Ágora Digital
A Bíblia pode ser um guia moral, mas não deveria ser uma cartilha de campanha
Publicado em 30/09/2024 5:16 - Victor Barone
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O cenário político brasileiro se tornou um teatro onde versículos bíblicos são brandidos como armas de retórica barata, numa tentativa desesperada de conferir um verniz de legitimidade divina a candidaturas profundamente medíocres.
A ingerência das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais na política brasileira é um erro crasso e perigoso, que coloca em xeque o princípio fundamental de um Estado laico. Ao vestir o palanque com a túnica da fé, o que se promove não é a moralidade, mas a manipulação dos eleitores mais vulneráveis. Isso, claro, em nome de um poder que não serve nem a Deus, nem ao povo, mas aos interesses egoístas de líderes religiosos e seus aliados políticos.
A recente encenação no debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, promovido pelo UOL e Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (30), é apenas mais um exemplo do desastre dessa perniciosa combinação.
Hoje, os grandes líderes das denominações evangélicas parecem ter percebido que suas influências estão sendo desafiadas por uma nova ordem. Não são mais os donos incontestáveis da moralidade evangélica — agora disputam com influenciadores digitais cristãos, um bando de “coachs”, empresários e artistas que dominam as redes sociais. Nessa nova arena, até mesmo os mais tradicionais pastores, como os da Assembleia de Deus, Renascer, Quadrangular, Mundial e Universal, que declararam apoio a Ricardo Nunes (MDB), estão vendo suas bases eleitorais fragmentarem-se. O fato de Pablo Marçal (PRTB), um outsider virtual, estar tecnicamente empatado com Nunes nas intenções de voto dos evangélicos paulistanos é prova de que o poder de influência não está mais restrito ao púlpito.
Como pontua o antropólogo Flávio Conrado, especialista na religião evangélica no Brasil, estamos testemunhando o crescimento dos chamados “desigrejados” — cristãos que não estão sob a tutela de um pastor específico e que consomem religião de forma difusa, quase a la carte. Segundo ele, “os influenciadores podem capturar esses cristãos”, tirando das igrejas formais o monopólio da fé. Isso coloca em risco o controle político que os pastores vinham exercendo com mão de ferro, enquanto os próprios fiéis, em sua maioria, mostram-se contrários à indicação de candidatos por parte dos líderes religiosos. De acordo com um levantamento recente do Datafolha, 70% dos evangélicos são contra a prática de seus pastores sugerirem em quem eles devem votar. Uma boa notícia? Talvez. Mas como o barulho gerado pela mistura de púlpito e palanque parece abafar qualquer senso de decência, o Brasil segue sua marcha religiosa-política.
Por outro lado, muitos evangélicos ainda veem com desconfiança esse entrelaçamento de fé e política. Nada menos que 55% rejeitam a premissa de que valores religiosos e política devem andar juntos. Não é para menos: a contaminação do discurso eleitoral nos templos já gerou episódios de violência, como o lamentável caso do fiel baleado em Goiânia por tentar defender que a igreja deveria se ater a Deus, não a políticos.
Há uma ironia cruel nesse cenário. Os mesmos pastores que outrora clamavam pelo poder de guiar suas ovelhas politicamente agora são vistos por muitos como pedras no caminho de seus candidatos. Metade dos evangélicos, segundo a pesquisa, afirmou que o apoio de um líder religioso faria com que não votassem em determinado político de jeito nenhum. Os tempos estão mudando, e parece que os pastores não foram os primeiros a perceber.
A influência política dos evangélicos, antes pragmática e direcionada a candidatos de centro-direita que representavam os interesses das bancadas religiosas, sofreu um desvio ideológico significativo com a eleição de Jair Bolsonaro. Flávio Conrado aponta que, desde 2018, a bússola moral evangélica foi trocada por uma retórica ideológica confusa, movida por fantasmas como a pauta do “anticomunismo”, que, para a surpresa de muitos, está sendo melhor explorado por figuras como Pablo Marçal do que pelos próprios pastores tradicionais.
A instrumentalização do discurso religioso não é, portanto, uma exclusividade de Bolsonaro ou de qualquer outro político de direita. Ela penetrou profundamente na cultura política brasileira e, talvez mais preocupante, está sendo normalizada. A pesquisa Datafolha mostrou que 76% dos evangélicos preferem que seus líderes religiosos não discutam política durante os cultos, e ainda assim, essas práticas persistem. Por quê? Porque, ao que parece, o poder de transformar fé em votos é uma tentação grande demais para que alguns resistam.
O que resta para o Brasil quando religião e política se misturam a esse ponto? A hipocrisia reina. Enquanto alguns políticos tentam se apresentar como salvadores divinos, messias agarlhadados, os verdadeiros problemas do país continuam sendo negligenciados. A saúde pública? Um desastre. A educação? Subfinanciada. Mas, pelo menos temos candidatos que sabem recitar versículos bíblicos, certo?
Em suma, a ingerência religiosa na política brasileira, especialmente das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, tem feito mais mal do que bem. A interferência dos líderes religiosos nas urnas não apenas enfraquece a laicidade do Estado, mas também aliena eleitores que, ironicamente, buscam líderes mais conectados com as reais necessidades do povo. A política é um campo vasto, complexo, e merece ser tratado com seriedade. A Bíblia pode ser um guia moral, mas não deveria ser uma cartilha de campanha.
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VICTOR BARONE
É jornalista, poeta, professor e Mestre em Comunicação pela UFMS. É editor da Semana On desde a sua fundação.
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