18/05/2024 - Edição 540

Especial

Saúde não se negocia

Centrão chantageia Lula para se apossar do Ministério

Publicado em 16/12/2022 10:15 - Gabriel Brito (Outra Saúde), RBA - Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Caiu como uma bomba a notícia de que Arthur Lira estaria empenhado em levar o ministério da Saúde para seu grupo político. A suposta oferta de 150 votos pela aprovação da PEC da Transição (que garantiria o Bolsa Família fora do teto de gastos) representou um importante tensionamento político. Enquanto o golpismo neofascista segue nas ruas, a batalha pelo controle do próximo governo toma a frente do debate. Na grande mídia, foi dada como certa a nomeação da sanitarista e presidente da Fiocruz Nísia Trindade de Lima. Mas, aparentemente, a resposta de Lula à chantagem de Lira é suspender qualquer nomeação até a aprovação da PEC.

Nas entidades técnicas, científicas, grupos de defesa do SUS e categorias organizadas, a indignação é forte. A Frente pela Vida publicou pela manhã nota na qual afirma que “para cumprir esta missão, o cargo de gestor(a) nacional do SUS deve ser ocupado por uma pessoa com tradição no SUS, conhecedora do sistema público de saúde, comprometida com os avanços necessários à superação das deficiências atuais do SUS e sem conflito de interesses, ou seja, capaz de evitar qualquer barganha política com posições no ministério da Saúde”.

Outra importante manifestação veio de uma nota assinada por 42 entidades relacionadas ao setor, entre elas o Conselho Federal de Enfermagem e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. “A equipe de transição já manifestou a destruição em que se encontra o ministério da Saúde e os grandes prejuízos ao SUS, patrimônio do povo brasileiro, e que refletiu a completa inação durante a pandemia. Cabe destacar que mesmo com todos os ataques, desmontes e retrocessos, só o SUS, com suas/seus trabalhadoras(es), salvou a população de uma tragédia ainda maior, que ainda teve como resultado a interrupção da vida de quase 700 mil pessoas. Com o país de volta ao Mapa da Fome, é inadmissível que esteja sendo barganhada a PEC que viabilizará o Bolsa-Família. Não aceitaremos chantagens!”.

Na opinião daqueles que compreendem não só as necessidades da saúde pública como também a dinâmica de disputas políticas, Lira visa matar dois coelhos com uma cajadada só. De um lado, garante para sua base de apoio o ministério que terá o maior orçamento de 2023; de outro, que o passado de desmandos e corrupção siga oculto.

“O PP, de Arthur Lira, teve nas mãos o ministério da Saúde no período de Temer, após o golpe de 2016. Foi quando o engenheiro e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) foi o ministro. Vem daquela época o início do desmonte de órgãos como o Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DENASUS), ações de auditoria e a CartaSUS. Vale lembrar também que a CPI da Covid demonstrou esquemas dentro do ministério da Saúde, supostamente envolvendo pessoas relacionadas ao ex-ministro Barros e ao PP”, afirmou Luis Carlos Bolzan, ex-diretor do DENASUS, em entrevista à jornalista Conceição Lemes, do Viomundo, na quarta (14).

Se a reeleição ao comando da Câmara de um político fisiológico pode ser inevitável, entregar o controle do SUS, num contexto de enorme demanda reprimida, a quem garantiu a continuidade de uma política sanitária irresponsável que matou tanta gente é uma desmoralização grande demais para um governo que representa a esperança na retomada de alguma normalidade institucional e social.

“O Lula sabe que para governar precisa ter os apoios da sociedade civil organizada que acredita nele. E trair esse compromisso assumido com a área de saúde seria desastroso. Não dá pra buscar uma governança entre partidos, o executivo e o legislativo às custas da governabilidade democrática, ou seja, dos compromissos sociais e políticos que ele assumiu”, disse Sônia Fleury, pesquisadora da Fiocruz e cientista política, ao Outra Saúde.

Isto é, negociar com um legislativo hostil aos interesses populares é uma coisa. Colocar o SUS, talvez principal instrumento de uma política pública restauradora no próximo ano, na mão de quem elevou a inépcia administrativa ao inimaginável é outra. O comentário de Geraldo Alckmin sobre a dificuldade do grupo de transição é ilustrativo da herança de destruição e sabotagem do Estado deixada por Bolsonaro. E blindada por Lira.

“Há documentos desaparecidos, há apagões de dados que sempre existiram em governos anteriores e há rombos financeiros inexplicáveis. Simplesmente não existe registro de nada. Os dados dão a entender que o governo Bolsonaro aconteceu na Idade da Pedra, em que não havia palavras ou números. Há sistemas governamentais que não são abastecidos desde 2020 e ninguém tem explicação. A verdade é que o governo Lula não tem como saber o que precisa ser feito com base nos indicadores porque eles não existem. A política pública terá que ser criada do zero”, resumiu o novo vice-presidente.

Não é pouca coisa. Com a ajuda da mídia corporativa, que navega entre editoriais pró-austeridade e balões de ensaio, o país acordou diante da pressão de um grupo responsável ou conivente com: escândalos na tentativa de se comprar uma vacina não aprovada; sabotagem deliberada da campanha de vacinação mesmo após a compra dos imunizantes; militância presidencial contra a vacinação; esquemas de corrupção com verbas que deveriam ser destinadas ao SUS por meio do orçamento secreto; leniência na vacinação infantil.

“Tem muitos interesses, como o submundo do Ricardo Barros, que são interesses de corrupção, mas disso já sabemos e a mídia até repercute. No entanto, a ideia deste setor, inclusive da mídia empresarial, é evitar a nomeação de alguém do grupo sanitarista para o ministério, o que corresponde ao interesse dos grupos privados de saúde, que lhe pagam publicidade. Não é que Folha e Estadão defendem corrupção, mas têm interesses particulares que levam a isso”, explicou Sônia.

Servidora do ministério da Saúde no Rio de Janeiro, capítulo à parte dos jogos de poder pelo orçamento do setor, como mostrou Outra Saúde, Lúcia Pádua viu de perto a dobradinha da corrupção com a precarização do serviço. “Lira não aceita apenas comandar o orçamento secreto pela câmara, quer colocar seus tentáculos no executivo também, principalmente na saúde, para onde vai a maioria das emendas de relator. No caso de algum embaraço, seus agentes no ministério estarão a postos para liberar os empenhos. É sobre isso, é sobre dinheiro e poder. Não é sobre reconstruir a saúde”, criticou.

Dessa forma, Sônia Fleury considera que não há a mínima condição de ceder. “Penso que o país ficaria ingovernável porque a população estaria muito insatisfeita. Muitos recursos ou vão ser desviados pela corrupção ou canalizados para a área privada sem a melhoria da qualidade e da atenção à saúde da população. Seria um desastre. Lula conta com todos os sanitaristas e precisa contar com a população, que se não for bem atendida irá desacreditá-lo”, sintetizou.

Entidades: Não aceitaremos chantagem

Entidades da área da saúde totalmente comprometidas com o Sistema Único de Saúde (SUS) já começaram a reagir à chantagem na veia de Lira.

Entre elas a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP), que postou em suas redes sociais a nota abaixo.

A FRENTE PELA VIDA, que atuou severamente no enfrentamento da pandemia, tem prestado uma contribuição importante na discussão da política de saúde do Brasil. Em 5 de agosto de 2022, organizou a Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde, evento massivo que entregou uma carta compromisso ao então candidato à presidência da república, Lula. Nesse encontro e nos momentos posteriores, foram firmados compromissos fundamentais na perspectiva da política de saúde, criando uma expectativa importante junto a amplas camadas sociais.

Acesse a nota na íntegra

A FRENTE participou ativamente dos trabalhos da Comissão de Transição de Governo, no GT-Saúde entre novembro de dezembro de 2022, testemunhando o estado de precariedade em que se encontra o Ministério da Saúde neste final de governo. Tal situação, como é sabido, repercute no funcionamento do SUS, e prejudica a proteção e cuidados à população brasileira. Como por exemplo, o apagão de dados, a falta de informações sobre vacinas, a imprevidência em prover as redes de saúde de insumos básicos, entre muitos outros problemas.

Para a FRENTE, A ministra ou ministro de saúde a ser indicada/o para comandar o Ministério terá a função de retomar o ciclo virtuoso de construção do Sistema Único de Saúde, e tem o compromisso de devolver à população a exuberância do que é seu maior patrimônio público, um sistema 100% público, de direito universal, condições para exercício da sua função precípua de proteger, cuidar e defender a vida.

Por isso, a entidade se manifestou mais uma vez seu entendimento de que para cumprir esta missão, o cargo de gestor/a nacional do SUS deve ser ocupado por uma pessoa com tradição no SUS, conhecedora do sistema público de saúde, comprometida com os avanços necessários à superação das deficiências atuais do SUS e sem conflito de interesses, ou seja, capaz de evitar qualquer barganha política com posições no Ministério da Saúde. “E, espera-se, plenamente aberta ao diálogo com a sociedade, lembrando que neste momento nos preparamos para a 17ª. Conferência Nacional de Saúde que ocorrerá em 2023”, afirma.

Saiba quais são as urgências em saúde para o novo governo Lula

O grupo de trabalho da Saúde do governo de transição inseriu o fortalecimento do programa Farmácia Popular, das campanhas de vacinação e do SUS como um todo entre as urgências para os primeiros 100 dias do novo governo Lula. As propostas fazem parte do relatório que visam subsidiar o trabalho do novo Ministério da Saúde no combate ao que classificam como “absoluto caos” deixado na pasta pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).

Segundo o colunista Carlos Madeiro, do Uol, o ex-ministro Arthur Chioro, coordenador do GT da Saúde na equipe de transição, apresentou pontos do relatório ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) nesta quarta-feira (14). Na ocasião, falou aos conselheiros sobre os problemas que o próximo governo vai enfrentar. Entre eles, o aumento da desnutrição infantil e queda na cobertura vacinal.

“Falam que o governo foi incompetente, mas ele foi extremamente competente na destruição do Ministério da Saúde. É terra arrasada mesmo. Não estou diminuindo milímetro, foi um projeto de destruição”, disse Chioro.

Segundo a reportagem, Chioro disse que “algumas medidas são mais urgentes, para 30 dias; outras, para 60, outras 100 dias. Depende da ação”. E que a esperança do grupo para a implementação das medidas está na recomposição do orçamento da pasta, com a aprovação da PEC da Transição, aprovada no Senado e tramita na Câmara.

Queda na cobertura de vacinas de doenças erradicadas

O Ministério da Saúde tem previsão orçamentária de R$ 10,4 bilhões, com acréscimo de R$ 12,3 bilhões para a Saúde em caso da aprovação da PEC. “Não é o ideal, mas dá para colocar em prática algumas das políticas públicas”, disse o ex-ministro.

Chioro tem chamado atenção para a dramática situação da cobertura vacinal no país, com a possibilidade cada vez maior de surtos de doenças graves, que já estavam erradicadas. É o caso da paralisia infantil e muitas outras.  “Eles destruíram o PNI (Programa Nacional de Imunizações). Eu sai em 2015, tínhamos mais de 95% de cobertura vacinal. Sete anos depois, nenhuma tem. O quadro hoje é catastrófico”, disse Chioro.

Outro agravante, segundo ele, é a falta de transparência nas informações. E quando há os dados, são imprecisos. O grupo não conseguiu obter, ao certo, o número de doses existentes porque o ministério teria dificultado algumas informações.

Apagão nos dados e informações em saúde

“Na troca de documentos obrigatórios, a gente ia buscar, e eles diziam as informações estavam em anexo. Quando víamos, não tinha a informação. Boa parte dos dados sobre prazo de validade e estoque estão em sigilo e não foram informados. Outras vieram esta semana, quando relatório estava pronto”, disse.

Outro problema apontado é que boa parte das informações sobre quantidade e prazo de validade dos lotes dos imunizantes foram colocados sob sigilo. “Não podemos dar detalhes porque está sob sigilo; o presidente Lula, ao assumir, poderá revogar e aí poderemos falamos. Mas sabemos que 3 milhões de doses da vacina contra a covid venceram este mês, isso porque o TCU (Tribunal de Contas da União) falou”, disse.

Chioro falou também que há falta de dados sobre a fila de espera por procedimentos, represados por conta da pandemia, o que deixa o novo governo Lula no escuro. “É possível que 2 bilhões de procedimentos deixaram de ser feitos nos últimos dois anos e que formam as filas. Mas é uma estimativa, o ministério sabe o tamanho, o que ela é, onde é. Colocar esses procedimentos em dia é um dos nossos maiores desafios”, disse.

Desestruturação do SUS no Brasil

Ainda segundo a reportagem, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, afirmou que o mais chocante da apresentação do ex-ministro foi o panorama de “desestruturação do Ministério da Saúde e a ausência de coordenação do Sistema Único de Saúde.”

“Para nós, do CNS, não era uma novidade mas a partir da ausência de dados que teriam que ser repassados e também de alguns dados preocupantes”, disse ao Uol.

Além disso, não há kits de saúde para emergência suficientes. É o caso de situações pós enchentes ou deslizamentos. O número disponível, segundo o ex-ministro, não dá nem para a primeira emergência do ano. No relatório, o grupo sugere ainda 23 atos para revogação no novo governo Lula e alerta para o risco de colapso dos programas de doenças infectocontagiosas, como AIDS e hepatite, por falta de insumos e medicamentos

Confira a lista das 10 medidas para os 100 primeiros dias

– Fortalecer a gestão e a coordenação do SUS;

– Reestruturar o Programa Nacional de Imunização (PNI) para recuperar as taxas vacinais;

– Fortalecer a resposta à covid e a outras emergências;

– Redução das filas para especialistas ajustado ao fortalecimento das redes especializadas;

– Fortalecimento da política nacional de atenção básica e provimento dos profissionais de saúde;

– Fortalecer a saúde da mulher, da criança e do adolescente;

– Melhorar a saúde indígena;

– Resgatar o programa Farmácia Popular do Brasil e a assistência farmacêutica no SUS;

– Restabelecer o desenvolvimento do complexo econômico e industrial da saúde;

– Atuar nas questões relacionadas à informação e à saúde digital.


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