Blog do Alex Fraga
Alex Fraga traz uma bela crônica de Raquel Naveira em sua coluna na Semana On
Publicado em 28/03/2024 2:03 - Alex Fraga
Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.
Lembro-me do dia em que ganhei a minha primeira bicicleta: feminina, verde-abacate, com cestinha pendurada no guidão. O meu esforço para movimentá-la, os tombos, o primeiro passeio com a turma até o Horto Florestal, entre as árvores frondosas beirando o regato. O ar úmido, carregado de segredos. A liberdade pulsando no peito.
Em Quando comecei a crescer, Ruth Rocha conta a história de uma menina como eu: louca para ganhar uma bicicleta de Papai Noel. Ela descobre, decepcionada, que a bicicleta era um presente de seus pais e que Papai Noel não existia. Mas a alegria poderosa de ter a própria bicicleta tomou conta da alma da menina. O livro termina com um convite para que ela vá ao parque com a turma das bicicletas e a constatação íntima: “E eu montei na bicicleta e saí no meio de todos. Eu já estava ficando grande.”
As cenas das bicicletas nos filmes me fascinam. Inesquecível em ET, o Extraterrestre, de Steven Spielberg, a cena do menino protegendo o ET para evitar que ele fosse capturado e transformado em cobaia pelo serviço secreto americano. O menino coloca-o no cesto da bicicleta, coberto por um pano e a turma toda, num momento mágico, telepático, em plena perseguição, alça voo. A bicicleta passa pela lua, projetando sua sombra. É de tirar o fôlego.
Em Butch Cassidy, há a cena da mulher sentada sobre o guidão da bicicleta, abraçada ao homem que pedala a máquina por uma trilha no campo. Passam por debaixo de uma macieira, ela colhe o fruto, morde e oferece a ele. Como Eva no Paraíso. Pura sedução.
Outra cena que me comoveu foi a do recente O Leitor- os dois passeando de bicicleta pelo campo banhado de sol. Recordei-me como é bom viajar na companhia de quem se ama.
Em “Itinerário para Pasárgada”, de Manuel Bandeira, poema-símbolo do lugar ideal de evasão e fuga da realidade, aparece a bicicleta como uma das possibilidades de vigor e privilégio: “Andarei de bicicleta,/ Montarei em burro brabo/ Tomarei banhos de mar…”
Pinço no poema “Azul sobre Amarelo, Maravilha e Roxo”, de Adélia Prado, estes versos: “Desejo, como quem sente fome ou sede,/ um caminho de areia margeado de boninas,/ onde só cabem a bicicleta e seu dono”. O caminho aberto da emancipação, da autonomia.
Depois de tudo, como sempre, nasceu um poema:
Quem ganha uma bicicleta
Monta no inconsciente
E marcha para frente,
Vai adiante
Com o próprio esforço,
Sentindo os músculos,
O suor,
O vento,
Evoluindo
Como uma seta.
Quem ganha uma bicicleta
Equilibra-se,
Torna-se cavaleiro,
Conta consigo mesmo
Para alcançar a meta.
Quem ganha uma bicicleta
Assume independência,
Vai aonde quer:
Desce aos vales,
Sobe às montanhas,
`As vezes em curvas,
`As vezes em linha reta.
Quem ganha uma bicicleta
Assume sua personalidade,
É tanta a liberdade
Que já pode ser poeta.
Quem ganha uma bicicleta
Esquece a inércia,
O medo,
O infantilismo,
A pessoa se reinventa,
Adulta.
Quem ganha uma bicicleta
Sai pelo mundo,
Sob o sol,
Sob a chuva,
A alma em festa…
Por Raquel Naveira
–
ALEX FRAGA
É jornalista e profundo conhecedor da cultura sul-mato-grossense.
Leia outros artigos da coluna: Blog do Alex Fraga
Deixe um comentário