Ágora Digital
O necessário equilíbrio entre o acolhimento às vítimas e o direito ao devido processo legal
Publicado em 09/09/2024 4:28 - Victor Barone
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O recente episódio envolvendo a demissão do advogado Silvio Almeida do Ministério dos Direitos Humanos reacendeu um debate crucial na sociedade contemporânea: o equilíbrio entre o acolhimento às vítimas de assédio sexual e a presunção de inocência dos acusados. Em tempos de intensa polarização e rápida circulação de informações, a pressão pela condenação pública pode ser avassaladora. Contudo, ao refletirmos sobre o tema, devemos lembrar que o pêndulo da justiça não pode balançar desordenadamente nem para o lado da impunidade nem para o da condenação sumária.
O grupo Prerrogativas, composto em grande parte por advogados progressistas, pronunciou-se recentemente sobre o caso, defendendo uma postura que busca justamente esse equilíbrio: “Jamais permitiremos que se criminalize qualquer vítima […] Mas jamais permitiremos que um acusado seja ‘condenado’ sem o contraditório. A ele, direito amplo de defesa, devido processo legal e todas as demais garantias legais”, dizem Marco Aurélio de Carvalho e Bruno Salles, em nota oficial do Prerro. Trata-se de um lembrete de que o direito à defesa é uma pedra angular de qualquer sociedade democrática.
Em casos de assédio sexual, é fundamental que as vítimas sejam tratadas com empatia e amparo, especialmente por se tratar de situações que, muitas vezes, envolvem provas difíceis de serem apresentadas e um forte impacto emocional sobre quem denuncia. Movimentos como o Me Too Brasil têm cumprido um papel essencial ao dar voz às vítimas e promover um espaço de acolhimento, sem, no entanto, se posicionarem como instâncias de apuração. O posicionamento da entidade – “não somos instância de apuração, mas de acolhimento” – ecoa a importância desse suporte às vítimas, que muitas vezes enfrentam um fardo emocional e social enorme ao exporem suas denúncias.
O acolhimento não implica, contudo, em um juízo antecipado de condenação. Tratar uma vítima como alguém que merece ser ouvida e respeitada é uma prática moralmente correta e necessária, mas isso não deve ser confundido com o abandono das garantias legais concedidas ao acusado.
A presunção de inocência é um princípio basilar em qualquer sistema jurídico que preze pela justiça. O próprio direito de defesa, tratado como “sagrado” pelo Prerrogativas, faz parte desse arcabouço de garantias que asseguram que todos, sem exceção, tenham a oportunidade de apresentar sua versão dos fatos antes de qualquer condenação. “Tratar o acusado como culpado não significa tratar o acusador como mentiroso e caluniador”, afirmam Marco Aurélio e Bruno Salles. Esta distinção é crucial para evitar que a legítima indignação social contra o assédio sexual transforme-se em um tribunal midiático, onde o linchamento público precede qualquer apuração.
Muitos já foram vítimas de falácias argumentativas em situações assim, em que a opinião pública, movida pela emoção e pelo senso de justiça, comete erros irreparáveis. A falácia ad hominem, por exemplo, ataca o caráter do acusado, em vez de focar nas provas ou fatos. Outra falácia comum nesses cenários é a petitio principii, onde se toma como premissa algo que ainda precisa ser provado — neste caso, a culpa do acusado. Tal dinâmica distorce o processo de apuração e contamina o ambiente de justiça, gerando, como resultado, não um julgamento equilibrado, mas uma condenação precipitada.
É fundamental, portanto, que se evite o que o Prerrogativas chamou de “tribunais midiáticos” e “desconstruções de biografias”. O julgamento feito fora dos tribunais, na arena pública das redes sociais ou da mídia, tende a atropelar o devido processo, substituindo o escrutínio meticuloso por sentenças rápidas, porém perigosas. O direito ao contraditório e à ampla defesa são conquistas civilizacionais que não podem ser sacrificadas sob a pressão de uma sociedade ávida por justiça instantânea. Como bem pontuou o jurista Fábio Konder Comparato: “Não há justiça onde não há serenidade” (Comparato, Ética, 2006).
Portanto, em casos de assédio sexual, o cuidado deve ser duplo: acolher as vítimas com o respeito que lhes é devido e garantir o direito ao contraditório ao acusado. A presunção de inocência não é um escudo para proteger abusadores, mas sim uma salvaguarda essencial para que a justiça seja feita de maneira plena e imparcial. O desafio de encontrar o equilíbrio entre a defesa das vítimas e o direito ao devido processo legal é complexo, mas não impossível. Afinal, como afirmou a filósofa Judith Butler, “a justiça não é feita de imediato; ela é processual” (Undoing Gender, 2004). E nesse processo, a serenidade e o respeito aos direitos de todos os envolvidos são os pilares que devem nortear nossas ações.
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VICTOR BARONE
É jornalista, poeta, professor e Mestre em Comunicação pela UFMS. É editor da Semana On desde a sua fundação.
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