27/04/2024 - Edição 540

Especial

O FASCISMO

'Cartilha' extremista de Orbán na Hungria é modelo para Bolsonaro

Publicado em 29/03/2024 10:35 - Jamil Chade, Laila Nery (UOL), Ricardo Noblat (Metrópoles), Glauco Faria (Outras Palavras) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Milhares de pessoas protestaram em Budapeste na terça-feira (26), em uma área próxima ao Parlamento. Pediam a renúncia do primeiro-ministro Viktor Orbán e de seu procurador-geral. A manifestação foi organizada após a divulgação de um áudio feito por um ex-funcionário e ex-aliado do governo, Péter Margyar, em um diálogo com sua esposa e ex-ministra da Justiça, Judit Varga, apontando para uma tentativa de adulteração de documentos para acobertar um caso de corrupção envolvendo Pál Vílner, ex-secretário de Estado do Ministério da Justiça.

As manifestações são incomuns na Hungria atual, país em cuja embaixada Jair Bolsonaro se hospedou entre os dias 12 e 14 fevereiro e para o qual, suspeita-se, poderia pedir asilo político caso avancem os processos que podem condená-lo à prisão. Mas o que haveria por trás desta preferência húngara do ex-presidente? E por que Orbán desponta, nos últimos meses, como alguém relevante, na caterva de líderes da “nova” ultradireita?

A história começa em 2010. Ao longo dos últimos 14 anos, Viktor Orbán construiu uma espécie de “fascismo soft”, para usar a expressão de Zack Beauchamp, repórter sênior do Vox. “A oposição não foi esmagada – mas não consegue respirar”, relata o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring (confira entrevista concedida por ele ao Outras Palavras). Um conjunto de mudanças institucionais fechou o regime, submetendo o sistema eleitoral, o Judiciário e a mídia ao controle autoritário do primeiro-ministro e de seu partido, o Fidesz. Uma atividade intensa nas redes sociais, com ampla divulgação de fake news, ampliou este controle e laços especiais da presidência com certos empresários garantiram o financiamento do esquema – em troca de favores.

Como resultado, Orbán conseguiu formatar um modelo autoritário com aparência aparentemente legal, algo que não é exatamente novo e que vem se tornando tendência em diversas partes do mundo. Um sistema que, embora sem recorrer a um Estado policial, “visa acabar com a dissidência e assumir o controle de todos os aspectos importantes da vida política e social”, segundo Beauchamp. É este governante que troca elogios com Bolsonaro e talvez o inspire. Vale conhecer ponto por ponto o sistema político que ele construiu.

Virando à (extrema) direita

Nem sempre Viktor Orbán esteve no espectro da extrema direita, diferentemente de outras lideranças do campo que chegaram ao poder nos últimos anos. Em 1998, quando foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, governou como um conservador relativamente convencional, postura que mudou após o Fidesz perder as eleições de 2002 para uma aliança comandada pelo Partido Socialista.

Assim como acontece com extremistas derrotados em diversos lugares, Orbán e seus seguidores nunca aceitaram a derrota de 2002 como legítima, acusando seus oponentes de fraude eleitoral. Em entrevistas, atribuiu ainda sua derrota aos meios de comunicação e à influência do capital internacional. “Orbán mudou visivelmente depois de 2002”, conta a ex-companheira de militância do primeiro-ministro húngaro, Zsuzsanna Szelényi, em Tainted Democracy. Após o resultado, foi criada uma rede de grupos de campanha (chamados “cívicos”) para promover os ideais do Fidesz, particularmente sobre questões de identidade nacional e religiosa.

“Depois de também perder a eleição subsequente em 2006, Orbán deixou de lado seus colegas mais moderados. Quando o governo liderado pelos socialistas após a eleição de 2006 cometeu um erro político – um discurso do primeiro-ministro vazou, no qual ele admitiu que o partido mentiu durante a campanha sobre a situação da economia – Orbán lançou um ataque político agressivo para removê-lo do poder”, lembra Szelényi em artigo publicado em 2015. “Ele polarizou o discurso público, retratando a coalizão do governo liberal de esquerda como o adversário da nação e promoveu agitação para mobilizar constantemente as ruas.” Embora seus esforços para remover a coalizão governista do poder não tenham tido sucesso àquela altura, o governo foi obrigado a ir para a defensiva.

Seguindo a mesma toada, ao realizar um discurso em 2009 em uma reunião a portas fechadas, Orbán anunciou a necessidade de “estabilidade política” na Hungria, pedindo a criação de um “campo político central” que governaria o país por até 20 anos, suprimindo na prática o bipartidarismo dominante até então.

Modelo para o bolsonarismo

Há mais de uma década no poder, Orbán se transformou em fonte de inspiração aos bolsonaristas. Nesta semana, o jornal The New York Times revelou a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro na embaixada húngara, em Brasília, no que poderia ser uma tentativa de fugir da Justiça.

Mas a relação entre os dois líderes revela o papel que Orbán teve na construção das estratégias de poder por parte da extrema direita brasileira.

Num evento realizado no Brasil, em junho 2022, o deputado Eduardo Bolsonaro deixou claro que a Hungria de Viktor Orbán era o exemplo a ser seguido e apresentou uma espécie de guia para que a extrema direita chegue ao poder e se mantenha forte.

Em sua palestra, de pouco mais de 40 minutos, o deputado mostrou a um público ultraconservador os “feitos” de seu aliado em Budapeste. Mas, acima de tudo, usou seus ensinamentos como uma cartilha a ser seguida.

O deputado chamou a Hungria de Orbán de “um exemplo de sucesso, de muito sucesso”. “Temos algo a aprender com ele”, disse.

O evento – o CPAC (Conservative Political Action Conference) – é uma espécie de Meca da extrema direita mundial, reunindo movimentos europeus, Javier Milei, Bolsonaro e amplamente financiada pelos ultraconservadores americanos que formam a base de apoio de Donald Trump.

Em 3 de maio de 2022, Orbán já havia apresentado em outro evento do CPAC as doze lições para “o sucesso dos cristãos conversadores”.

Coube a Eduardo Bolsonaro assumir a apresentação da cartilha no Brasil, explicando a necessidade de dar uma resposta à “esquerda” e ao Judiciário que defende “direitos humanos que protege o vagabundo”.

Orbán, no poder desde 2010, transformou a Hungria num campo de testes da extrema direita. Ao longo dos anos, controlou o Judiciário, Parlamento e imprensa, além de fechar qualquer espaço para a participação da sociedade civil na formulação de políticas. Foi denunciado pela UE, mas jamais abriu mão de seu projeto e passou a ser chamado de o “líder autocrático mais sofisticado da Europa”.

Insignificante para o comércio brasileiro, marginal no debate geopolítico, pária dentro da Europa e com um peso irrisório no palco internacional, a Hungria passou a ser estratégica aos interesses do movimento de extrema-direita brasileiro.

Regras de Orbán: Jogar com suas próprias regras

Uma reforma eleitoral promovida após a vitória do Fidesz em 2010 praticamente inviabilizou a vitória da oposição em vários locais do país. Na Hungria, os parlamentares são eleitos em sistema distrital misto e o partido refez os desenhos dos distritos adotando o chamado gerrymandering, comum em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, que realizam o chamado redistritamento após a divulgação dos censos. Muitas vezes governadores adaptam os territórios para favorecer o partido no poder, mas se nos EUA há duas legendas em disputa, o redesenho húngaro foi dominado unicamente pelos interesses de Orbán.

No sistema húngaro são dados dois votos, um para um representante do seu círculo eleitoral de origem e outro para um partido. Em 2014, após as mudanças, o Fidesz obteve 45% dos votos mas levou dois terços dos assentos, enquanto outros três partidos conseguiram 51% e ficaram com um terço. A legislação nova deu mais assentos no Parlamento aos círculos eleitorais (106) do que àqueles eleitos por lista (93). Isso deu mais peso aos distritos remodelados, ajudando na formação de um resultado absolutamente desproporcional em favor do partido governista, que teve 45% dos votos nos círculos eleitorais individuais em 2014 e ainda assim obteve 88% dos assentos.

Em uma análise publicada depois dos resultados daquela eleição, o economista Paul Krugman dissecou os dados e concluiu que a “maioria absoluta” conquistada então “veio de uma variedade de truques legais contidos nas leis que foram escritas pelo Fidesz, para o Fidesz”.

Ainda havia mais alterações sob medida para favorecer os que estavam e ainda estão no poder. “Outra mudança complicada feita pelo Fidesz foi dar dupla cidadania aos húngaros étnicos que nunca viveram na Hungria. Com a nova Constituição de Orbán, cerca de 600 mil húngaros étnicos que são altamente favoráveis à direita receberam o direito de voto, ao mesmo tempo em que foi muito mais difícil para os cidadãos húngaros que vivem no exterior participarem das eleições”, explicou a secretária do Tribunal Constitucional Federal Alemão e editora associada do Verfassungsblog, Anna von Notz, em artigo publicado após a terceira vitória do partido governista húngaro em 2018.

Ela pontua que a mudança mais impressionante foi a chamada “compensação vencedora”. Em sistemas eleitorais mistos, muitas vezes um voto para um único candidato que perde o distrito é usado para complementar os totais na lista do partido. No caso húngaro, foi criado um sistema do avesso. Além de ganhar o mandato individual, os votos excedentes em relação àquilo que o candidato precisava para ganhar vão para a lista. Ou seja, o partido que venceu o distrito (que, como vimos foi redesenhado em favor do Fidesz) ganha mais votos no cálculo da lista partidária.

“A fraude eleitoral pode não acontecer apenas no dia da eleição. Nas autocracias modernas, assim como as ferramentas da repressão são muito mais sofisticadas do que nas ditaduras clássicas, as formas de manipular a eleição não consistem apenas em falsificar os resultados. A situação eleitoral é pré-organizada para produzir o resultado que os incumbentes querem: é isso que é uma eleição manipulada”, apontam os pesquisadores Bálint Magyar e Bálint Madlovics, do Instituto de Democracia CEU, em seu relatório sobre as eleições húngaras de 2022.

A primeira das regras a ser seguida é de que líderes devem “jogar com suas próprias regras”. Na explicação de Orbán, trata-se de uma estratégia de lidar com os problemas, sem aceitar as soluções e direções “impostas por outros”.

“É por isso que não devemos nos desencorajar ao recebermos gritos, ao sermos rotulados como incapazes ou ao sermos tratados como desordeiros no exterior”, disse o húngaro. “De fato, é suspeito se nada disso acontecer. Observe que qualquer um que jogue de acordo com as regras de seus oponentes certamente perderá”, disse.

Outro ponto do receituário é implementar o conservadorismo nacional na política interna. “As igrejas e as famílias devem ser apoiadas porque são os blocos de construção de uma nação”, disse ele.

Uma imprensa para chamar de sua e a ‘revolução das tias do zap’

“O primeiro movimento que o Fidesz fez após a vitória eleitoral em 2010 foi adotar a legislação da mídia. Naquela época, Orbán disse que essa medida era uma ‘correção’ para o viés esquerdista na mídia do país. As disposições legais então recém-adotadas, vagas e ambíguas, exigindo, entre outras coisas, que o conteúdo da mídia fosse ‘equilibrado’ e não incitasse o ódio ‘contra qualquer maioria’, visando a intimidação de jornalistas independentes”, contava, em 2017, o diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade (CMDS) da Escola de Políticas Públicas (SPP)da Central European University, Marius Dragomir.

Mas a estratégia era mais ampla e contava com a participação de empresários próximos de Orbán. Algumas fusões de grupos de comunicação foram negadas pelo Conselho de Mídia, enquanto outras eram estimuladas pelo governo, de acordo com o grau de “amizade” dos interessados com o Fidesz. Em agosto de 2017, os últimos cinco jornais independentes que haviam na Hungria foram comprados por oligarcas aliados do governo.

À época, a ONG Repórteres Sem Fronteiras criticou as negociações. “Essas últimas aquisições de apoiadores do partido no poder são mais uma confirmação do desejo do governo de controlar a mídia”, pontuava a entidade. “Este golpe para a independência da imprensa regional é o mais perturbador no período que antecede as eleições parlamentares.” Eleições estas vencidas pelo Fidesz.

Em 2018, no entanto, o plano deliberado de promover a concentração de mídia pró-governo atingiu seu ápice quando os investidores favoráveis a Orbán “doaram” 467 meios de comunicação, muitos dos quais originalmente adquiridos com empréstimos de bancos estatais, para a Central European Press and Media Foundation (Kesma), sob controle efetivo do governo. Isso facilitou a gestão financeira e o controle de conteúdo em relação aos meios de comunicação pró-governo. A formação da holding em um único dia foi tão bizarra que obrigou o governo a emitir um decreto classificando tais transações como de “importância estratégica nacional”, evitando qualquer questionamento em relação à lei da concorrência.

A publicidade estatal também foi direcionada de forma a sufocar os independentes. A emissora pró-governo TV2 recebeu 67% da publicidade estatal no setor de televisão, no ano de 2018, enquanto a independente RTL Klub, de alcance similar, recebeu apenas 1%, segundo relatório divulgado em 2019.

A cartilha também faz uma referência direta à necessidade de que esse movimento de extrema direita tenha “sua própria imprensa”. Ao apresentar as propostas no Brasil, Eduardo Bolsonaro usou exemplos de matérias do UOL para mostrar como era necessário que seu movimento tivesse seus próprios canais, principalmente nas redes sociais.

“Aqui é a parte que eu mais gosto”, disse o deputado. “Orbán apanhava muito da imprensa esquerdista. E como foi mudada? Milionários compraram (esses meios) ou abriram os seus. Então, o que era crítica passou a dar voz a sua visão de mundo”, explicou.

Ele ainda destacou o papel “das tias do zap”, que estariam questionando a imprensa. “As tias do zap tiram o sono desses caras (da imprensa). São elas que estão fazendo a verdadeira revolução”, completou.

Ao apresentar sua própria cartilha, em abril de 2022, Orbán foi claro sobre a importância da imprensa. “Precisamos ter a mídia porque só podemos mostrar a insanidade da esquerda progressista se tivermos a mídia para nos ajudar”, disse. “A opinião da esquerda só parece ser majoritária porque a mídia a ajuda a amplificar suas vozes”, alertou.

Segundo ele, “o problema” é que a mídia ocidental “está alinhada com a visão de esquerda”. “Aqueles que ensinavam repórteres nas universidades já professavam princípios progressistas de esquerda”, justificou o húngaro.

Eduardo Bolsonaro já tinha viajado para Budapeste em 2019 e, após um encontro com Orbán, disse que aprendeu com o húngaro “principalmente sobre cultura e trato com imprensa sem politicamente correto”.

Justiça de mãos atadas

Sistemas de Justiça em geral costumam ser alvo de partidos e regimes de extrema direita. Buscando ampliar seu raio de ação sem qualquer constrangimento legal, o objetivo é cercear a ação do Judiciário ou mesmo dominá-lo. Foi o que aconteceu na Polônia sob o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que promoveu, entre outras reformas no setor, normas dando ao Legislativo o poder de nomear integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, assim como a prerrogativa de escolher e destituir presidentes do Supremo Tribunal.

Na Hungria, o modelo de nomeação de juízes constitucionais, que incluía tanto o governo quanto a oposição, foi substituído por um novo processo assegurando que a vontade do partido no poder iria prevalecer. A mudança foi feita logo em 2010, quando Orbán assumiu, e foi aprovado ainda um aumento no número de titulares do Tribunal Constitucional, que passou de 11 para 15. Outra alteração se deu na escolha do presidente da Corte, que antes era definida por seus próprios integrantes e passou a ser feita por uma maioria de dois terços no Parlamento.

Com a redução do limite para aposentadoria compulsória de 70 para 62 anos, em 2013, o Fidesz já tinha a maioria dos membros do Tribunal. “É revelador, por exemplo, que dos 26 casos iniciados pela oposição e decididos entre 2014 e 2020, o Tribunal Constitucional constatou violações parciais da Constituição em apenas 2 casos, enquanto todas as outras moções foram completamente mal sucedidas”, aponta o pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas e especialista sênior em Estado de Direito da União das Liberdades Civis para a Europa, Viktor Z. Kazai, em artigo.

Kazai destaca ainda que, nos últimos sete anos e meio, a presidência da Corte ficou nas mãos de Tamás Sulyok, hoje presidente do país escolhido pelo Parlamento, após a renúncia de Katalin Novak, evidenciando a ligação política entre o Fidesz e o magistrado. “E é um sinal claro da falta de independência e autonomia do Tribunal o fato de este ter quase invariavelmente decidido a favor dos partidos governantes em casos politicamente sensíveis.”

Inúmeras outras mudanças foram feitas para ampliar o domínio do governo sobre o Judiciário. Em 2018, o Parlamento aprovou um projeto dando ao ministro da Justiça a palavra final sobre a nomeação, promoção e salário dos juízes. Por conta destas iniciativas, instituições da União Europeia implementaram processos contra o governo húngaro que bloquearam recursos para o país, existindo até mesmo a possibilidade de a Hungria perder seus direitos de voto na UE.

Sob pressão, Orbán promoveu em 2023 novas reformas buscando atender parte das demandas do bloco em relação à independência do sistema de Justiça. Mesmo consideradas insuficientes, as alterações fizeram com que a Comissão Europeia desbloqueasse em janeiro 10,2 bilhões de euros do Fundo de Coesão, destinado a ajudar os países a manter sua infraestrutura nos padrões da União Europeia. Trata-se de uma ajuda fundamental para a Hungria, que terminou o ano de 2023 com uma inflação de 17% e perspectiva de contração do PIB de 0,8%.

Fé e amigos

O receituário não esquece ainda da necessidade de que um povo tenha “fé”. “Se alguém não acredita no Julgamento Final, acha que pode fazer tudo o que estiver ao seu alcance”, disse Orbán. “Sua falta de fé é, portanto, perigosa”, afirmou o primeiro-ministro Orbán.

O húngaro ainda propõe que lideranças da extrema direita “façam amigos”. “Nossos adversários, os liberais progressistas e os neomarxistas, estão sempre unidos”, alertou. “Eles se apoiam uns aos outros”, disse.

“Os conservadores, por outro lado, são capazes de brigar entre si sobre a menor das questões, disse o primeiro-ministro. “E então nos perguntamos como nossos adversários conseguem nos cercar”, concluiu.

Em fevereiro, ele colocou em prática essa aliança, recebendo Bolsonaro em sua embaixada por dois dias.

Modelo exportação?

Nos discursos do Fidesz e de seu líder Viktor Orbán, por conta das restrições e dos processos em curso sobre o governo húngaro, o inimigo de ocasião hoje é a União Europeia. Mas, como em todo espectro da extrema direita, este é um papel que muda conforme os ventos políticos. Os comunistas já foram os inimigos principais, assim como os social-democratas, ONGs, George Soros, imigrantes… A estratégia clássica utilizada para manter sua base mobilizada.

As redes sociais na Hungria também são um instrumento importante para difundir o discurso de ódio e fake news. A organização Human Rights Watch entrevistou especialistas em privacidade e proteção de dados, integridade eleitoral e campanhas políticas, além de empresas envolvidas em campanhas baseadas em dados para analisar a campanha eleitoral de 2022. Segundo eles, as plataformas de mídia social desempenharam um papel importante, embora complexo, nas eleições de 2022.

“Por um lado, os anúncios políticos online criaram novas oportunidades para as campanhas da oposição chegarem aos eleitores num ambiente onde estes estão em grande parte excluídos dos espaços publicitários tradicionais. Por outro lado, uma vez que as leis nacionais que regulam os limites de despesas de campanha não estão sendo aplicadas aos anúncios online, a disponibilidade de publicidade no Facebook, em particular, beneficiou tremendamente o Fidesz, que com os seus recursos descomunais gastou mais do que a oposição”, diz a entidade.

A investigação também descobriu algo grave, a coleta de dados por parte do governo para uso político-eleitoral. “A Human Rights Watch descobriu que o governo reaproveitou os dados coletados de pessoas que se inscreveram para a vacina contra a covid-19, solicitaram benefícios fiscais ou se registraram para ser membros de uma associação profissional, para espalhar as mensagens de campanha do Fidesz. Por exemplo, as pessoas que enviaram seus dados pessoais a um site administrado pelo governo para se registrar para a vacina contra a covid-19 receberam mensagens políticas destinadas a influenciar as eleições em apoio ao partido no poder.”

O modelo Orbán conseguiu até agora ser vitorioso com essa mescla de mobilização permanente em defesa de valores tradicionais, medidas autoritárias e de controle que minam qualquer oposição, conseguindo chegar a uma parcela da população empobrecida pela adoção de medidas neoliberais e privatizantes na primeira década dos anos 2000.

“O Fidesz formou um pequeno grupo de capitalistas próximos do governo, ao mesmo tempo que prossegue com uma política muito antissindical”, disse ao Le Monde o economista da Universidade de Viena Joachim Becker. Como o capital quase nunca se importa com o grau de democracia de um país, Orbán conseguiu atrair investimentos da Audi, BMW e Opel, que criaram fábricas no país, gerando empregos importante no contexto húngaro pós-crise de 2008.

“Uma das partes mais desconcertantes de observar o fascismo húngaro soft de perto é que é fácil imaginar o modelo sendo exportado. Enquanto o regime de Orbán surgiu da história e da cultura política únicas da Hungria, seu manual para repressão sutil poderia, em teoria, ser administrado em qualquer país democrático cujos líderes tenham tido o suficiente da oposição política”, pontua Zack Beauchamp. Evitar a exportação do “modelo Orbán” para o resto do mundo implica em discutir os mecanismos da democracia e o que ela oferece à boa parte do excluídos social e economicamente, hoje seduzidos pelas promessas e soluções simples dos extremistas.

Escândalos levam milhares a pedir renúncia de Orbán

Abalado por escândalos de corrupção e acusações de interferência no Judiciário, o líder da extrema direita e primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, enfrentou na noite de terça-feira (26) protestos em Budapeste. Milhares de húngaros pediam que o chefe de governo renunciasse.

O protesto ocorre depois que um ex-aliado publicou áudios de conversas entre os conselheiros mais próximos de Orbán, sugerindo modificações em acusações na Justiça e no Ministério Público. As suspeitas apontam para uma suposta tentativa do governo de interferir na Justiça.

Na noite de ontem, os manifestantes realizaram uma passeata, sob os gritos de “renuncie, renuncie”. Muitos caminhavam com tochas.

‘Estamos fartos’

O responsável pela publicação dos áudios é Peter Magyar, ex-marido de Judit Varga, ex-ministra da Justiça de Orbán. Em suas redes sociais, ele revelou uma gravação ocorrida ainda em sua casa, na qual membros do governo tentavam manobrar procuradores diante de um caso que envolvia outros aliados do primeiro-ministro.

O casal era, porém, a imagem da família perfeita e conservadora que a extrema direita tenta implantar na Hungria.

A crise ocorre num momento tenso para o primeiro-ministro — dois de seus principais aliados caíram.

Em fevereiro, a presidente Katalin Novak e a própria Varga renunciaram por apoiarem a decisão de conceder perdão a um homem envolvido em um escândalo de abuso sexual infantil em abril de 2023. O vice-diretor de um orfanato estatal, que havia sido preso por encobrir uma série de abusos sexuais contra crianças, foi perdoado no ano passado — mas isso só se tornou conhecido no início de fevereiro.

Naquele momento, milhares de pessoas tomaram as ruas. Orbán justificou que apenas ficou sabendo pela imprensa.

Desta vez, durante os protestos, Magyar não escondeu que tem pretensões políticas. “Viemos dizer para aquelas pessoas no poder que estamos fartos”, disse o ex-membro do partido do primeiro-ministro.

Censura, segurança, homofobia: brasileiros contam como é a vida na Hungria

Brasileiros que vivem em Budapeste relatam que o avanço da extrema direita na Hungria foi marcado por censura, políticas anti-imigração, perseguição à comunidade LGBTQIA+ e contraste entre o interior, fortemente conservador, e a capital, mais liberal. Por outro lado, eles elogiam a segurança pública e a hospitalidade locais. Para eles, o primeiro-ministro, Viktor Orbán, adotou o radicalismo como tática para abafar casos de corrupção em seu governo.

Há 14 anos no poder, Orbán é o chefe de governo há mais tempo em exercício na União Europeia, desde 2010. Ele é considerado referência por bolsonaristas, pela forma como controlou Judiciário, Parlamento e imprensa e pelo seu cerco à sociedade civil.

“Orbán foi avançando aos poucos e conseguiu dominar tudo”, diz o brasileiro Guilherme Cintra, que mora em Budapeste há dez anos. “Avançou inclusive para tirar a atenção da corrupção e dos desvios de verba.” Doutor em ciência política, ele se mudou para o país após se casar com uma húngara e conseguir uma bolsa de doutorado. Agora, está de mudança definitiva para o Brasil.

“Ser um brasileiro que vive na Hungria é mais fácil quando se é branco, hétero, com uma família em teoria cristã. Eu estava estudando, e os húngaros entenderam que não fui competir com eles por trabalho. Consegui a cidadania, dominei a língua, me casei, tive uma filha. Naquela época, mais gente saía do país do que imigrantes chegavam, então as pessoas tinham muita curiosidade por eu ser um brasileiro lá. Não é tão comum”, diz Guilherme Cintra, doutor em ciência política.

O trabalho do diretor de cinema Sousa Haz, também há dez anos na capital, já foi afetado pela censura. O brasileiro com cidadania espanhola conta que um canal de TV voltou atrás no acordo de apresentar um videoclipe de uma banda de rock. “O diretor do programa percebeu que o clipe fazia uma crítica ao governo. Preferiu se blindar e optou por proibir a reprodução na emissora, pois sabia que aquela exibição iria custar o seu emprego”, afirma.

Apesar disso, Haz diz que a capital húngara é uma das cidades europeias mais receptivas onde ele já morou. “Cheguei aqui em um dia de manifestação da extrema-direita. Conversei com alguns manifestantes e eles eram surpreendentemente legais”, afirma. Ele também elogia a segurança pública na cidade. “Me sinto seguro aqui. A violência não é uma questão, nunca vi algo do tipo. Ninguém foi preconceituoso comigo nestes dez anos, nunca tive dificuldades para burocracias, por exemplo, sempre aluguei apartamentos com facilidade. Quando falo que sou brasileiro os sorrisos se abrem”.

O engenheiro Rodrigo Donato, 38, também destaca a segurança na Hungria. Ele e a mulher, também brasileira, moram há quase três anos em Budapeste. “A capital é uma exceção. É um dos poucos colégios eleitorais que não são dominados pela extrema-direita. Temos muitas universidades, uma comunidade internacional maior, multinacionais. É uma cidade mais tranquila para imigrantes”.

Mas o tratamento que o imigrante recebe depende da sua raça e do seu gênero, diz o brasileiro. “Minha esposa é uma mulher negra, e a experiência dela e de outras mulheres negras é bem diferente da minha. Existem relatos de perseguição no supermercado por seguranças e muita aspereza nos serviços públicos, principalmente para quem não sabe falar húngaro.”

A vida também é bem mais difícil para quem é LGBTQIA+, visto que o governo adota políticas contra os direitos dessa população. Rodrigo conta que amigos frequentemente saem do país pela falta de acolhimento e por rejeição dos familiares. “Dois amigos decidiram mudar de país pela pressão familiar, por serem gays. Mesmo que não exista uma repressão violenta, as pessoas não se sentem acolhidas. É complicado”, diz.

“Em uma Copa do Mundo, a seleção da Alemanha jogou aqui usando uma braçadeira com o arco-íris, em apoio ao movimento LGBTQIA+. Um amigo muito próximo me surpreendeu comentando que os jogadores deveriam manifestar esse apoio na Alemanha, mas não na Hungria”, relembra.

A presença de uma comunidade internacional e de universidades em Budapeste ajuda a explicar o contraste com o interior. Boa parte da população da Hungria não domina outros idiomas e não consegue consumir notícias de outros países. Os meios de comunicação de massa passam pelo crivo do Estado, ou seja, a veiculação de notícias, dentro da Hungria, também é dominadas por Orbán. A percepção de Guilherme, porém, é de que existe reação às políticas de Orbán.

“Na vida cotidiana em Budapeste, a pauta anti-gay não fez muito efeito. Acho que as pessoas estão até saindo mais do armário, se sentem motivadas a se posicionar contra essas leis. Ele mexeu num vespeiro”, afirma.

Para ele, as novas gerações apoiam os LGBTQIA+ e defendem direitos individuais. Mas os mais velhos, diz, têm muita dificuldade para compreender pautas liberais

Os brasileiros afirmam que as pautas conservadoras são uma cortina de fumaça para esconder escândalos de corrupção. Eles também destacam a religiosidade da Hungria, onde o catolicismo mais ortodoxo é forte, principalmente fora da capital. Sousa Haz acredita que a estratégia populista de Orbán para angariar votos da população conservadora não deve se manter por muito tempo. “Budapeste é anti-Orbán”, diz.

Orbán usa o medo do novo para dominar a população. “Algumas dessas pautas conservadoras, Orbán só adotou há pouco tempo, quando se aliou à coalizão de lideranças da extrema-direita mundial —que agora está cada vez mais articulada”, diz Julia Almeida, especialista em extrema-direita pela USP (Universidade de São Paulo).

“No século 20, o país foi muito disputado por fascismo e comunismo. Durante a Guerra Fria, políticas de ódio encontraram ali um terreno fértil. Por isso, o país é tão conservador. Extremamente patriarcal, a Hungria não debate pautas de gênero, raça e sexuais. A masculinidade e o estereótipo de homem forte fazem parte da construção histórica. Esse tempo de disputa durante a Guerra Fria também faz da Hungria um país que demorou para se abrir para o liberalismo”, explica.

Bolsonaristas tentaram comprar instrumento de espionagem usado por Orbán

Aliados de Bolsonaro, tentaram adquirir as mesmas tecnologias de espionagem que o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán usou contra opositores.

A relação entre os dois líderes ganhou um novo capítulo nesta semana, depois de o jornal The New York Times revelar que Bolsonaro permaneceu por duas noites na embaixada da Hungria, em fevereiro 2024, levantando a suspeita de que estaria tentando evitar uma eventual prisão. Além de uma ampla agenda política que aproximou o brasileiro e o primeiro-ministro, fontes diplomáticas revelam que houve uma “coincidência” de estratégias no setor da espionagem.

A tática usada em Budapeste era de resgatar o que era conhecido na União Soviética como “kompromats”, histórias inventadas contra inimigos. Para montar um esquema de difamação, o governo Orbán se valeu do uso da ferramenta de espionagem Pegasus contra jornalistas e personalidades públicas.

O software foi o mesmo que Carlos Bolsonaro tentou negociar para que fosse adquirido no Brasil em 2021. Se concretizado, o Pegasus teria a função de alimentar com informações externas ao governo a chamada “Abin paralela”. Além de hackear celulares, o Pegasus também possui um sistema para invasão de computadores.

Mas a licitação para a aquisição de uma ferramenta de espionagem revelou uma briga interna entre o alto comando militar e Carlos Bolsonaro.

Nos EUA, o Departamento de Comércio colocou em sua “lista vermelha” a empresa israelense NSO Group, fabricante Pegasus.

No caso do uso da tecnologia pela Hungria, foi revelado ainda em 2021 que Orbán teria colocado em sua mira 300 ativistas, jornalistas e opositores.

A suspeita de grupos de direitos humanos, como a Anistia Internacional, é de que a informação coletada servia também para criar campanhas de difamação. Dois casos ganharam ampla repercussão, por meio de um sistema sofisticado.

Um deles seria uma suposta fraude por parte da deputada Karalin Cseh, acusada de ter embolsado recursos da UE. O processo na Justiça jamais caminhou. Mas a jovem médica passou a ser bombardeada por insultos e até a divulgação de fotos sugerindo um comportamento inadequado para as famílias mais conservadoras do país.

Em uma outra história, o prefeito de Budapeste e que faz parte da oposição é acusado de estar tentando vender prédios e bens públicos, principalmente para empresários estrangeiros e fundações ligadas aos grupos de centro-esquerda na Alemanha.

Num dos casos, um adesivo fazendo referência de apoio ao islamismo foi grudado no carro de um opositor, e imediatamente a imprensa simpática ao líder populista estava no local para veicular a imagem da suposta aproximação entre o político e grupos de estrangeiros.

A imprensa aliada ao regime também faz parte da campanha. Num dos jornais, supostas gravações publicadas em trechos cortados revelariam como ONGs financiadas por George Soros estariam manipulando a imprensa internacional contra o governo. Horas depois, o próprio governo disseminou a notícia, enquanto Orbán recorreu a uma rádio de um dos aliados para denunciar as “mentiras” que a imprensa divulga sobre ele, em coordenação com ONGs estrangeiras.

Relatos ainda apresentados o Parlamento Europeu acusam o governo húngaro de tentar controlar rádios, televisões e jornais, foi um passo fundamental para a erosão da democracia.

Segundo os depoimentos levados ao Parlamento, um dos métodos usados é o de gravar jornalistas e membros de ONGs para, depois, usar frases e declarações de forma distorcida. Num dos casos, um ativista foi contatado por um doador interessado em fornecer dinheiro para apoiar a sociedade civil. Outras ofertas incluem “consultoria” com salários importantes, além de pedidos para palestras.

Mas, nas conversas, os relatos apontam que o que seria um primeiro contato logo se transformava em entrevistas gravadas secretamente, para arrancar frases das pessoas que seriam alvos de campanha de difamação.


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