09/05/2024 - Edição 540

Agromundo

Brasil é envenenado diariamente, mas o lobby dos agrotóxicos fala mais alto

Brasil vai continuar veloz para aprovar produtos químicos que trazem lucro a poucos e lento para tirá-los de circulação quando fica provado que causam danos a muitos

Publicado em 29/12/2023 11:07 - Leonardo Sakamoto - UOL

Divulgação CENIPA

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Lula sancionou, na quinta (28), com 14 vetos, o PL do Veneno, que acelera o processo de registro de agrotóxicos no país, mas, mesmo assim, o Brasil vai continuar veloz para aprovar produtos químicos que trazem lucro a poucos e lento para tirá-los de circulação quando fica provado que causam danos a muitos. Ou para reparar esses danos no meio ambiente e na população.

Entre as mudanças presidenciais, o ponto mais relevante foi o que garantiu a manutenção do Ibama e da Anvisa no veto a agrotóxicos, evitando deixar tudo na mão só do Ministério da Agricultura e da Pecuária. O que seria uma raposa cuidando do galinheiro. Claro que isso pode ser derrubado pelo Congresso Nacional, tal como foi feito no caso do PL do Genocídio Indígena (ou do Marco Temporal).

Com o PL o país também continuará o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e principal destino de produtos químicos proibidos em outros países. Além de plataforma de exportação de mercadorias produzidas com veneno. Sim, agrotóxicos proibidos nos Estados Unidos, na União Europeia e em alguns de nossos vizinhos latinos correm por aqui soltos – literalmente – contaminando água, terra e ar. E, por conseguinte, milhões de pessoas.

E não são apenas os proibidos. Talvez um pepino tão grande quanto sejam os permitidos usados sem o devido cuidado e em quantidade maior que o meio pode suportar.

Mesmo quando o governo faz uma reavaliação toxicológica de substâncias químicas, parte dos produtores alega que vetos causam aumento de custos e vão para a briga. Entende-se o lado deles, mas aceitar algo que não está de acordo com os padrões mínimos é uma bomba-relógio que vai explodir em algum momento. Na saúde e nas exportações.

“Faltam estudos que comprovem prejuízos à saúde provocados por produtos usados adequadamente.” “Não há evidências científicas de que, quando usados apropriadamente, causem efeito à saúde.” Eu adoro o discurso usado na defesa do indefensável. Mas tem que ter classe para saber usá-lo, criar o contexto correto, ter cara de pau, parecer acreditar naquilo.

Quem já assistiu ao filme “Obrigado por fumar”, de Jaison Reitman, com Aaron Eckhart, que satiriza a indústria do tabaco e as associações de lobby que atuam nos Estados Unidos, muitas vezes como “mercadores da morte”, sabe do que estou falando.

É cômico ver o discurso cínico do protagonista do filme e imaginar quantos cidadãos caem nesse mimimi na vida real. Mas a história fica trágica quando verificamos que os mesmos discursos são descarregados sobre nós diariamente para justificar muita coisa. Entre elas, a expansão do uso de veneno na agropecuária.

E muita gente, claro, engole feito um bebê. Perda de empregos, falta de comida, interesses estrangeiros, hecatombe maia, tudo é usado como desculpa para continuar passando por cima. Alguém já viu filmes promocionais de empresas que produzem agrotóxicos? É de chorar de emoção.

As análises feitas na água e nos alimentos no Brasil mostram que já estamos em um cenário preocupante, como apontou Hélen Freitas e Poliana Dallabrida, da Repórter Brasil:

1) Uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Agricultura no ano passado analisou 37 produtos e mostrou que 89% das amostras do feijão-de-corda e 32% do feijão comum, coletadas em 2019, continham resíduos de agrotóxicos proibidos ou acima do permitido. O pimentão e o morango foram os outros dois produtos com maior índice de contaminação, com 64% e 57% das amostras em desconformidade, respectivamente.

2) Nem o lanche das crianças fica de fora. Uma pesquisa publicada em 2021, pelo Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), revelou que 59% dos ultraprocessados mais consumidos no país, como cereais matinais, bolachas, bebidas lácteas e pães, tinham resíduos de agrotóxicos. Em 14 dos 27 produtos analisados, foi identificada a presença de glifosato ou glufosinato, herbicida relacionado à má formação embrionária e a problemas no sistema nervoso central em ratos.

3) E se está no alimento, também está na água que sai da sua torneira. Em março de 2022, a Repórter Brasil mostrou que dezenas de cidades do país apresentam agrotóxicos acima do limite em suas águas. Os dados são resultados de testes realizados entre 2018 e 2020 por empresas ou órgãos de abastecimento e enviados ao Sisagua (Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano), do Ministério da Saúde. Dos 27 pesticidas monitorados na água do país, 19 são tão perigosos à saúde que foram proibidos na União Europeia e cinco são “substâncias eternas”, tão resistentes que nunca se degradam.

4) Expostos diariamente aos produtos nocivos, os assalariados rurais e os agricultores familiares representam o elo mais frágil. Entre 2010 e 2019, 7.163 trabalhadores rurais foram atendidos em hospitais e diagnosticados com intoxicação por agrotóxico dentro do ambiente de trabalho ou em decorrência da atividade profissional, segundo dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde.

E apesar de o problema ter se intensificado durante a gestão Jair Bolsonaro, com recorde de liberação de venenos, a situação vem se arrastando há tempos. Natália Cancian e Marília Rocha, na Folha de S.Paulo, em 2011, apontaram que havia sido encontrado agrotóxico na amamentação em Mato Grosso:

“O leite materno de mulheres de Lucas do Rio Verde, cidade de 45 mil habitantes na região central de Mato Grosso, está contaminado por agrotóxicos, revela uma pesquisa da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). Foram coletadas amostras de leite de 62 mulheres, 3 delas da zona rural, entre fevereiro e junho de 2010. O município é um dos principais produtores de grãos do MT. A presença de agrotóxicos foi detectada em todas”.

Mas destaco o caso por conta do “outro lado” na época:

“A Associação Nacional de Defesa Vegetal, representante dos produtores de agrotóxicos, diz desconhecer detalhes da pesquisa, mas ressalta que a avaliação de estudos toxicológicos é complexa. Segundo a entidade, faltam estudos que comprovem prejuízos à saúde provocados por produtos usados adequadamente. ‘Não há evidências científicas de que, quando usados apropriadamente, os defensivos agrícolas causem efeito à saúde’.”

Durante as brigas pelo banimento do amianto, um advogado que defendia o interesses dos trabalhadores trouxe um pedaço do produto para ser mostrado em uma audiência judicial. O amianto, acusado de causar danos à saúde dos trabalhadores, circulou na mesa. Do lado corporativo, que defendia que o produto era inofensivo como uma bola de gude, ninguém quis tocá-lo.

Poderíamos fazer o mesmo com os que defendem que “faltam estudos” e “não há dados” sobre o veneno. Até como uma forma de mostrar que acreditam naquilo que defendem. Vamos garantir que os executivos das empresas, seus lobistas, parlamentares e governantes amigos consumam apenas alimentos e água dos locais onde os problemas relatados acontecem.

Se faltam dados, não há risco comprovado, não é mesmo? Bora liderar pelo exemplo.

No Brasil, o lobby dos agrotóxicos é pesado. Daria um longa-metragem de “ficção” tão engraçado e trágico quanto o da indústria do tabaco. Financiador não iria faltar.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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