10/09/2024 - Edição 550

Especial

A FOME PERSISTE

Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014, mas voltou em 2019

Publicado em 02/08/2024 11:48 - Fundação Perseu Abramo, Rede Brasil Atual, Veja – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) No último dia 24 mostra uma redução significativa na insegurança alimentar no Brasil. A população brasileira em situação de insegurança alimentar caiu de 32,8% no período de 2020 a 2022 para 18,4% entre 2021 e 2023, uma redução de quase 44%.

A insegurança alimentar moderada ocorre quando há incerteza na obtenção de alimentos, levando à redução da qualidade e quantidade de comida. A insegurança alimentar grave é ainda mais crítica, caracterizada pela falta de alimentos por períodos prolongados, resultando em fome.

Enquanto o mundo luta contra o aumento da fome, a América Latina e o Caribe destacam-se como a única região a registrar uma queda nos índices de fome, graças às melhorias no Brasil e países vizinhos. A fome na região recuou de 11% para 8,7% entre os períodos 2020-2022 e 2021-2023.

Os dados são do relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), publicado em conjunto por cinco agências especializadas das Nações Unidas. Segundo o estudo, o planeta retrocedeu 15 anos no combate à fome e à desnutrição – ou seja, voltou em 2023 ao patamar de 2008 nos indicadores. O Brasil é exceção na redução da insegurança alimentar.

No cenário global, a situação é alarmante. O mundo está distante de alcançar a meta da ONU de erradicar a fome até 2030. Em 2023, cerca de 733,4 milhões de pessoas sofreram fome, retrocedendo aos níveis de 2008. Na África, um em cada cinco cidadãos enfrentou a fome. Considerando a insegurança alimentar moderada, 2,33 bilhões de pessoas foram afetadas mundialmente.

O Brasil ainda figura no “Mapa da Fome” – de onde tinha saído em 2014, e para onde voltou em 2019, com uma insegurança alimentar que afeta mais de 2,5% da população. Este índice inclui todos os países com insegurança alimentar acima desse valor. Em números, a subnutrição caiu de 4,7% para 3,9%, significando uma redução de 10,1 milhões para 8,4 milhões de brasileiros afetados. No entanto, a desnutrição aguda entre crianças de até 5 anos permaneceu em cerca de 500 mil crianças nos dois períodos analisados.

No mesmo dia em que o Mapa da Fome foi divulgado, o G20 aprovou no Rio de Janeiro a prévia do que será o documento da Aliança Global contra a Fome, uma proposta da presidência brasileira do grupo para a garantia da segurança alimentar no mundo. Entre as medidas, a taxação de fortunas é defendida como uma forma de financiar as ações de enfrentamento à fome.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a tributação e alertou que a fome não é um fenômeno natural. “Os super ricos pagam, proporcionalmente, muito menos impostos do que a classe trabalhadora. Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem investido no tema da cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global, fortalecendo as iniciativas existentes e incluindo os bilionários”, disse

“A fome não resulta de fatores externos, ela decorre sobretudo de escolhas políticas. Hoje o mundo produz alimento mais do que suficiente para erradicar [a fome], o que falta é criar condições de acesso aos alimentos”, declarou o presidente.

Os dados da fome Brasil são um pouco mais animadores. De acordo com o Governo Federal, de 2022 a 2023 houve uma queda de 85% no número de pessoas em insegurança alimentar severa no país, passando de 17 milhões para 2 milhões de pessoas nesta situação. Já segundo o relatório das Nações Unidas que avalia o triênio 2021-2023, a queda na desnutrição foi de 33% no Brasil.

Pedro Vasconcelos, assessor da Fian Brasil, lista uma série de políticas retomadas pelo atual governo, após serem extintas pela gestão anterior.

“A gente tem um programa de aquisição de alimentos remodelados, a gente tem um programa de cozinhas solidárias, um decreto sobre segurança alimentar e nutricional nas cidades, um diálogo sobre uma política nacional de abastecimento. Então uma série de iniciativas que vão no sentido de recuperar uma trajetória virtuosa que o Brasil já teve no sentido da garantia do direito uma alimentação, ainda que em outro contexto”, destaca.

Para Vasconcelos, embora haja um reconhecido esforço do governo para a superação da fome no país, milhões de brasileiros ainda têm dificuldade de acesso aos alimentos. E o governo tem o desafio de corrigir rotas e garantir o bom funcionamento das políticas de segurança alimentar.

“Nós temos, por exemplo, um discurso, uma perspectiva do governo em prol da alimentação saudável, mas a gente tem pouquíssimo orçamento ou dedicação em relação à promoção de uma alimentação realmente adequada. O tema dos agrotóxicos, por exemplo, é um tema largamente ignorado no governo. O tema de estruturação do Sistema de Segurança Alimentar Nutricional, que é, de fato, quem organiza isso o acesso das pessoas das políticas, organiza as formas de você exigir o seu direito de alimentação, ele também precisa ser melhor estruturado”, defende

Outro desafio para o Brasil alcançar o objetivo número dois da Agenda 2030 da ONU e acabar com a fome no Brasil, é o agravamento dos efeitos das mudanças climáticas. É o que explica a presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Elisabetta Recine.

“Não dá para a gente pensar em atuar sobre a fome, atuar sobre a pobreza, se a gente não transversalizar isso com ações muito comprometidas e muito adequadas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Quer dizer, os eventos climáticos extremos são um fator de desestabilização profunda, a gente tem exemplos o tempo todo sobre isso. Então há que trazer essa ação, esse olhar, essa transversalidade da questão climática para
todas as ações”, afirmou.

Além de recursos, as organizações defendem que haja uma governança compartilhada com a sociedade civil para a busca de ações que visem a superação da fome.

“Não adianta você ter uma Aliança Global de combate à fome, com uma taxação dos mais ricos avançando, se você não tem esse país investindo nas estruturas consolidadas pelos Estados de combate à fome, para, quem sabe, mover pelo menos parte desses sistemas alimentares num sentido maior de garantia de direitos e não de acumulação desigual e combinada”, ponderou.

Bolsa Família completa 20 anos com alcance recorde, mas drama da fome persiste

Trinta dias após assumir pela primeira vez a cadeira de presidente da República, no início de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva lançou aquela que pretendia transformar em uma das marcas de seu governo: o Fome Zero, iniciativa que, como o nome indicava, pretendia acabar com o flagelo que atingia à época 14 milhões de brasileiros. A ação serviu de base para o lançamento no ano seguinte de um programa ampliado, a que deu o nome de Bolsa Família. Vinte anos depois, o modelo de transferência de renda, considerado o maior do mundo em número de beneficiados, atingiu parcialmente o objetivo anunciado pelo petista em sua estreia no cargo.

O relatório divulgado pela ONU mostra que 8,4 milhões de brasileiros ainda passam fome no país, o mesmo número que Lula havia deixado ao terminar o segundo mandato presidencial, em 2010.

O flagelo social persiste a despeito do Bolsa Família ao longo dos anos. O programa atinge hoje 20,8 milhões de famílias, mais que o dobro de seu alcance em 2004. Além disso, o valor médio pago a cada beneficiado foi multiplicado por dez no período (de 66 reais para 682 reais). De volta ao poder para um terceiro mandato, Lula reservou no Orçamento deste ano 168 bilhões de reais ao programa, um recorde, cujo valor se aproxima do destinado ao Ministério da Educação

Embora não tenha conseguido o objetivo inicial que o inspirou, há muitos méritos no Bolsa Família. Entre os principais avanços está a redução da miséria — só entre 2019 e 2023, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza (renda per capita mensal de até 218 reais) caiu de 15,4 milhões para 9,5 milhões, segundo estudo da FGV/Ibre. Outro trabalho, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), mostra que, com o programa, o percentual de crianças na primeira infância que vivem em famílias extremamente pobres cai de 91,7% para 6,7%. Há ainda estudos que atestam impactos positivos na frequência escolar — especialmente de meninas —, queda da mortalidade infantil, redução das desigualdades regionais e um efeito multiplicador para o PIB.

O sucesso do modelo de transferência de renda fez dele uma unanimidade política. Iniciada a partir do Bolsa Escola e do Comunidade Solidária, ambos do governo FHC, a destinação de dinheiro para famílias pobres foi ampliada sob Lula. O Bolsa Família ajudou a girar a economia do país e fez com que Lula terminasse seus dois primeiros mandatos com quase 90% de aprovação. Sabendo disso, Bolsonaro, que rezava pela cartilha da menor participação do Estado na vida das pessoas, não acabou com o programa — apenas mudou o nome, para não dar tração à marca associada aos governos petistas. Veio a pandemia e Bolsonaro, como não podia deixar de fazer, vitaminou o negócio, que teve um gigantesco salto orçamentário. Em 2020, no auge da crise sanitária, o desembolso foi a 360 bilhões de reais.

Falhas

Os méritos, no entanto, não podem esconder as graves falhas. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União apontou que 4,7 milhões de famílias receberam dinheiro indevidamente do Bolsa Família em 2023 e deram um prejuízo de 34,2 bilhões de reais. Cerca de 40% possuíam renda maior que a declarada no cadastro. “Tinha gente com renda mensal de dez salários mínimos recebendo”, admite Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome em entrevista a VEJA (leia abaixo). Enquanto isso, 700 000 famílias estão na fila, à espera de um lugar no programa, mas fica difícil para o governo incluir os novos necessitados, uma vez que tem estourado o teto mensal de gastos de 14 bilhões de reais. Também é preocupante que uma das principais condicionalidades previstas, a da frequência escolar, tenha se transformado em um dos gargalos: um em cada quatro beneficiários em idade escolar não frequenta a sala de aula.

O problema mais grave, no entanto, talvez seja a falta de perspectiva de longo prazo. Um estudo do Instituto de Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS) concluiu que 20,4% dos dependentes de 7 a 16 anos de idade que estavam no Bolsa Família em 2005 (2,3 milhões de pessoas) ainda estão no programa — ou seja, em vinte anos, não encontraram a chamada porta de saída. “Não tem uma estratégia para que um dia o Brasil não precise mais de Bolsa Família. Impregnou-se no país a ideia de que esse é um programa permanente”, avalia Cristovam Buarque, criador do Bolsa Escola e ex-ministro da Educação no primeiro mandato de Lula. “O que falta é avançar da conjuntura para a estrutura, da solução circunstancial para uma solução estrutural”, acrescenta. Para ele, a solução gira em torno do acesso à educação de qualidade.

Outro ponto importante para abrir a porta de saída é criar um ambiente mais desenvolvido para o país. “É preciso ter boas condições macroeconômicas, uma inflação moderada, um governo que seja responsável fiscalmente e que trabalhe muito a geração de empregos através de atração de investimentos”, diz Écio Costa, professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco. “As políticas públicas precisam ser mais bem trabalhadas e aprimoradas para acelerar esse ritmo de redução da pobreza”, completa. Um exemplo de como as condições estruturais influenciam no combate à fome é a inflação. “Desde a pandemia, o preço dos alimentos aumentou bem mais do que a média geral. E isso é um fator importante na questão da fome no país”, afirma Daniel Duque, pesquisador da área de economia aplicada da FGV/Ibre.

Os programas de transferência de renda não são uma exclusividade brasileira. Com muitas variações, eles existem até em países desenvolvidos, como França e Canadá. Um exemplo que pode servir ao Brasil é o mexicano, que nasceu como Oportunidades, em 2001, três anos antes do Bolsa Família. A partir de 2014, passou a se chamar Prospera e incluiu o acesso a linhas de microcrédito, a cursos profissionalizantes e a vagas no ensino superior. É a primeira política pública dessa magnitude no mundo — e os números mostram que tem colhido bons frutos. O relatório da ONU diz que no México há 3,9 milhões em situação de fome, ou 3,1% da população, 1 ponto percentual a menos que em 2006. O número ainda é dramático, mas está em queda e é menor que o do Brasil.

Em outros países, se investe muito em programas de renda mínima. Com essa modalidade, é possível garantir que cada cidadão tenha ao menos um piso de renda digno, que permita a ele não enfrentar situações de fome. A Finlândia, paradigma em índices de desenvolvimento humano, experimentou um programa de renda básica de 2017 a 2019, pagando 560 euros a 2 000 desempregados. Ao final da experiência, boa parte permaneceu desempregada e relatou mais benefícios à saúde física e mental do que à vida financeira. O salário médio lá é de 3 500 euros. “Esses países têm um custo de vida muito elevado, então, mesmo que as pessoas tenham renda alta, isso não significa qualidade de vida”, explica Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica.

A dificuldade brasileira para acabar com a fome não tem a ver com dinheiro. Os países ricos destinam em média 1,5% do PIB para programas sociais, bem mais que os 0,5% reservado ao Bolsa Família. Mas o Brasil tem uma miríade de programas sociais, como o Benefício de Prestação Continuada, que destinará 111 bilhões de reais neste ano a idosos com renda de até um quarto do salário mínimo e a pessoas com deficiência que não têm Previdência, além do Seguro Defeso para pescadores e do Auxílio Gás, entre outros. “Quando se somam todos esses apoios, temos uma rede que soma 350 bilhões de reais por ano. É uma rede robusta”, afirma Wellington Dias. Essa estrutura toda, além de outros investimentos sociais, elevam os gastos totais a 2% do PIB.

O governo diz estar atento à necessidade de criar condições para que as pessoas saiam da situação de emergência e possam deixar a rede de socorro do Bolsa Família. Wel­ling­ton Dias cita programas que a gestão recuperou ou criou e que funcionam no mesmo universo de promoção humana, como Farmácia Popular, Minha Casa, Minha Vida, Pé de Meia e ações de requalificação profissional e de aquisição de alimentos de pequenos produtores. “Não chamamos de ‘porta de saída’, mas de inclusão socioeconômica”, diz. A gestão voltou também a priorizar o combate à miséria ao lançar a iniciativa Brasil sem Fome, cujo nome remete ao Fome Zero, para articular mais de oitenta programas e ações intersetoriais em 24 ministérios, que teriam sido desvirtuados, esvaziados ou interrompidos em gestões anteriores. A ideia é aproveitar a barafunda de ações sociais para, de forma integrada, atingir o objetivo anunciado no já longínquo 2003, quando Lula lançou o Fome Zero em Guaribas (PI) — vinte anos depois, a cidade continua sendo uma das mais pobres do país. Tanto tempo e tanto dinheiro depois, é inadmissível que ainda haja no Brasil cidadãos que não têm o que comer.

“Sairemos do mapa da fome em 2026”

Wellington Dias, titular da pasta de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, diz que o governo foca em combater fraudes, melhorar o cadastro e identificar pessoas que estão fora do Bolsa Família e que vai erradicar a desnutrição até o fim do atual mandato.

A ONU aponta que no triênio 2021-2023 mais de 8 milhões de pessoas passaram fome no Brasil — 3,9% da população. Como mudar esse quadro?

Quando assumimos, a taxa em 2022 era de 4,2%. Em 2023 já tivemos uma queda muito forte, mas ainda temos 8,4 milhões nessa situação. Trabalhamos na busca ativa de necessitados, cruzamos dados com os sistemas de saúde e da rede escolar e criamos a escala brasileira da insegurança alimentar, com dados do IBGE e do Ipea. Com isso, trouxemos para a rede de proteção mais 14 milhões e deveremos fechar o ano com nova queda.

O TCU estima que no ano passado 34 bilhões de reais foram pagos a quem não deveria receber. O que foi feito sobre isso?

Identificamos 4,7 milhões de benefícios fraudulentos. Tinha gente com renda mensal de dez salários mínimos. Havia famílias com três benefícios. Investimos na eficiência do cadastro, cruzando dados de emprego e Previdência. Em 2019, o governo Bolsonaro acabou com a rede federal de fiscalização e controle do Bolsa Família. Trouxemos de volta. Firmamos parcerias com CGU, AGU, Ministério da Justiça, Tribunais de Contas e fizemos as mudanças sugeridas pelo TCU. Na atualização do cadastro, os dados são confirmados com visitas presenciais.

Como criar condições para que os beneficiários deixem de precisar do programa?

Trabalhamos em parceria com o Sebrae, universidades, institutos federais, estados e municípios para garantir acesso ao emprego. Em 2023, 9 milhões de inscritos no Cadastro Único conseguiram carteira assinada. Nesse período, 1,6 milhão de empregos foram criados, mais de 70% voltado para esse público. Investimos na qualificação levando em conta as demandas do mercado. Em dezembro, tínhamos 23,6 milhões de empreendedores formais e informais. O governo também criou o Acredita, programa que oferece apoio com fundo garantidor e assistência técnica.

Lula diz que o combate à fome é prioridade. Que quadro teremos ao fim da gestão?

Em 2023, reduzimos a extrema pobreza a 8,3%, menor patamar desde 1976. Tivemos crescimento de 11,5% da massa salarial. O compromisso de outros países é alcançar em 2030 a meta da ONU de zerar a desnutrição. Lula quer anunciar a saída do Mapa da Fome em 2026.


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