácio do Planalto recorrerá à relação diplomática com a Itália, que vive um bom momento desde o esforço do presidente Jair Bolsonaro para garantir a prisão de Cesare Battisti. A equipe de auxiliares de Bolsonaro tentará convencer o governo italiano a interceder junto à Santa Sé para evitar ataques diretos à política ambiental e social do governo brasileiro durante o Sínodo.

A ação diplomática do Planalto terá várias frentes. Numa delas, o governo brasileiro quer procurar os representantes da Itália e do Vaticano no Brasil – Antonio Bernardini e Don. Giovanni D'Aniello, respectivamente – para pedir a ajuda deles na divulgação dos trabalhos brasileiros nas áreas social, de meio ambiente e de atuação indígena. Serviria como contraponto aos ataques que o governo está certo que sofrerá no Sínodo, por ver influência de partidos de esquerda nesses setores. Os embaixadores do Brasil na Itália e no Vaticano também terão a missão de pressionar a cúpula da Igreja para minimizar os estragos que um evento como esse poderia trazer, dada a cobertura da mídia internacional.

Em outra ação diplomática, o Brasil decidiu realizar um simpósio próprio também em Roma e em setembro, um mês antes do evento organizado pelo Vaticano. Na pauta, vários painéis devem apresentar diferentes projetos desenvolvidos no País com intuito de mostrar à comunidade internacional a "preocupação e o cuidado do Brasil com a Amazônia". "Queremos mostrar e divulgar as ações que são desenvolvidas no Brasil pela proteção da Amazônia na área de meio ambiente, de quilombolas e na proteção dos índios", disse um dos militares do Planalto.

Também no Brasil, o governo quer fazer barulho e mostrar projetos sustentáveis. O primeiro evento já será nesta quarta-feira, na aldeia Bacaval, do povo Paresi – a 40 quilômetros de Campo Novo do Parecis, no norte de Mato Grosso. Ali, será realizado o 1.º Encontro do Grupo de Agricultores Indígenas, que tem por objetivo celebrar a Festa da Colheita.

O evento já estava marcado, mas o governo Bolsonaro quer aproveitar o encontro para enfatizar o projeto de agricultura sustentável tocado pelos índios naquela região. Trata-se do plantio de dois mil hectares de soja sob o regime de controle biológico de pragas, ou seja, sem pesticidas. Mais de dois mil indígenas (dados do último censo do IBGE) têm se revezado também no plantio de milho, mandioca, abóbora, batata, batata-doce e feijão. A nova direção da Funai afirma que pretende incentivar projetos semelhantes em áreas onde os índios tenham interesse em plantar em suas terras.

A apresentação de projetos de extração legal de madeira, assim como o apelo às empresas estrangeiras para que só comprem material certificado, é uma outra ideia para divulgar trabalhos realizados no Brasil. Com isso, o governo espera abrir outra frente de contraponto ao que vê como tentativa de interferência externa na Amazônia e ataque a políticas governamentais.

Passo atrás

Diante da polêmica causada pela divulgação dos atos de espionagem promovidos pelo Governo contra a CNBB, o GSI afirmou em nota que a Igreja Católica "não é objeto de qualquer tipo de ação" da Abin, mas confirmou que há "preocupação funcional" com alguns pontos da pauta do Sínodo.

"Parte dos temas do referido evento trata de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira", diz trecho da nota do GSI.

Veja a íntegra da nota do GSI emitida na última segunda-feira (11):

"Em relação à matéria publicada hoje no Jornal o Estado de São Paulo com o título “Planalto vê Igreja Católica como potencial opositora”, informamos o seguinte:

1. A Igreja Católica não é objeto de qualquer tipo de ação por parte da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) que, conforme a legislação vigente, acompanha cenários que possam comprometer a segurança da sociedade e do estado brasileiro;

2. Não há críticas genéricas à Igreja Católica. Existe a preocupação funcional do Ministro de Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional com alguns pontos da pauta do Sínodo sobre a Amazônia que ocorrerá no Vaticano, em outubro deste ano;

3. Parte dos temas do referido evento tratam de aspectos que afetam, de certa forma, a soberania nacional. Por isso, reiteramos o entendimento do GSI de que cabe ao Brasil cuidar da Amazônia Brasileira."

Do lado de quem?

O grupo de bispos brasileiros que prepara o Sínodo sobre Amazônia criticou a tentativa de incluir representantes do governo federal no evento. O cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, d. Cláudio Hummes, um dos mais próximos do papa Francisco, foi indicado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para levar ao Vaticano o pedido do Planalto para participar do encontro, mas ele sugeriu à equipe do presidente Jair Bolsonaro buscar outro interlocutor. “Sugeri que o governo acionasse a Embaixada do Brasil na Santa Sé como contato, pois se trata de uma questão diplomática”, disse ele ao Estado.

Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB e prefeito emérito da Congregação para o Clero em Roma, Hummes afirmou que a Igreja Católica não pretende prejudicar Bolsonaro nem dar uma “resposta” a repressões sofridas nos tempos do regime militar. “Deve-se ter a preocupação de não olhar para o passado, mas para o futuro, pois não é a mesma coisa agora”, disse, referindo-se a setores da Igreja que temem a repetição da conturbada relação do clero com a ditadura militar.

Um dos principais nomes da Igreja Católica em atividade na região Norte, o bispo emérito do Xingu (PA), d. Erwin Kräutler, reagiu com estranheza ao interesse do Planalto em influenciar o encontro religioso para tratar de temas como meio ambiente e índios. “Nós conhecemos a Amazônia muito melhor do que qualquer integrante do governo federal”, afirmou. “Como vão contribuir quando falarmos da situação da floresta, que vivemos há tantos anos?”, questionou.

Aos 79 anos, sendo 54 no Pará, d. Erwin disse que é incomum a participação de autoridades políticas nesses encontros globais promovidos pelo Vaticano. “Não, meu irmão. É um Sínodo de bispos!”, disse. “Nunca vi membro de governo de qualquer país convidado”, acrescentou. “O que um representante do governo vai dizer quando estivermos tratando de novos caminhos da evangelização?”

D. Erwin foi um dos autores da Encíclica do Meio Ambiente, documento assinado pelo papa Francisco em 2015, que serviu de base para a decisão da Igreja em realizar o Sínodo. Ele afirmou que os representantes dos governos dos outros oito países da Amazônia – Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e França (Guiana Francesa) – também deveriam ser convidados. “Se convidar alguém do Brasil, o papa terá de chamar também pessoas de outros países. Isso me parece até um absurdo.”

Outro envolvido nos preparativos do Sínodo, o presidente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), d. Roque Paloschi, disse que o encontro focará uma “realidade” de “direitos negados” a índios, ribeirinhos, quilombolas e extrativistas. “Não estamos jogando culpa em ninguém, estamos assumindo uma responsabilidade histórica que exige de nós clareza”, afirmou. “A Igreja tem de ficar do lado de quem? Ao lado de quem promove a morte ou de quem busca a vida?”, questionou.

D. Roque discorda da visão do Planalto de que os religiosos agem por simpatia à esquerda e antipatia a Bolsonaro. “A missão da Igreja é viver o Evangelho”, afirmou. “Não temos nada a esconder. Mas também não temos de nos encolher porque há uma preocupação do governo.”

Para D. Roque, a preocupação do governo é desnecessária. "O Sínodo não tem a intenção de dar norma para o governo, mas de encontrar caminhos que nos ajudem a viver a solidariedade e a fraternidade com as populações que vivem na Amazônia há milhares de anos", disse. 

"Se os bispos fazem crítica é querendo ajudar, não derrubar. Eles sabem onde o sapato aperta. Vão falar da situação dos povos e do bioma ameaçado. Mas não para atacar frontalmente o governo", rebateu D. Erwin Kräutler.

Cada vez mais protagonista na oposição, Fernando Haddad disse duvidar que o Papa Francisco ceda em suas convicções para “censurar bispos sobre pauta ambiental” para atender à vontade do presidente Jair Bolsonaro. “Bolsonaro quer que Itália pressione Vaticano a censurar bispos sobre pauta ambiental. Estive com o Papa discutindo a encíclica Laudato Si. Acho difícil ele abrir mão das suas convicções para adotar as de Bolsonaro”, escreveu o petista nas suas redes sociais.

Espionagem

O ex-ministro Gilberto Carvalho disse que a decisão do governo de monitorar os bispos que vão participar do Sínodo da Amazônia, expõe o Brasil ao "ridículo internacional". Segundo ele, é errado supor que a Igreja é um “braço do PT”, como pretendem setores do governo. Para Carvalho, ao mirar nos bispos, o governo, que tem forte influência evangélica, estimula a divisão religiosa no Brasil e tenta encobrir os problemas ocorridos no início da administração Bolsonaro.

“Como brasileiro, fico envergonhado”, disse Carvalho. “O Sínodo é uma iniciativa da Santa Sé que articula bispos de toda a Amazônia que vai muito além do Brasil. Tem o Peru, Colômbia, Venezuela, Equador”, concluiu o ex-ministro.

Dizendo esperar que os militares “com bom senso” revejam o que ele chama de “tentativa de criar um estado policialesco”, Carvalho considera perigosa a ofensiva do governo amparado por evangélicos contra a Igreja Católica.

“Uma notícia dessas ridiculariza o Brasil, além de mostrar a pretensão de criar um estado policialesco. Ao mesmo tempo põe lenha na fogueira dessa guerra religiosa que eles tentam criar no Brasil. É perigoso separar católicos de evangélicos. Este governo tem um setor evangélico com muito peso e isso é ruim para a laicidade do estado, para a liberdade religiosa”, afirmou.

Ele lembra que a CNBB jamais emitiu uma nota oficial em defesa dos governos do PT e que organismos ligados à Igreja como o CIMI e a CPT tiveram postura crítica aos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, além de lembrar o episódio envolvendo o bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, que fez greve de fome contra a transposição do rio São Francisco na gestão Lula.

“Majoritariamente a Igreja Católica nunca teve ligação com o PT. De jeito nenhum. Sempre foram minoritários os setores da Igreja que tiveram uma ligação mais forte com o PT. Há uma área ligada às comunidades de base que tem pontos de convergência com o partido. Tem gente que foi despertada para a militância a partir de Igreja, mas parceria nunca houve", disse Carvalho.

"Também nunca houve um documento da CNBB que tenha elogiado os governos do PT. O que houve foram conflitos como a questão do dom Cappio. O CIMI o tempo todo teve uma postura crítica contra o governo Lula. O mesmo CIMI que está criticando o governo Bolsonaro agora."

Segundo ele, o governo tenta criar uma cortina de fumaça para os problemas ocorridos desde a posse de Bolsonaro. “Este anúncio de monitoramento obedece a uma tática canhestra de o tempo todo encontrar inimigos, de forma conspirativa. até para encobrir os problemas que eles têm neste tempo de governo”, afirmou o petista.

O ex-ministro Aloizio Mercadante defendeu a convocação imediata do general Augusto Heleno à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional e uma ação da oposição junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que seja declarada inconstitucional a medida provisória que instituiu o monitoramento das Ongs no país. Segundo Mercadante, o general precisa apresentar explicações sobre as denúncias de espionagem do governo às atividades da CNBB e ao Sínodo da Amazônia.

Por meio de nota publicada em seu site oficial, o PT repudiou a ação do governo. "O alto grau de intolerância e autoritarismo deste governo se revela na forma como o general Augusto Heleno, chefe do GSI, admite a espionagem e ataca politicamente a Igreja, por debater em alto nível a realidade da Amazônia."

Assim como as declarações de Gilberto Carvalho, o texto ressalta a má imagem que atitudes como essa podem dar ao Brasil perante o mundo. E diz ainda que "A ordem de 'neutralizar isso aí', como se referiu o general ao Sínodo da Amazônia, remete o Brasil de volta aos tempos da repressão aos que lutaram pela liberdade e pelos direitos do povo."

O coordenador do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, usou sua conta no Twitter para condenar a espionagem do governo Bolsonaro sobre a CNBB. 

"Governo Bolsonaro usa a ABIN para espionar reuniões de bispos da CNBB sobre a defesa da Amazônia, que seriam "agenda de esquerda" e "ingerência externa". A saudade da ditadura se transforma em reencontro com velhas práticas", disse.

Histórico

A relação tensa entre militares, governo e Igreja Católica no Brasil começou ainda em 1964 e se manteve mesmo nos governos de “distensão” dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, último presidente do ciclo da ditadura.

A CNBB manteve relações amistosas com governos democráticos, mas foi classificada pela gestão Fernando Henrique Cardoso como um braço do PT quando criticou a política agrária do governo FHC e a decisão dos tucanos de acabar com o ensino religioso nas escolas públicas.

O governo do ex-presidente Lula, que era próximo de d. Cláudio Hummes, ex-cardeal de São Paulo, foi surpreendido, em 2005, pela greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio. O religioso se opôs à transposição do Rio São Francisco.

Com a chegada de Dilma Rousseff, a relação entre a CNBB e o PT sofreu abalos. A entidade fez uma série de eventos para criticar a presidente, especialmente por questões como aborto e reforma agrária. A CNBB, porém, se opôs ao processo de impeachment, alegando que “enfraqueceria” as instituições.

Assim que os primeiros comunicados da Abin sobre o Sínodo chegaram ao Planalto, os generais logo fizeram uma conexão com as críticas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Órgãos ligados à CNBB, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), não economizaram críticas e alertas, que continuaram após a eleição e a posse de Bolsonaro na Presidência.

A Pastoral Carcerária, por exemplo, distribuiu nota na semana passada em que critica o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que, como juiz, condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato.

Na campanha, a Pastoral da Terra divulgou relato do bispo André de Witte, da Bahia, que apontou Bolsonaro como um “perigo real”. As redes de apoio a Bolsonaro contra-atacaram espalhando na internet que o papa Francisco era “comunista”.

Fazendo jus a seu estilo, digamos, pouco refinado, o presidente chegou a dizer que a CNBB seria a “parte podre” da Igreja Católica – veja o vídeo.

Como resultado, Bolsonaro desistiu de vez da CNBB e investiu incessantemente no apoio dos evangélicos. A princípio, ele queria que o ex-senador e cantor gospel Magno Malta (PR-ES) fosse seu candidato a vice. Eleito, nomeou a pastora Damares Alves, assessora de Malta, para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 

Ora, se O Governo Bolsonaro está preocupado com a influência religiosa na sociedade, deveria olha primeiro para os aliados, evangélicos. No último domingo (10), a Record, no programa Domingo Espetacular, por 20 minutos criminalizou o MST por ter um projeto com crianças e adolescentes filhos de Sem Terras. A lógica do programa era a de que eles são doutrinados a defender o movimento.

A matéria realizada na TV do bispo Edir Macedo beira o ridículo, já que a doutrinação de crianças, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade e fragilidade é a base do enriquecimento da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Os bispos prometem a cura de todo tipo de doenças para quem vender seu carro e colocar na conta de “deus”. Falam que “deus” vai prover emprego, vida com fartura e tascam a pegar grana de gente que não tem sequer o que comer.

Vocação autoritária

Ter o governo federal espionando setores da Igreja Católica que atuam na defesa dos trabalhadores e povos na Amazônia sob a justificativa de evitar "interferência em assunto interno do Brasil" não é novidade. Isso ocorreu tanto sob os militares quanto no governo civil pós-redemocratização, portanto, seria claro que aconteceria na gestão anfíbia de Jair Bolsonaro. O que surpreende é a desenvoltura com que isso é escancaradamente assumido.

As declarações do general Augusto Heleno são preocupantes. Ele afirma categoricamente o governo está agindo para monitorar e limitar a ação da ala mais progressista do catolicismo.

O general criticou a atuação da igreja e de organizações não-governamentais na Amazônia e afirmou que "o trabalho do governo de neutralizar impactos do encontro vai apenas fortalecer a soberania brasileira e impedir que interesses estranhos acabem prevalecendo na Amazônia".

Quando a ditadura militar se aliou a empresas brasileiras e estrangeiras para acelerar o processo de integração da Amazônia à economia global, que teve como "efeito colateral" a morte, a expulsão e a escravização de trabalhadores e povos do campo (num processo que segue ativo até hoje, sem interrupções), quem estava lá para enterrar os mortos, defender os sobreviventes e curar sua feridas eram organizações como a CPT e o CIMI, ambas ligadas à CNBB. Vale lembrar que a primeira denúncia com repercussão internacional por trabalho escravo na região, que veio a público com a ajuda da CPT e contra a vontade da ditadura, teve como alvo a fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul do Pará, que pertencia à Volkswagen.

A Teologia da Libertação tem sido uma pedra no sapato das alas mais conservadoras da Santa Sé e das elites política e econômica da América Latina há décadas por estar diretamente relacionada com a mobilização social de trabalhadores e moradores na busca por seus direitos. O discurso de que a solidariedade é reconhecer no pobre e no desamparado um semelhante e caminhar junto a ele pela libertação (da alma e do corpo) de ambos é visto como um problema para muita gente. 

Nomes como Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, Henri des Roziers, Erwin Krautler e Xavier Plassat, que estão ou estiveram junto ao povo, no meio da Amazônia, defendendo o direito à dignidade, acolhendo camponeses, quilombolas, indígenas e demais excluídos da sociedade, foram ou são perseguidos e ameaçados de morte. Padre Josimo e a irmã Dorothy Stang são exemplos de quem perdeu a vida por se colocar no caminho do desenvolvimento a qualquer custo.

Não é que eles tentam apenas suprir o buraco deixado pela ausência de políticas públicas para a garantia dos direitos mais fundamentais. Eles ajudam a evitar que esse mesmo Estado continue com sua política de rolo compressor contra esses direitos. E é por tornar mais difícil a tarefa de rifar a vida dos trabalhadores e dos povos da Amazônia que incomodam tanto.

Teorias da conspiração

Uma teoria da conspiração famosa é aquela em que os estrangeiros querem destacar a Amazônia do restante do país, ocupando-a com forças militares. Quem curte essa teoria cita, como argumento irrefutável, livros didáticos obscuros com mapas esquisitos ou documentos com planos mirabolantes de tomar a maior floresta tropical do mundo. Durante muito tempo, fez sucesso entre militares da reserva e amantes de chapéus de papel alumínio.

Mas ela não responde uma pergunta básica: para que o trabalho de tomar conta daquela bagunça fundiária, se as riquezas já fluem para fora da Amazônia através de empresas brasileiras e estrangeiras? Multinacionais que, aliás, financiaram políticos nacionalistas que são chegados em uma teoria da conspiração. Ou mesmo do tráfico de DNA, do contrabando de espécies e do roubo de conhecimento de populações tradicionais pela mão de organizações criminosas.

Variante dessa é a teoria de que devolver terras aos indígenas em regiões de fronteira, demarcando e homologando territórios, pode fomentar a independência desses povos do restante do Brasil. E que, por isso, arrozeiros e outros produtores rurais, muitas vezes ocupantes ilegais dessa áreas e que adotam uma política de terra arrasada no trato ambiental, deveriam ser mantidos para "resguardar" nossos interesses. Porque estes sim seriam confiáveis e estariam lá para proteger o país.

Os territórios indígenas pertencem à união e nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra nesse sentido. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo, sentirem-se efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania. Coisa que o país nunca garantiu a eles plenamente. Não apenas negou, como atuou ou foi leniente em ataques à sua vida. Da tentativa de genocídio dos Waimiri Atroari, entre o Amazonas e Roraima, perpetrado na ditadura militar, até a morte de indígenas Guarani Kaiowá, que ocorrem, hoje, no Mato Grosso do Sul, por bala e desnutrição, a lista é longa.

Durante a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, menina dos olhos do governo Dilma Rousseff, outra teoria conspiratória muito acionada foi a de que as organizações e pessoas contrárias ao projeto eram compradas por governos e entidades estrangeiros ou inocentes úteis a serviço do já citado inimigo externo. Chegou a circular um documento creditado à Agência Brasileira de Inteligência listando organizações nacionais e estrangeiras envolvidas no debate de Belo Monte, mostrando relações de parceria e financiamento.

O discurso das conspirações que produzem "ameaças externas contra o interesse nacional" mexe com o imaginário popular. E gera identidade reativa, agrupando a população sob a influência dos criadores dessas teorias. Pois são eles, os outros, contra nós. E, dessa forma, o outro passa a ser demonizado sem, ao menos, ser conhecido.

Tudo isso vai por uma linha de raciocínio que reduz quem não concorda com o governo a pessoas sacanas ou ignorantes. Ou seja, quem defende um desenvolvimento sustentável e o direito dos trabalhadores e das populações tradicionais frente ao crescimento econômico que age sem ética ou limites atua de má fé (representando interesses estrangeiros para ganho próprio) ou é ingênuo (e não percebe que está sendo usado pelo inimigo).

Ignora-se a terceira opção: pessoas que discordam da forma como é alcançado o dito progresso e que acreditam que o sucesso econômico sem garantir dignidade e qualidade de vida à esta e às futuras gerações não nos serve e está fadado ao fracasso. Além do mais, um dos pilares da democracia é exatamente o direito à divergência e à sua livre expressão – princípios que devem ser garantidos e não "neutralizados" pelo Palácio do Planalto.

Amazônia já foi "internacionalizada", mas por empresas

O Brasil vai alcançar seu ideal de nação não quando for o celeiro do planeta ou quando tiver um assento entre os grandes, mas no momento em que seus filhos e filhas tiverem a certeza de que não serão expulsos de suas comunidades tradicionais para dar lugar a plantações de soja e hidrelétricas. Que não serão escravizados em fazendas de gado e cana gerando lucros no altar da competitividade. Que não precisarão cruzar os dedos para que uma barragem de uma multinacional não rompa e mate centenas de trabalhadores, moradores, turistas.

É claro que há todo tipo de organização da sociedade civil. Até porque o "não-governamental" é uma categoria que engloba toda pessoa jurídica que não é empresa ou governo. Mas, da mesma forma, existem empresas e governos desqualificados. Todos devem ser questionados. Contudo, não vemos com frequência declarações de autoridades reclamando sobre a degradação ambiental, social, trabalhista causada por multinacionais brasileiras ou estrangeiras. Afinal, a Amazônia não foi "internacionalizada" por ONGs, mas por multinacionais que, por exemplo, dominam os escoamento de seus produtos.

Durante a Gloriosa, muitas das pessoas que se dizem de esquerda e lutavam contra os militares pediram e receberam apoio de organizações internacionais de direitos humanos para denunciar a morte, a escravização, o extermínio. Sem esse apoio, alguns deles nem estariam aqui hoje. Mas quando alçaram ao poder, a necessária solidariedade internacional (uma vez que a defesa da dignidade humana não pode conhecer fronteiras) foi vista como ameaça contra a soberania brasileira e tratada como tal. Não deixa de ser irônico que o governo do PSL aprofunde uma estratégia que foi usada pelo governo do PT.

O ano de 2017 foi o mais violento no campo desde 2003. De acordo com o levantamento anual da CPT, 70 assassinatos em conflitos foram registrados. Antes que alguém questione que isso não é nada comparado à outra tragédia (os 6.731 óbitos de forma violenta no Estado do Rio de Janeiro, em 2017), vale considerar que Altamira (PA), base para a construção da hidrelétrica de Belo Monte e de um sem-número de violações aos direitos de trabalhadores e povos do campo, apresentava 107 mortes para cada 100 mil habitantes segundo o Atlas da Violência 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa no Rio, no ano passado, foi de 40 mortos para cada 100 mil habitantes.

Os assassinatos no campo na Amazônia são resultado de um modelo de desenvolvimento concentrador, excludente, que privilegia o grande produtor e a monocultura, em decorrência ao pequeno e o médio. Que superexplora a mão de obra, chegando, no limite, à escravidão contemporânea, a fim de facilitar a concorrência em cadeias produtivas cada vez mais globalizadas. Que pouco se importa com o respeito às leis ambientais, porque o país tem que crescer rápido, passando por cima do que for. Que divide o espólio da corrupção e do desvio de recursos públicos ou royalties milionários pagos a municípios pobres. E, claro, que fomenta a grilagem de terras e a especulação fundiária, até porque tem muita gente graúda que se beneficia com as terras que griladas, esquentadas ou regularizadas e disponibilizadas para a comercialização.

De acordo com a CPT, os assassinatos de sem-terra, indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores, assentados, entre outros, tiveram um crescimento brusco a partir de 2015. Em 2017, o Pará registrou 21 assassinatos – sendo que dez apenas no Massacre de Pau D'Arco. Rondônia, Bahia, Mato Grosso, Maranhão e Amazonas completam a lista dos seis estados mais mortais. Fortalecidos pelas alianças políticas que fizeram, há produtores que veem neste governo um aliado para suas demandas.

O ministro Heleno defende posições duras, mas não se furta ao diálogo. Por isso deveria analisar essa ação contra o "clero progressista" sob a luz dos direitos civis presentes na Constituição Federal e nos tratados internacional que o governo endossou. Se fizer isso, verá que não são eles os inimigos. A partir daí, poderia propor uma mudança na forma como o poder público enxerga a Amazônia uma vez que a presença do Estado na região é seletiva: está para financiar a produção e também monitorar aqueles que defendem a dignidade. E ausente na hora de garantir que povos e trabalhadores tenham uma chance melhor de sobrevivência.

Por fim, o ministro deveria se preocupar com o verdadeiro impacto negativo para a imagem do Brasil lá fora, causado por declarações que brotam da área de Relações Exteriores. Da oferta de bases militares aos Estados Unidos às ameaças de frear a política brasileira contra mudanças climáticas (que prevê a redução no desmatamento), essas declarações não parecem estar alinhadas com o interesse do povo brasileiro. Nesse sentido, uma boa revisão das prioridades poderia "neutralizar impactos", "fortalecer a soberania brasileira e impedir que interesses estranhos acabem prevalecendo na Amazônia".   

Em tempo: Deus queira que todo esse barulho não tenha sido causado por disputa religiosa.


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