19/05/2024 - Edição 540

True Colors

População LGBTQIA+ enfrenta dificuldades no acesso aos serviços de saúde pública

Discriminação e falta de tratamentos específicos para a população trans estão entre os principais problemas apontados

Publicado em 09/11/2022 10:01 - Camilla Lima - Brasil de Fato

Divulgação Divulgação/ Sesa

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Imagine você chegar a uma unidade de saúde, não ter seu nome reconhecido, ter exames e tratamentos negados e ainda enfrentar situações de preconceito e descriminação? Essa é a realidade diária para a população LGBT, que procura os serviços de saúde pública. Como explica a artista Lara Nicole Medeiros Mota: “você já tem o ‘destratamento’ na entrada, a partir do momento que seu pronome, o seu nome, ele é negado, então automaticamente já é uma violência. A questão da falta de acesso, a questão da falta de informação, muitas pessoas trans deixam de acessar esses espaços porque sabem que ali elas vão ser invalidadas a todo momento”.

Lara Nicole e a amiga Emilly Alves Almeida são duas mulheres trans que preferiram iniciar o tratamento hormonal por conta própria diante das enormes barreiras impostas tanto para o tratamento específico, como para o acompanhamento médico, fundamental para evitar a propagação de doenças: “ah, mas por que não tentaram? Justamente porque sabemos de milhares de casos de outras pessoas trans que tentaram e foram tentativas frustradas, como o caso que a gente citou, de uma pessoa que mora aqui na casa e que está há três anos está esperando a primeira consulta do endócrino”, enfatiza Nicole.

Emilly também compartilha o contexto de dificuldades e exclusão: “diante dessa situação vocês tiram o quanto é difícil, e vocês tiram também o quanto de pessoas trans às vezes perdem algum tratamento, às vezes precisam de algum tratamento, mas se negam a procurar por causa da transfobia institucional que acontece dentro dos postos e hospitais”. Ela chama atenção ainda para as problemáticas do tratatamento hormonal, fundamental para o processo de transição: “a hormonização é algo falho em relação ao governo. O governo deveria disponibilizar como um direito básico para as pessoas trans a questão da hormonoterapia. Sim, a gente faz por conta própria porque a gente não tem o livre acesso”, enfatiza. As duas artistas esclarecem que é preciso procurar ajuda profissional para realizar o procedimento.

Mitchelle Meira é vice-presidente do Conselho Estadual LGBT. Mulher lésbica, feminista e militante, ela também fala sobre as dificuldades impostas pelo sistema: “a nossa maior dificuldade é o acesso, o acesso e o reconhecimento. Quando a pessoa vai até um posto médico ter um atendimento com o ginecologista, quando você diz que é uma mulher lésbica, há uma negação de solicitação de exames por achar que aquilo ali não vai ter IST, não vai pegar HIV, e isso é um perigo para a nossa saúde. Umas das dificuldades que a gente tem, primeiro é o acesso. Quando a gente acessa, a gente tem mais uma dificuldade que é o preconceito”.

Mitchelle fala ainda sobre as especificidades que são diariamente ignoradas: “o formulário que fazem com a gente no ginecologista, nos trata de forma totalmente heteronormativa. Aí quando você fala da sua sexualidade, negam que aquela prática sexual pode trazer algumas questões para a sua saúde. É um verdadeiro descaso de conhecimento, né nem de pesquisa, porque pesquisa tem, dado científico tem, na realidade não tem é o interesse”, defende.

Invisibilizada, esta população vê seus direitos suprimidos. Políticas públicas escassas tornam o problema ainda maior. Como explica Víctor Emanuel, professor do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará (UFC): “Não há o respeito pelo nome social, não há o respeito pelas especificidades, não há um sentimento de urgência no atendimento. É como se eles fossem um excedente a ser atendido, e não como cidadãos de direito. Então há um afastamento, um estranhamento dos serviços de saúde, tanto dos serviços de saúde em relação às pessoas trans, como delas próprias, elas não sentem-se à vontade”, salienta.

Emanuel Moura, coordenador do Serviço de Referência Transdisciplinar para Transgêneros (Sertrans), salienta o contexto histórico e fala sobre os desdobramentos do problema: “a saúde, ela é importante para todas, todos e todes. A grande questão para população LGBT é que há a invisibilidade histórica que vem com a historicidade dessa população, e isso faz com que a gente acabe lidando com muitas situações de agravamento, quadros de saúde que são situações clínicas preveníveis, mas que acabam não sendo tratadas”.

Fundamentais para a construção de políticas públicas, a falta de dados sobre esta população é a regra, o que dificulta o acesso e colabora para um cenário de negação de direitos básicos, como salienta Víctor: “Então a gente não sabe como elas estão, como é que está essa hormonoterapia, se elas estão com tuberculose, hanseníase, IST’s. Então, há um verdadeiro apagão, até epidemiológico, de informação para essas pessoas. Não se consegue construir políticas públicas fidedignas se a gente não tem informação real de como está a situação de saúde delas e deles. Política pública só funciona com dados, eu não consigo fazer política pública ao Deus dará”.

Principalmente quando as especificidades de cada indivíduo que compõe esta parcela da população não são consideradas: “A população LGBT não é homogênea, ela tem a lésbica, ela tem o gay, ela tem a bissexual, ela tem a pessoa transgênero, o travesti, tem as pessoas intersex. Então você precisa ter um olhar para a saúde e entender o quê que essa população precisa tanto do atendimento, como a parte da humanização desse atendimento”, reitera Mitchelle.

No Ceará, o Sertrans do Hospital Professor Frota Pinto, é o único ambulatório público especializado no atendimento a pessoas trans. Criado em novembro de 2017, oferece atendimento multidisciplinar em psiquiatria, psicologia, endocrinologia, enfermagem e serviço social.  Além desse acompanhamento interdisciplinar, o ambulatório oferece ainda a hormonoterapia. Mas o desafio ainda é a ampliação do serviço que comporta apenas 12 atendimentos por mês. Para acessar é preciso antes passar pelas unidades básicas de saúde. “ainda para essa população o SUS não funciona a contento, a gente tem serviços específicos no Brasil funcionando. Não é criar uma saúde especial ou diferenciada, é o reconhecimento de que elas são pessoas como qualquer um cidadão, mas que tem características definidoras específicas pra elas, e isso tem que ser reconhecido”, defende Víctor.

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Equipe Semana On

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