18/05/2024 - Edição 540

Ecologia

Bancos miram frigoríficos, mas ignoram fazendas em ação contra desmatamento

Amazônia é 'queimada' pelo WhatsApp e vendida no Facebook no Sul do Pará

Publicado em 05/06/2023 10:05 - Leonardo Sakamoto (UOL), Daniel Camargos, Karine Pfenniger e Mariana Abreu (Repórter Brasil e Forbidden Stories) – Edição Semana On

Divulgação Op Verde Brasil/17

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Bancos brasileiros prometeram checar se frigoríficos compraram gado de áreas desmatadas ou que usaram trabalho escravo na Amazônia Legal antes de conceder empréstimos. Mas a nova política não envolveu fazendas, carvoarias e madeireiras que praticaram os mesmos crimes.

O protocolo aprovado pelo conselho de autorregulação da Febraban (Federação Brasileira dos Bancos) vai ser seguido por 21 bancos. Prevê que frigoríficos sejam demandados a implementar um sistema de rastreabilidade para monitorar a sua cadeia produtiva.

Se isso aumentará a capacidade dos processadores de carne de monitorar os fornecedores indiretos de gado que, não raro, atuam como laranjas de quem comete crimes, hoje o principal problema dos frigoríficos, só o tempo vai dizer.

A Febraban, contudo, não incluiu nessa primeira leva regras mais rígidas para agentes econômicos que estão mais próximos do desmatamento ilegal e do trabalho escravo. A justificativa de que a pressão será indireta sobre os produtores não é suficiente, uma vez que há empresários que, por exemplo, exportam gado vivo sem passar pela indústria.

Há fazendas, carvoarias e madeireiras que poderiam ser pressionadas pelo sistema bancário tal como os frigoríficos a monitorar suas cadeias de valor. Vale ressaltar que existe um intenso comércio de gado realizado entre grandes pecuaristas que recebem empréstimos bancários.

O pecuarista Rogério de Paula Leite, multado em R$ 2,5 milhões pelo Ibama no no Pará, contratou em 2016 um financiamento de quase R$ 1 milhão do Banco do Brasil, utilizando uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Os bancos não revelam a fazenda à qual se destinava o recurso, mas o BNDES informa que ela fica em São Félix do Xingu (PA). Uma reportagem publicada pela Repórter Brasil mostrou que Leite só possuía uma propriedade registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) nessa localidade. Lá havia um embargo ambiental desde 2017, aplicado por desmatamento ilegal de 360 hectares.

Segundo o próprio Banco do Brasil, suas “operações de crédito contam com cláusulas que permitem a decretação do vencimento antecipado e a suspensão imediata dos desembolsos em caso de ocorrência de infringências socioambientais”. No entanto, a liquidação do financiamento ocorreu apenas em maio de 2022.

Se os valores foram destinados à propriedade embargada, a dívida deveria ter sido cobrada imediatamente após a detecção do embargo, conforme determina o Manual de Crédito Rural do Banco Central para operações na Amazônia. O BB não quis comentar o caso específico de Leite “em respeito ao sigilo bancário, comercial e empresarial”.

Já o BNDES afirma que “não recebeu qualquer notificação de irregularidades do agente financeiro credenciado [o BB], responsável pela análise, aprovação e acompanhamento do financiamento”.

A Repórter Brasil entrou em contato com Rogério de Paula Leite e com seus advogados durante a investigação, mas não recebeu retorno sobre o assunto.

Outro caso representativo da importância de aplicar o protocolo a toda a cadeia e também apurado pela Repórter Brasil é o do pecuarista Edvair José Manzan. Ele recebeu três empréstimos com recursos do BNDES, entre abril de 2019 e agosto de 2022, para a compra de maquinário agrícola no município de Peixe (TO). As operações, totalizando mais de R$ 1,4 milhão, foram intermediadas pelo Banco CNH Industrial.

Desde novembro de 2018, um embargo do Ibama por desmatamento ilegal recai sobre as únicas fazendas registradas em seu nome no município. Mas os problemas não param por aí. Ele teve outra propriedade embargada por desmate ilegal em junho de 2018, em Talismã (TO). Meses depois, em outubro de 2018, foi a vez do De Lage Landen – subsidiária nacional do banco holandês Rabobank – conceder R$ 96 mil ao produtor neste município, também intermediando recursos públicos do BNDES.

Ao contrário do que ocorre na Amazônia, onde regras do Banco Central condicionam a concessão e o monitoramento de empréstimos à “inexistência de embargos vigentes” por desmatamento nas áreas e estar fora da “lista suja” do trabalho escravo, não existem freios legais para repasses no Cerrado, onde Manzan mantém suas fazendas.

Em maio de 2022, ele foi mais uma vez multado pelo Ibama por criar bois na área embargada.

Na época da investigação, a Repórter Brasil tentou contato com o pecuarista por meio de seu advogado e empresa, mas não houve resposta. O Banco CNH Industrial afirmou que “as análises realizadas à época constatavam que as normas legais e regulamentares estavam atendidas”. Já o Lage Landen não respondeu os questionamentos da reportagem e o BNDES reforçou, em nota, que as instituições financeiras parceiras são as responsáveis pela análise e acompanhamento do uso do recurso até o fim do contrato.

Grandes frigoríficos são atores econômicos com capacidade de influenciar a forma como se dará a produção de carne na Amazônia, e, portanto o respeito ao meio ambiente, aos trabalhadores e comunidades tradicionais, mas não são os únicos. E nem a Amazônia é o único bioma em risco.

Parte da produção de gado é exportada viva através de portos como o de Belém com destino ao Oriente Médio e à África, por exemplo, sem passar por processadores brasileiros. Isso sem contar que à medida em que grandes frigoríficos aumentam seus controles, parte da produção ilegal procura empresas menores e irregulares para o abate.

Amazônia é ‘queimada’ pelo WhatsApp e vendida no Facebook no Sul do Pará

Um dos principais suspeitos por organizar o Dia do Fogo – quando fazendeiros do Pará combinaram por WhatsApp e incendiaram a Amazônia em 2019 – estaria envolvido em ao menos quatro tentativas de grilar (roubar) áreas protegidas da floresta queimadas na ocasião. É o que aponta investigação da Polícia Federal, obtida com exclusividade pelo “Projeto Bruno e Dom” – consórcio de jornalistas formado para investigar a pilhagem da Amazônia, e integrado pela Repórter Brasil, parceira do UOL.

Um dos terrenos queimados em 2019 foi posteriormente anunciado pelo Facebook. A revelação foi feita pela Repórter Brasil em 2020, em parceria com o jornal inglês The Guardian e o jornalista Dom Phillips. Há um ano, Phillips foi assassinado em uma emboscada no Vale do Javari, no Amazonas, durante investigação sobre a exploração da floresta. Para dar sequência ao trabalho dele, mais de 50 jornalistas de 10 países e 16 veículos de comunicação se uniram em um consórcio organizado pelo Forbidden Stories.

Seguindo o rastro de Phillips, o consórcio identificou 52 anúncios suspeitos publicados semanalmente no Facebook com a oferta de terras griladas. A rede social permite a divulgação das ofertas e, assim, tornou-se ferramenta fundamental no esquema de grilagem de terras na Amazônia.

O Dia do Fogo remete à articulação de fazendeiros e empresários do Pará para queimarem ao mesmo tempo áreas de pasto e floresta, ainda no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL). Nos dias 10 e 11 de agosto de 2019, os sistemas de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) detectaram 1.457 focos de incêndio no estado, 2.000% a mais em relação ao ano anterior.

Quase quatro anos depois e ainda sem punição aos envolvidos, o avanço das investigações leva ao presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso (PA), Agamenon Menezes. Apesar de investigado, ele continua atuando para transformar áreas protegidas, como a Floresta Nacional do Jamanxim e a Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, em fazendas para engordar bois ou plantar soja.

O esquema de grilagem tenta “legalizar” as áreas ao registrá-las no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – sistema do governo federal no qual donos de terras informam a localização de suas áreas. O simples registro não equivale ao título de propriedade, mas é suficiente para o grileiro obter um documento oficial e, assim, tentar reivindicar a posse. Por ser autodeclaratório e pela falta de controles administrativos, o cadastro facilita a grilagem.

Segundo a investigação da Polícia Federal, quatro fazendas localizadas dentro de áreas de preservação queimadas no Dia do Fogo foram registradas no CAR, por intermédio do sindicato rural de Novo Progresso, após a onda de incêndios. Quem assina os registros como responsável técnico é Wilmar Santos Melo, despachante do sindicato e genro de Agamenon. O relatório da PF foi enviado para o Ministério Público Federal, que não comenta as atividades de Melo e alega que a investigação corre em sigilo.

Desde 2015, Melo registrou no CAR 77 lotes inseridos parcial ou totalmente em unidades de conservação, onde é ilegal constituir propriedade privada, segundo cruzamento de dados realizado pelo consórcio de jornalistas. Isso significa que Melo, o sindicato e Agamenon Menezes podem estar envolvidos na tentativa de legalizar cerca de 75 mil hectares de floresta amazônica protegida nos últimos oito anos – essa área é duas vezes maior que a cidade de Belo Horizonte (MG).

“Em cada município, há talvez duas ou três pessoas que sabem tudo: quem é dono do que, quem está onde, quais são os preços. Também são essas pessoas que cadastram as propriedades no CAR e se ocupam do processo de regularização. Elas meio que controlam esse mercado”, explica a especialista em gestão fundiária do Imazon, Brenda Brito.

Melo já foi multado por “prestar informação falsa no procedimento administrativo do CAR” de vários lotes no Pará (ele registrou mais de 600 áreas desde 2015). A multa de R$ 111,5 mil, imposta pelo Ibama em 2016, ainda não foi paga e é contestada judicialmente. A reportagem tentou entrevistar Melo por diversos meios, mas segundo seu sogro, ele não quis comentar.

Já Agamenon Menezes confirmou os registros no CAR, assim como suas ligações com Melo, de quem, além de sogro, é patrão. Ele diz que o sindicato tem parceria com o Incra para os registros no CAR e afirmou ainda ser “normal” o cadastro de áreas dentro de unidades de conservação. Sobre os quatro lotes queimados e registrados no CAR pelo sindicato, ele diz que não tem ingerência sobre as áreas e que o sindicato apenas repassa as informações recebidas dos proprietários.

Menezes é um dos investigados pelo Dia do Fogo após ter sido flagrado em um grupo de WhatsApp chamado “Sertão” combinando com outros fazendeiros e empresários a queimada da floresta. Em 2019, a PF realizou busca e apreensão em sua casa e no sindicato.

Marketplace da Grilagem de Terras

Uma das 77 áreas de preservação registradas por Melo no CAR se deu em favor de Nair Rodrigues Petry, que ficou conhecida em 2019 por acusar fiscais ambientais como responsáveis pelos incêndios.

Petry foi candidata a vereadora pelo PSDB em Guarantã do Norte, cidade do Mato Grosso na divisa com o Pará, em 2004 e 2016. Adotou o nome político de Nair Brizola, uma homenagem ao político gaúcho fundador do PDT. Em 2019, ela concedeu entrevistas dizendo que os responsáveis pelas queimadas eram fiscais do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). A declaração motivou o então presidente Jair Bolsonaro (PL) a determinar investigação da Polícia Federal sobre os agentes públicos, em mais um ato da agenda antiambiental do ex-presidente.

Dias depois da declaração, Petry foi multada em mais de R$ 1 milhão pela destruição da área no Dia do Fogo – são 71 hectares dentro da Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo.

Procurada pela reportagem, Nair Brizola afirmou que é proprietária da terra desde 1994, antes da criação da reserva. “Eu paguei pelo direito de estar aqui!”, ela diz. Também disse que não se lembrava de o terreno ter sido registrado no CAR, embora isso tenha sido feito por Wilmar Santos Melo em 2015.

A investigação de Phillips e da Repórter Brasil em 2020 mostrou que Nair Brizola chegou a anunciar o terreno queimado no Facebook. Essa prática vem se multiplicando na maior rede social do mundo. Em um intervalo de três semanas, a investigação do Forbidden Stories identificou mais de 150 anúncios suspeitos de venda de terras griladas nos estados de Amazonas, Pará e Mato Grosso.

Um dos vendedores que oferecem terras na Amazônia a preços baixos se identifica como João. A equipe do Forbidden Stories fez contato com ele se passando como potencial cliente. Por R$ 1.200 por hectare, um preço três vezes inferior ao preço médio da terra na região de Almeirim, no norte do Pará. João oferta fazendas que podem chegar a 8.000 hectares (ou mais de 8.000 campos de futebol).

A venda dessas terras é ilegal, por estar em área de preservação, porém está a mostra para todos. Muitas vezes, a terra colocada à venda é vasta, está parcialmente desmatada e não tem título de propriedade. Alguns anúncios oferecem terras a preços muito baixo, como R$ 450 por hectare, que equivale a 10 mil m².

João oferece também outros serviços. “Eu tenho como fazer a derrubada e queima [da mata] no meio de outubro, quando parar de chover. Queima por minha conta”, continua. “Quando chega dezembro e começa a chover novamente aqui na região, joga semente de avião, aí a fazenda está praticamente formada. O principal é derrubar”. Para limpar o terreno e semear o capim, João cobra R$ 800 por hectare.

Ele diz que já foi pedido ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa) o título da propriedade do terreno, e envia documentos para provar que o processo está em curso e que, com um pagamento adicional de R$ 400 por hectare, a titulação fica pronta em seis meses. Sem isso, o processo pode levar até 20 anos. Procurado, o Iterpa não respondeu.

A equipe do Forbidden Stories conversou com oito vendedores de terra ativos no Facebook. Vários informaram que não possuíam um título de propriedade, o que é essencial para a venda de terras.

Quando a BBC revelou, em 2021, que o Facebook estava sendo usado para vender terras em Rondônia, a rede social se comprometeu a proibir a venda de terras protegidas na sua plataforma Marketplace.

Contatada pelo Forbidden Stories, a Meta informou que estava analisando os anúncios no Facebook Marketplace para “identificar aqueles que podem violar suas regras”, e reiterou que a plataforma proíbe “a venda de terras localizadas em unidades de conservação” em seus espaços comerciais. “Determinar se uma determinada área pode ser vendida envolve uma análise jurídica complexa, que compete aos tribunais locais”, acrescentou o porta-voz.

*Com pesquisa e análise de dados realizadas por Ruan Martins e Eduardo Goulart (OCCRP)


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *