Especial
Apostas esportivas comprometem orçamento familiar das classes D e E
Publicado em 16/08/2024 10:57 - Gilberto Costa (Agência Brasil), Ana Junqueira (Carta Capital), Estadão – Edição Semana On
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O gasto com apostas esportivas em plataformas online, as bets, está impactando o consumo de mercadorias e serviços, sobretudo das classes socioeconômicas de menor poder aquisitivo, e afetam a percepção da melhoria da economia brasileira, como o aumento da renda, do crescimento da ocupação e o controle inflacionário.
A avaliação é da empresa PwC Strategy& do Brasil Consultoria Empresarial Ltda., ligada à multinacional de auditoria e assessoria PricewaterhouseCoopers. De acordo com o economista e advogado Gerson Charchat, sócio e líder da Strategy& do Brasil, os gastos com apostas esportivas “já superam outros tipos de despesas discricionárias, como lazer, cultura e produtos pessoais, e até mesmo estão começando a impactar o orçamento destinado à alimentação.
Esse desvio de recursos para as apostas exerce uma pressão considerável sobre a demanda por produtos essenciais, afetando a dinâmica da economia de forma geral.”
As apostas esportivas em plataformas explodiram no Brasil após a Lei nº 13.756 ser aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Michel Temer no final de 2018. Daquele ano a 2023, os gastos com apostas aumentaram 419%.
Apostas esportivas são fonte de gastos
“Em 2018, as apostas representavam 0,27% do orçamento familiar da classe D e E; hoje, esse percentual saltou para 1,98%, quase quatro vezes mais do que há cinco anos. Por outro lado, os gastos com lazer e cultura diminuíram de 1,7% para 1,5% do orçamento, enquanto os gastos com alimentação se mantiveram estáveis”, conta Charchat em entrevista para a Agência Brasil.
Ele alerta que as apostas esportivas cresceram de forma expressiva e se tornaram uma fonte de gastos significativa, especialmente entre os jovens dos estratos sociais de menor poder aquisitivo. “O fenômeno pode gerar, inclusive, um aumento no endividamento entre a população de baixa renda, o que pode trazer impactos negativos para o crescimento econômico do país.”
A análise publicada da Strategy& do Brasil, baseada em dados secundários, assinala que a percepção da população de dificuldades financeiras cresceu cinco pontos percentuais entre 2022 e 2024. Hoje um quinto dos brasileiros dizem enfrentar dificuldades para pagar as suas contas todos os meses, ou não conseguem pagá-las na maioria das vezes.
Não há informação precisa sobre o número de empresas que administrem plataformas no Brasil e nem o volume de dinheiro arrecadado no negócio. Esses números só serão conhecidos após as bets obterem autorização do Ministério da Fazenda para exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa, e começarem a arrecadar tributos.
Os impactos e efeitos sobre a economia já haviam sido apontados pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). Segundo pesquisa de opinião feita para a entidade em maio, entre os que apostam, 64% reconhecem que utilizam parte da renda principal para tentar a sorte; 63% afirmam que tiveram parte da sua renda comprometida com as apostas online; e 23% deixou de comprar roupa, 19% itens de mercado, 14% produtos de higiene e beleza, 11% cuidados com saúde e medicações.
Para a economista Ione Amorim, consultora do programa de serviços financeiros do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), “o problema escalou” e além da dimensão econômica, há erros na regulamentação, efeitos sociais e na saúde mental da população não estimados.
“Hoje a gente já tem uma realidade de suicídio, de destruição de lares, de endividamento, de pessoas que já perderam o emprego porque já envolveram tudo que tinham. De doenças mentais extremamente graves por conta dessas dependências, que leva a outra, quer dizer: a pessoa se endividou, e se perdeu, vai do jogo para o álcool, do álcool para as drogas e para o suicídio”, descreve Ione Amorim que já deu palestras sobre os impactos das apostas online até mesmo nas Forças Armadas.
Na avaliação da economista, a situação social e a desinformação tornam o público mais pobre mais vulnerável a correr riscos em apostas.
“Nós temos uma população com baixo nível de educação financeira. As pessoas já têm dificuldade de lidar com a sua realidade, de gastar dentro dos seus ganhos.”
Para ela, a situação socioeconômica de algumas famílias leva ao endividamento para garantir a sobrevivência, e as apostas se tornam um risco atrativo para, ocasionalmente, obter recursos e quitar compromissos.
Mas, segundo Ione é preciso estar atento: “o ganho fácil vai levar a pessoa a um ambiente onde pode haver perdas significativas”, ressalta a economista que também assinala que as apostas são intermediadas por sistemas com algoritmos.
“A pessoa está jogando contra uma máquina que foi programada. Então, ela vai ganhar eventualmente, mas vai perder muito mais do que vai ganhar.”
PL 2234
Ione Amorim acrescenta que os efeitos econômicos, sociais e de saúde mental ocasionados pelas plataformas eletrônicas de apostas esportivas em plataformas online podem ser potencializados com a aprovação do Projeto de Lei nº 2.234/2022, em tramitação no Senado, que autoriza a exploração em todo o território nacional de cassinos, bingos, jogo do bicho e aposta em corridas de cavalo.
A aprovação do PL, assim como da lei que autorizou as apostas nas bets, é defendida pela possibilidade de que os negócios gerem emprego, renda e tributos que podem custear políticas sociais. No caso das plataformas eletrônicas, em funcionamento há cinco anos, nenhum real foi arrecadado.
O recolhimento começará após autorização para exploração comercial pelo Ministério da Fazenda. A outorga será concedida, depois de avaliação técnica e legal, mediante o pagamento de R$ 30 milhões à União. O prazo para obter a permissão é até o final do ano.
A contabilidade de arrecadação de quem defende a legalização dos jogos não deduz as perdas da tributação que estão ocorrendo em outros setores em meio ao crescimento de gastos com aposta e também não dimensiona o aumento de despesas do Estado com segurança pública e com atendimento à saúde mental.
Assim as corporações “bets” invadem Brasília
Nos bastidores do poder, um novo e controverso jogador tem dominado as atenções: as apostas online, popularmente conhecidas como bets. Protagonizando mais de 50 reuniões em menos de dois anos, essas empresas – quase todas sem sede no Brasil – têm sido visitas frequentes nos gabinetes do Executivo.
A agenda das bets não é exatamente novidade em Brasília. A cada troca de governo, a possível legalização dos jogos de azar ressurge como potencial fonte de arrecadação e solução para regular o que já acontece em qualquer esquina do País. Desde 2023, as apostas online despontaram e trouxeram novas preocupações.
Empresas como Sportingbet, Betano e Bet365 se tornaram onipresentes, patrocinando eventos e bombardeando as telas dos brasileiros – e, como era de se esperar, lotando as agendas do poder executivo.
Nos últimos 20 meses, as bets têm circulado nas agendas do poder tal como políticos em época de campanha. Foram 52 reuniões, e à medida que a regulamentação se aproximava, as reuniões se tornaram quase diárias.
Das 15 empresas de apostas que apareceram nas agendas do governo, apenas 3 têm sede no Brasil.
Essa disparidade é como um truque de mágica: Embora haja leis que tentam assentar as apostas ao território nacional – por exemplo, a Lei 13.756 de 2018, a Lei 14.790 de 2024 e uma recente portaria do Ministério da Fazenda, que exige que as empresas tenham sede no Brasil – a realidade é bem diferente.
A imensa maioria dessas empresas opera de forma remota. Esse paradoxo revela uma contradição preocupante: as empresas estão fisicamente fora do Brasil, mas elas conseguem exercer enorme influência sobre as decisões políticas e econômicas do País.
Essa presença invisível cria um ambiente de incerteza e falta de proteção para os consumidores brasileiros. A falta de integração dessas empresas ao sistema tributário nacional não só prejudica a arrecadação de impostos, mas também evidencia a fragilidade na fiscalização e na responsabilização.
A crescente influência das apostas online levou à criação da CPI das Apostas, que foi atrás de possíveis manipulações e irregularidades no setor. A CPI desvendou uma teia de possíveis fraudes nos resultados esportivos, mostrando a fragilidade da regulamentação. O impacto da CPI não se limitou apenas à investigação. A pressão gerada pela Comissão parece ter incentivado as empresas de apostas a se engajarem mais ativamente no diálogo com o Brasil.
Unidos, mas não muito
Mais de 15 empresas de Bet se reuniram com o governo para tratar do tema. Duas entidades grandes representam o setor, segundo as agendas oficiais, ANJL – Associação Nacional de Jogos Legais e o IBJR – Instituto Brasileiro de Jogos Responsáveis, mas, mesmo com essas entidades, as empresas fizeram questão de marcar território e se reunirem uma a uma com as autoridades. A campeã de reuniões foi a Bet365, sediada no Reino Unido.
Os desafios do setor são gigantescos, abrangendo desde tributação até endividamento. No entanto, as reuniões, segundo as agendas do governo, concentraram-se basicamente na Casa Civil e no Ministério da Fazenda, ignorando casas importantes como o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde.
A preferência por esses espaços mostra a preocupação do setor apenas com a regulamentação e a arrecadação, esquecendo todos os problemas que o vício em apostas pode trazer para a sociedade.
Bets nas altas esferas: quem recebe?
Mais de 20 agentes públicos participaram de reuniões com bets. O principal interlocutor do governo para as bets foi José Francisco Manssur, ex-assessor especial da Secretária Executiva do Ministério da Fazenda, que praticamente emprestou o gabinete para as empresas do setor.
Manssur liderou a elaboração das regras para a regulamentação das apostas por cota fixa no Brasil. Em fevereiro de 2024, Manssur foi convidado a se retirar do cargo, abrindo caminho para a negociação de posições no governo com o Centrão, grupo que demonstra grande interesse na pauta de jogos de azar.
O relatório recente da reforma tributária trouxe uma transformação significativa para as bets ao inclui-las no Imposto do Pecado. No entanto, comparado a outros setores, o imposto para o setor ainda é baixo. A regulação estipulou alíquota de 12%, e os apostadores deverão recolher 15% sobre os prêmios como Imposto de Renda. Além disso, o texto reafirma que as bets devem ter operação no Brasil e pagar outorga de R$ 30 milhões para operar por 5 anos.
Com a regulamentação ainda acontecendo, muitas reuniões ainda estão por vir antes que o mercado regulado de apostas comece a funcionar plenamente em 2025.
Com interesses em jogo e um mercado promissor à vista, a presença das bets nas agendas do governo só tende a aumentar. Esse cenário deve intensificar o debate sobre como equilibrar arrecadação, proteção ao consumidor e responsabilidade social. A grande questão é se o governo conseguirá marcar o gol da vitória mantendo o equilíbrio entre esses diferentes interesses.
Bets: ‘Se fossem uma droga, seriam o crack’, compara psicóloga
Fiódor Dostoiévski (1821-1881), renomado autor de “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”, levou apenas 26 dias para completar as 232 páginas de seu romance “O Jogador” (1866). Com uma dívida crescente causada por seu vício em roleta, o escritor russo dependia de um adiantamento financeiro, o que o levou a escrever sobre um tema que conhecia profundamente: o jogo patológico. O romance é ambientado na fictícia cidade de Roletemburgo, um reflexo da experiência pessoal do autor. “Por que o jogo é pior do que qualquer outro meio de ganhar dinheiro? De cem que jogam, apenas um ganha. Mas o que eu tenho a ver com isso?”, questiona o narrador em um dos trechos da obra. Diante da pressão dos credores, Dostoiévski chegou a fugir com a família para a Suíça.
Em São Paulo, um jogador de 49 anos, que prefere ser identificado como “Dostoiévski”, frequenta desde 2021 as reuniões dos Jogadores Anônimos. Em entrevista ao Estadão, ele relatou como, aos 30 anos, começou a jogar pôquer por dinheiro e, ao longo dos anos, mergulhou em diversas formas de apostas, como corridas de cavalo e, mais recentemente, apostas esportivas online. Sua situação financeira e emocional se deteriorou ao ponto de acumular dívidas e pensar em suicídio, algo que não consumou por falta de coragem. “Para apostar em cavalo, você precisa ir ao jóquei; para a roleta, encontrar um cassino. Mas, com as bets, você aposta de casa. É como ter um cassino na palma da mão”, reflete ele, que está em recuperação há seis meses.
O fácil acesso às apostas online impulsionou a procura por tratamento no Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI), que registrou um aumento de 175% nas inscrições, saltando de 58 em 2022 para 160 em 2023. A demanda entre jovens adultos (18 a 30 anos) cresceu ainda mais: 480%. “Sempre que o acesso a um tipo de jogo aumenta e ele se populariza, a procura por tratamento cresce”, explica o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do PRO-AMITI. Desde que as apostas online foram legalizadas em 2019, o perfil dos pacientes mudou: a idade média caiu de 47 para 30 anos, e os homens passaram a predominar. O foco das apostas também se transformou, com um aumento nas apostas esportivas e nos cassinos online.
O transtorno do jogo é diagnosticado com base em nove critérios estabelecidos pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Esses incluem tentar parar de jogar sem sucesso e colocar em risco a vida pessoal e profissional. “Se a bet fosse uma droga, seria o crack. Seu poder aditivo é maior que o da cocaína”, afirma a psicóloga Juliana Bizeto, especialista em dependências comportamentais. Ela explica que o transtorno do jogo compartilha características com outras formas de dependência, como a tolerância (a necessidade de apostas maiores para sentir o mesmo prazer) e os sintomas de abstinência física e psicológica quando o jogador não consegue apostar.
No livro “Dependências Não Químicas e Compulsões Modernas”, Bizeto descreve as três fases do vício em jogo: a fase da vitória, em que o jogador ganha com frequência e aumenta as apostas; a fase da perda, em que ele tenta recuperar o dinheiro perdido, muitas vezes apostando bens essenciais; e a fase do desespero, em que recorre a atos ilícitos para continuar jogando. No entanto, como aponta “Dostoiévski”, o vício é alimentado pela adrenalina: “Se perco, jogo para recuperar o dinheiro. Se ganho, jogo para ficar milionário. Mas o jogo nunca perde. Quem perde é o jogador.”
Crescimento das plataformas de apostas no Brasil
Hoje, o Brasil conta com cerca de 1 mil a 1,5 mil plataformas de apostas, de acordo com o Instituto Jogo Legal (IJL). Cada uma oferece diferentes modalidades de aposta, que vão além do futebol, abrangendo esportes como basquete, tênis e vôlei. Outro destaque é o crescimento dos slots, como o popular “Jogo do Tigrinho”. O psicólogo Rodrigo Nejm, especialista em educação digital, alerta que até mesmo crianças e adolescentes têm buscado ajuda nas escolas, relatando perda de concentração e dificuldade para dormir devido ao envolvimento com apostas. “Quanto mais cedo se começa a jogar, maior o risco de dependência”, adverte o psiquiatra Daniel Spritzer, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT).
Duas pesquisas recentes ajudam a delinear o perfil dos apostadores no Brasil. Segundo a ANBIMA, 14% da população já utilizou aplicativos de apostas, com 40% enxergando isso como uma forma rápida de ganhar dinheiro. Outra pesquisa, realizada pelo Datafolha, revelou que 15% dos brasileiros já fizeram apostas online, mas 55% da população se opõe a elas. Para a psicóloga Maria Paula Magalhães, a regulamentação das bets valoriza a economia, mas negligencia os riscos à saúde pública. Ela defende a adoção de medidas de redução de danos, como a proibição de publicidade próxima a escolas e a limitação de mensagens automáticas em sites de apostas.
O tratamento para o vício em apostas é multidisciplinar, envolvendo psicólogos, psiquiatras e neurologistas. Novas técnicas, como o neurofeedback e a estimulação magnética transcraniana, estão sendo usadas para ajudar o cérebro a controlar os impulsos. A terapia familiar também é recomendada, além da participação em grupos de apoio como o Jogadores Anônimos (JA), que atua no Brasil desde 1993. “Hoje, só jogo Super Trunfo sobre Cães de Raça com minha filha”, brinca “Dostoiévski”. “Não posso apostar nem na Mega-Sena. Não quero despertar o monstro dentro de mim.”
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