Especial
Direita quer convencer precarizados de que eles são empreendedores: e eles acreditam
Publicado em 30/08/2024 1:57 - Leonardo Sakamoto (UOL), Bruno de Freitas Moura (Agencia Brasil), Vinicius Konchinski (Brasil de Fato) – Edição Semana On
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Sete em cada dez trabalhadores autônomos desejam os direitos e proteções da carteira assinada, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. Num país que empurra trabalhadores para atividades precarizadas e que ganham pouco, convencendo-os de que são empreendedores, o dado da FGV-Ibre lembra que esse discurso não cola com todo mundo.
Uma coisa é empreender, criar o próprio negócio e prosperar, com a possibilidade de crescer, contratar empregados e melhorar a própria vida e a de sua comunidade. Com independência de verdade para escolher o horário e a jornada. Isso é fundamental e precisa ser incentivado, pois a criação de empresas leva ao desenvolvimento do país.
Outra coisa são pessoas que, no desespero da sobrevivência, acabam aceitando exercer atividades precarizadas que remuneram pouco e não contam com proteção alguma de seguridade e previdência social. São trabalhadores de empresas com muita tecnologia, muitos lobistas e muitos advogados que espalharam a narrativa de que eles são empresários individuais que atuam por conta própria. Gabam-se de fazer seu próprio horário, mesmo que ele ultrapasse as 14 horas diárias, roubando tempo de si e da família para enriquecer os outros.
Em momentos de eleição, em que há candidatos que confundem o importante empreendedorismo de fato com a precarização, mostrar que há muita gente que trocaria a vida autônoma por um emprego decente com carteira é relevante. Aponta que o empreendedorismo de fato precisa ser incentivado e a outra, combatida. E que disputa pelo sentido do trabalho ainda não acabou, como desejariam alguns que defendem que a Justiça do Trabalho deveria dar lugar à Justiça comum.
A pesquisa da FGV ocorre sete anos após a Reforma Trabalhista ser aprovada, em 2017. O governo Michel Temer, sua base no Congresso Nacional e associações empresariais prometeram que ela removeria os “entraves” para que rios de leite e mel corressem pelas ruas das cidades brasileiras. E que brilhantes unicórnios vomitariam arco-íris perfumados sobre as contas bancárias dos mais pobres.
Claro que era cascata e, hoje, trabalhadores sentem na pele os resultados da precarização de proteções à sua saúde, segurança e dignidade feitas à toque de caixa e sem a devida discussão democrática.
Durante as eleições presidenciais de 2022, a simples menção à necessidade de rever parte dos pontos negativos da reforma gerava apreensão no mercado. Após Lula ressaltar, na campanha, a importância da contrarreforma que vem sendo tocada pelo governo espanhol para reverter a precarização das regras trabalhistas ocorrida por lá, em 2012, muita gente bonita crescida no leite de pera quase infartou em público.
É fascinante que algo gere apreensão no mercado após Bolsonaro (que ele ajudou a eleger) ter aloprado a economia em nome de seu projeto de poder. Ele pedalou com precatório se gastou desenfreadamente para tentar se reeleger e a maioria da Faria Lima só disse amém.
Acompanhei, no Congresso, um rolo-compressor de interesses econômicos atropelar a necessária discussão sobre a atualização na legislação em nome de um projeto que facilitou a precarização da proteção aos trabalhadores em 2017. Tentativas de aprofundar a discussão eram abortadas.
Propostas para realizar uma Reforma Sindical, que fortalecesse os bons representantes e desidratasse os picaretas antes da Reforma Trabalhista, por exemplo, eram vistas com desdém. Por outro lado, o projeto para enfraquecer as representações de trabalhadores passou com distinção e louvor. A mídia, por outro lado, ajudou a demonizar os sindicatos, nivelando os honestos com os picaretas.
Não havia espaço para o diálogo, apenas a pressa. Tanto que o Senado abriu mão de seu papel de casa revisora, aceitando aprovar o texto que veio da Câmara sem modificações. Engoliu a mentira de que o governo se empenharia para retirar pontos com os quais os senadores não concordavam.
Claro que toda legislação trabalhista precisa de revisão para se adaptar aos novos tempos. A própria CLT passou por várias desde que foi instituída – aquela história de que é o mesmo texto desde Getúlio Vargas é conversa para boi dormir. Mas o que aconteceu no Brasil não foi um diálogo tripartite, entre patrões, empregados e governo, buscando a atualização e a simplificação das regras. Foi a entrega de uma encomenda, pagamento pelo apoio de parte do empresariado à troca de comando na República.
Tanto não foi uma atualização que os legisladores de 2017 se furtaram a aprovar medidas eficazes para garantir proteções à saúde e segurança de entregadores e motoristas por aplicativos, uma das mais vulneráveis categorias. Hoje, políticos dizem que não era possível prever que esse novo proletariado urbano explodiria em número. Mentira. O Congresso e o governo foram alertados, mas ignoraram. Porque o objetivo era outro. Agora, a batalha para garantir isso esbarra no lobby das plataformas.
Ao analisar o DNA da Reforma Trabalhista, vemos que ela nasceu baseada em demandas apresentadas por confederações empresariais e grandes empresas junto com posições derrotadas em julgamentos no Tribunal Superior do Trabalho que significaram perdas a empresários e ganhos a trabalhadores. A esse pacote inicial, somaram-se dezenas de propostas de parlamentares e de seus patrocinadores.
No final, houve algumas boas alterações, outras inócuas e um pacotão de maldades.
Claro que uma Reforma Trabalhista não impacta a realidade sozinha, depende de uma série de outras variáveis. Mas os envolvidos em sua aprovação martelaram, dia e noite, nos veículos de comunicação, o contrário. E essa promessa de melhoria rápida do cenário do emprego foi usada para enganar a população desesperada por conseguir um serviço.
Mais do que propaganda enganosa, a isso se dá o nome de chantagem. Das mais baixas. Discute-se o estelionato eleitoral de Dilma Rousseff ao colocar em prática, no início de seu segundo governo, políticas econômicas que ela não havia prometido em campanha.
Porém, o estelionato político da Reforma Trabalhista é algo do qual raramente se fala. Esse tipo desequilíbrio na punição dos pecados, que se tornou comum por aqui, vai acabar matando a República.
Para a maioria das pessoas, isso não é um problema. Desde que possam continua fazendo seus pedidos de comida e bebida pelo celular. Com a entrega rápida e sem cobrar muito, claro.
Mais de 60% de desligados que viraram MEI agiram por necessidade
Mais do que uma oportunidade, se tornar microempreendedor individual (MEI) foi uma questão de necessidade para mais da metade das pessoas que tinham empregos formais e viraram MEI em 2022. A constatação faz parte de um levantamento divulgado na quarta-feira (21) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estudo foi feito com dados de até 2022, quando o Brasil tinha 14,6 milhões de MEIs, sendo que 2,6 milhões aderiram à modalidade jurídica no último ano do levantamento. Desses, o IBGE só tinha informações sobre experiências profissionais prévias de 2,1 milhões.
Os dados permitiram ao IBGE identificar que 1,7 milhão de MEIs tinham sido desligados das empresas, seja involuntariamente, por vontade própria ou término de contrato de trabalho temporário.
Ao analisar especificamente os trabalhadores que foram desligados por vontade do empregador ou justa causa, isto é, demitidos, o IBGE chegou ao quantitativo de 1 milhão de pessoas. Esse contingente representa 60,7% do total de desligados que viraram MEI em 2022.
Para o analista da pesquisa Thiego Gonçalves Ferreira o dado aponta que o microempreendedorismo individual muitas vezes é uma questão de necessidade. Ele parte da premissa que o empreendedorismo por oportunidade ocorre quando a pessoa planeja bem a decisão antes de montar o próprio negócio.
“A gente identifica que a maioria dos MEIs representariam a espécie de empreendedor por necessidade, uma vez que a causa do desligamento [do emprego anterior] não partiu dele, foi involuntário”, explica.
MEI
Microempreendedor Individual é a forma que o trabalhador pode se formalizar por conta própria, pagando imposto de forma simplificada e tendo acesso a direitos previdenciários, como aposentadoria por idade, por invalidez, auxílio-doença, salário-maternidade e pensão por morte para família.
Para ter acesso ao MEI, o trabalhador deve preencher uma série de requisitos, entre eles: exercer atividades que estejam na lista de ocupações permitidas; contratar, no máximo, um empregado que receba o piso da categoria ou um salário mínimo; não ser sócio de outra empresa; e ter faturamento anual de até R$ 81 mil (há exceções para o faturamento, a depender da atividade).
O levantamento do IBGE cruza dados de fontes como Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), Simples Nacional (Simei), Cadastro Central de Empresas (Cempre) e Relação Anual de Informações Sociais (Rais). A Rais é uma das fontes de dados sobre vínculo de trabalho prévio dos MEIs como, por exemplo, o motivo do desligamento.
Experiência prévia
Ao observar dados de 2,1 milhão de trabalhadores que eram empregados de outras empresas e viraram microempreendedor individual em 2022, percebe-se que alguns segmentos de atuação por conta própria têm grande ligação com a ocupação anterior da pessoa.
O maior destaque nessa correlação é o segmento de construção. Três em cada quatro MEIs (76,4%) desse segmento atuavam anteriormente como pedreiros. Já no segmento de transporte, armazenagem e correio, 61,6% trabalhavam como caminhoneiros antes de virarem MEI. No segmento de alojamento e alimentação, 40,9% eram cozinheiros.
“Essa experiência prévia pode determinar o sucesso do empreendedor”, avalia o analista do IBGE.
Apesar de a série histórica do IBGE começar em 2020, a pesquisa consegue identificar que 80% dos MEIs estabelecidos em 2019 apresentaram taxa de sobrevivência após três anos, ou seja, continuaram existindo.
Radiografia dos MEIs
Os 14,6 milhões de microempreendedores individuais encontrados pelo IBGE em 2022 representam alta de 11,4% na comparação com 2021 (13,2 milhões) e 18,8% do total de ocupados por empresas no país.
Pouco mais da metade (51,5%) dos MEIs atuam no setor de serviços. Em termos de participação, de todos os trabalhadores da área de serviço, 17,3% são MEIs.
O setor com maior parcela de MEIs é a construção. Quase um terço (31,4%) dos trabalhadores nessa atividade são microempreendedores.
Com cerca de 4 milhões de MEIs, São Paulo é a unidade da federação com mais microempreendedores, representando 27% do total do país.
De 2020 a 2022, 7 milhões de trabalhadores aderiram ao MEI, isto significa dizer que praticamente metade (48,6%) dos MEIs existente no Brasil surgiram nesse período de três anos.
O levantamento aponta ainda que menos de 1% (0,9%) dos MEIs empregam outra pessoa. O IBGE constatou ainda que 38% dos MEIs funcionam no mesmo endereço de residência do trabalhador.
Do total de MEIs em 2022, 28,4% deles (4,1 milhões) eram inscritos no Cadastro Único (CadÚnico, listagem do governo que identifica famílias de baixa renda). Desses no CadÚnico, metade (49,8%) era beneficiária do Auxílio Brasil (em 2023, o programa assistencial do governo federal voltou a se chamar Bolsa Família).
Emprego sem salário garantido cresce após Reforma Trabalhista
A quantidade de trabalhadores formalmente empregados no Brasil, mas que não recebe sequer um real de pagamento por mês, tem crescido. A possibilidade de contratação sem salário foi criada na Reforma Trabalhista de 2017 e, desde então, tem ganhado participação crescente do mercado nacional.
O crescimento está registrado em dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). De acordo com o cadastro, 5,86% das vagas de emprego com carteira assinada criadas no Brasil em 2023 foram de trabalho intermitente.
Em 2021, as vagas de trabalho intermitente eram 3,33% do saldo de contratações. Já em 2022, representavam 4,41% do total.
O trabalho intermitente é aquele no qual o empregado não tem uma jornada estabelecida a cumprir. Trabalha só quando é convocado pelo patrão e cumpre as horas conforme a necessidade da empresa. Recebe um pagamento proporcional a essas horas. Não tem garantido, portanto, um salário fixo por mês e nem sequer algum salário. Pode, inclusive, não ser convocado e nada receber.
“O trabalho intermitente é uma nova modalidade de contrato de trabalho criada pela Reforma Trabalhista e que se caracteriza pela ausência de continuidade”, explicou Maria Vitória Costaldello Ferreira, advogada, mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). “É um trabalho precário, que conta para as estatísticas, mas não é algo que gere valor, qualidade de vida.”
TRABALHO INTERMITENTE — SALDO DE CONTRATAÇÕES
2020 – 72.200.
2021 – 92.671 (retomada pós-pandemia).
2022 – 83.352.
2023 – 87.021.
SALDO GERAL CONTRATAÇÕES
2020 – menos 191.043.
2021 – 2.780.155 (retomada pós-pandemia).
2022 – 2.013.261.
2023 – 1.483.598.
PARTICIPAÇÃO DO INTERMITENTE — SALDO GERAL
2020 – não se aplica.
2021 – 3,33%.
2022 – 4,14%.
2023 – 5,86%.
Fonte: MTE/ Caged
O trabalho intermitente é hoje considerado um “trabalho não típico” justamente por conta de suas características. Dessa forma, equipara-se ao trabalho temporário e de aprendiz.
O MTE estima que 5,3 milhões dos 43,9 milhões de trabalhadores formalmente empregados no país no final de 2023 eram trabalhadores não típicos. Procurado pelo Brasil de Fato no último dia 2, o MTE ainda não informou quantos dos não típicos eram intermitentes.
Paula Montagner, subsecretária de Estatísticas e Estudos do Trabalho do MTE, afirmou em entrevista coletiva no final de janeiro que eles vêm crescendo. Ressaltou, inclusive, que hoje cerca de 66% dos trabalhadores intermitentes não trabalham e nada recebem.
“A gente tem verificado recorrentemente que dois terços dos trabalhadores intermitentes têm contrato, mas não tem hora trabalhada nem salário”, afirmou ela. “Existe a potencialidade, mas eles não têm trabalho na prática e muito menos rendimento.”
Precarização
O dado de 2023, aliás, é pior do que os verificados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em 2021. Com base em dados oficiais do MTE, o órgão verificou que, naquele ano, 20% dos trabalhadores intermitentes ficaram sem trabalhar. Em dezembro daquele ano, 46% não trabalharam.
Segundo o Dieese, em 2021, os trabalhadores intermitentes ganharam em média R$ 888 por mês. No mesmo ano, o salário mínimo era R$ 1.100 por mês. Ou seja, os trabalhadores intermitentes não trabalhavam o suficiente sequer para garantir um salário mínimo.
O economista Gustavo Monteiro trabalha no Dieese e ajudou a levantar os dados sobre trabalho intermitente. Para ele, o cenário é preocupante. Primeiro, porque essa modalidade de trabalho não gera renda necessária para a subsistência do trabalhador. Segundo, porque ele tem ganhado espaço até em setores que historicamente geravam empregos estáveis e com ganhos razoáveis aos empregados.
“Esse contrato foi criado com a expectativa de que fosse muito usado nos serviços de alimentação, para garçons e caixas de restaurante, por exemplo. Mas já temos esse contratos na indústria, na construção civil e no comércio também”, disse Monteiro, ao Brasil de Fato.
Contrarreforma
Monteiro é favorável a mudanças na legislação que revertam a Reforma Trabalhista de 2017, incluindo a reversão do trabalho intermitente.
Em sua campanha eleitoral em 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu readequar a legislação trabalhista nacional visando uma “extensa proteção a todas formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com atenção especial aos autônomos, trabalhadores domésticos e de aplicativos e plataformas”.
No final de janeiro, entretanto, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, sinalizou que uma eventual discussão do que ele chama de “famigerada Reforma Trabalhista” não deve ser feita em 2024. Ele afirmou que uma contrarreforma dependerá de aprovação de deputados e senadores no Congresso Nacional. Lembrou que o ano é de eleições municipais e que seu ministério não pretende “estressar” os congressistas.
“Minha pasta terá poucos projetos este ano para sobrar tempo para os deputados fazerem suas campanhas e apoiarem seus candidatos a prefeito e vereador. Este não é ano de estressar o Congresso. Queremos deixar o Congresso tranquilo”, afirmou Marinho.
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