Ecologia
As 3 obras do agro que desmatam o Pantanal e a Amazônia
Publicado em 28/09/2022 2:23 - Daniel Camargos / Fotos e vídeo: Fernando Martinho - Repórter Brasil
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Uma estrada de ferro no Pará, a pavimentação de uma BR no Amazonas e a construção de uma rodovia no Mato Grosso do Sul. Três grandes obras consideradas prioritárias para o agronegócio – e que ganharam impulso no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) – ainda nem saíram do papel, mas já contribuem para a destruição da Amazônia e do Pantanal.
Uma equipe da Repórter Brasil percorreu mais de 5.000 quilômetros pelas regiões afetadas por estes três empreendimentos e viu de perto como essas obras alteram a ocupação do solo e deixam uma rota de destruição, com grilagem de terras públicas, desmatamento ilegal e queimadas criminosas.
A devastação começa antes mesmo das obras, pois esses projetos costumam valorizar o preço da terra, ao facilitar o acesso a locais distantes. “Muitas pessoas correm para essas regiões, e começa um processo de grilagem, invasão de terras e, claro, desmatamento”, explica Mariel Nakano, economista e assessora do Instituto Socioambiental.
A reportagem partiu de Rondônia, cruzou o Amazonas e o Pará e avançou até o sul do Mato Grosso para ver os impactos da pavimentação da BR-319 – que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM) –, a construção da ferrovia Ferrogrão – que vai unir o porto de Miritituba (PA) ao norte de Mato Grosso – e da ampliação da rodovia Transpantaneira – que corta a planície alagada mato-grossense ao Mato Grosso do Sul.
Não é exagero chamar esse traçado, integrado também pelas rodovias federais Transamazônica e BR-163, de “rota da destruição”. Por este caminho se encontram 7 das 10 cidades mais queimadas e desmatadas da Amazônia Legal nos últimos cinco anos: Porto Velho (RO), Lábrea (AM), Nova Aripuanã (AM), Apuí (AM), Itaituba (PA), Altamira (PA) e Novo Progresso (PA), segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Na Amazônia, o poder de impacto das grandes obras é maior do que em outras regiões, em razão do histórico de desordem fundiária e conflitos por terra. “Há muitas áreas na Amazônia que não são destinadas [fora de unidades de conservação e sem uso formal] e acabam sendo invadidas”, diz Nakano.
A BR- 319 e o novo arco do desmatamento
Uma estrada clandestina de quase 100 km avança pela Floresta Nacional de Balata Tufari e pela Terra Indígena Juma, no sul do Amazonas. Trata-se de um ramal entre o distrito de Belo Monte, em Tapauá, nas margens do rio Purus, até a BR-319, em trecho ainda não asfaltado. “Uma via ilegal, sem vistoria alguma, sem licenciamento e sem consultar quem vai ser impactado, que são as comunidades tradicionais e indígenas”, critica Quezia Higashikawa, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O entorno da BR que liga as capitais de Rondônia e Amazonas é um dos principais exemplos de como a devastação ambiental chega antes das obras de infraestrutura. As promessas do governo Bolsonaro de pavimentar a rodovia federal fizeram explodir a abertura de estradas vicinais ilegais. Foram 1.593 km nos últimos cinco anos, ou quase duas vezes o tamanho da rodovia, segundo o Observatório BR-319.
“São ramais que dão acesso às áreas mais remotas das florestas. Pegam o eixo da rodovia e adentram ao centro da floresta. No caminho eles tiram tudo que tem.”, afirma a pesquisadora Dionéia Ferreira, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas.
Com a promessa de reconstrução da via, cuja licença prévia foi emitida em julho pelo Ibama, a expectativa dos moradores é que uma área de 200 hectares comprada há três anos por R$ 60 mil passe a valer mais de R$ 1 milhão. “Aqui é a terra mais barata do Brasil”, diz Claudinei Pereira, que se mudou para a região para explorar madeira e agora sonha com novos lucros.
Enquanto os desbravadores do dinheiro rápido estão atiçados, o medo impera entre aqueles que lutam pela preservação da floresta. Etnias como Apurinã, Kambeba, Mura e Juma já sofrem as consequências dos ramais clandestinos. A BR ameaça ao todo 69 terras indígenas e 41 Unidades de Conservação, segundo o observatório.
A Ferrogrão e a soja na floresta
Entre Sinop (MT) e Itaituba (PA), o projeto da Ferrogrão – ferrovia de 933 quilômetros planejada para o transporte de 52 milhões de toneladas de grãos por ano – afeta pequenos agricultores, ribeirinhos que vivem nas margens do rio Tapajós e os povos indígenas Munduruku e Kayapó.
O projeto prevê uma nova rota de exportação para a soja e milho plantados no Mato Grosso e no Pará, mas está travado por conta de decisões judiciais – em uma delas, a Justiça Federal obrigou a União a escutar as comunidades indígenas afetadas. Apesar de as obras ainda não terem começado, os danos ambientais já são sentidos.
Em 2017, o Congresso Nacional converteu em lei uma Medida Provisória enviada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) que reduziu os limites do Parque Nacional do Jamanxim para abrir espaço para a ferrovia. Embora a lei esteja suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, a medida atraiu grileiros ao longo do traçado da ferrovia, “na expectativa de que outras unidades de conservação e terras indígenas sejam também reduzidas por causa da obra”, diz Nakano, do ISA.
“Não é apenas o que vai acontecer depois da Ferrogrão. Nós já estamos sentindo o impacto”, afirma Doto Takak-Ire, liderança Kayapó e relações públicas do Instituto Kabu. Ele vive em Novo Progresso, cidade localizada no traçado da Ferrogrão, às margens da BR-163, e que foi o epicentro do Dia do Fogo em 2019, quando fazendeiros e empresários do sudoeste do Pará se articularam para queimar a floresta amazônica.
A ferrovia prevê cortar também parte do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Terra Nossa, que faz divisa com a Terra Indígena Baú, do povo Kayapó. Foi lá que a Repórter Brasil revelou que uma área de agricultura familiar foi queimada no Dia do Fogo para abrigar campos de soja.
“Diz que vai passar [a Ferrogrão aqui], mas eles não falam nada com a gente, não chamam para uma audiência pública para pelo menos explicar”, reclama a assentada Maria Márcia Elpídia de Melo, que lidera os camponeses contra o avanço dos sojeiros. Pela resistência, ela paga um preço alto e é vítima de ameaças e atendados.
Fogo abre caminho para estrada verde no Pantanal
Os incêndios que devastaram o Pantanal em 2020 e 2021 esquentaram um plano antigo de construir uma estrada ligando Poconé, no Mato Grosso, a Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Trata-se da rodovia Transpantaneira, também chamada de Estrada Verde, que vai cortar os terrenos alagados desse bioma único da América do Sul com a justificativa de beneficiar o turismo e o agronegócio, principalmente os criadores de gado.
Poconé e Corumbá estão a 350 km de distância em linha reta, mas as estradas atuais percorrem um caminho de mais de 1.100 km entre uma e outra. Do lado mato-grossense da Transpantaneira, são 147 km entre Poconé e Porto Jofre. A estrada é elevada e há 124 pontes para permitir o trânsito no período das cheias, formando um extenso dique até terminar nas margens do rio São Lourenço. Neste trecho, várias pontes de madeira já foram substituídas por concreto e a previsão da prefeitura de Poconé é que até o final deste ano 98 sejam trocadas. Do outro lado da margem, no Mato Grosso do Sul, os outros 277 quilômetros até Corumbá praticamente inexistem.
Em 2020 e 2021, a região teve os maiores incêndios de toda a história do Pantanal, atingindo 5,8 milhões de hectares, ou 30% do bioma, de acordo com dados coletados pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da UFRJ.
O vereador de Poconé Fábio Oliveira (União Brasil), que apoia o projeto, admite que os incêndios dos anos anteriores tiveram como objetivo a abertura de novos pastos para criação de gado. “Com certeza. Infelizmente são coisas que não se pode dizer abertamente se não é castigado, mas 90% é abertura de pastagem”.
Além de beneficiar o turismo e o transporte do gado, construir a estrada no pantanal vai beneficiar também plantações de soja no bioma. A produção hoje é pequena, mas há “potencial de crescimento vertiginoso nos próximos anos”, alerta o Instituto SOS Pantanal.
Ao percorrer a transpantaneira, no lado mato-grossense do que pode se tornar a Estrada Verde, o que a reportagem viu mais cinzas do que verde. A vegetação completamente queimada, os courixos (como são chamados os brejos) secos e muitos animais mortos pelo fogo, principalmente jacarés.
Dias depois do fogo, o cheiro de queimado ainda predominava no pouco que restou da plantação de banana de Nilo Manoel da Costa, na comunidade tradicional de São Manoel do Pari, em Nossa Senhora do Livramento (MT). “Lutamos contra o fogo por três dias, mas a roça foi embora”, lamenta o camponês.
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