09/05/2024 - Edição 540

Agromundo

Agronegócio vai te vender soja sem avisar que teve DNA editado

A Embrapa começou a testar soja com edição genética no DNA para ser tolerante à seca – mas, diferente dos transgênicos, ela vai ser vendida sem nenhum aviso nos supermercados

Publicado em 08/12/2023 2:03 - Adriana Amâncio - Intercept_Brasil

Divulgação Pixabay

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No mês de outubro deste ano, a Embrapa iniciou, em Londrina, no Paraná, os primeiros testes de campo da soja tolerante à seca. A técnica de modificação do grão é chamada Crispr e é feita por meio de edição genética, alterando o DNA em um ponto específico. A ideia da empresa pública, aliada à Corteva, gigante americana do agronegócio, é tornar as plantações de soja resistentes às longas estiagens, intensificadas pelos desmatamentos do próprio setor e sentidas nas altas temperaturas que o país vem enfrentando.

Mesmo tendo passado por modificação genética, essa soja foi classificada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, como organismo não geneticamente modificado. Dessa forma, ela vai ser comercializada como um produto convencional – o que a livra de ser submetida a critérios técnicos previstos na Lei de Biossegurança, que enquadram, por exemplo, os produtos transgênicos vendidos no supermercado.

Embora ambos produzam organismos modificados da sua condição natural, a edição genética, enquanto técnica, é diferente da transgenia. Os produtos transgênicos obrigatoriamente recebem genes de outros organismos para herdar características do doador. Já a edição genética pode acontecer sem a inserção de genes externos. No entanto, no entendimento de alguns pesquisadores, há casos em que o grão é submetido a processos de transgenia combinado à edição genética – a exemplo do que acontece com a soja tolerante à seca.

Uma resolução normativa da CTNBio, de 2018, pactua que no Brasil a modificação genética só passa a ser considerada a partir da modificação do produto final. Ou seja, no caso da soja testada pela Embrapa, ela foi classificada como organismo não geneticamente modificado.

No entanto, especialistas ouvidos pelo Intercept não concordam com essa classificação, alertando para a ausência de pesquisas garantindo que grãos editados geneticamente se comportem da mesma forma que grãos convencionais. A pesquisadora sênior Sarah Agapito, do Norwegian Research Centre, instituto mantido por quatro universidades  e referência em biossegurança na Noruega, assinou um parecer técnico contestando essa decisão.

“Não existem pesquisas que comprovem que essas variedades editadas geneticamente terão comportamentos iguais aos das variedades convencionais”, explicou ao Intercept.

Hoje, o Brasil conta com 56 produtos de edição genética aprovados. Vale destacar que o parecer da soja tolerante à seca não estava disponível no site da CNTBio quando iniciamos a apuração desta reportagem. No dia 3 de novembro, recebemos o arquivo por e-mail, após solicitação feita a membros da comissão. Nesta mesma data, a lista foi atualizada, ganhando quase dez novos produtos.

Toda essa discussão técnica, na verdade, faz diferença na forma como o consumidor brasileiro terá acesso a esses produtos, especialmente nas questões de cuidado com a saúde humana e com o meio ambiente.

Soja alterada não vai passar pelos mesmos critérios dos transgênicos

Livre de ser enquadrada na Lei da Biossegurança, a soja tolerante à seca não vai ser submetida a dois importantes critérios de controle antes de chegar em sua casa. São eles: análise de risco e rotulagem.

A análise de risco é uma das etapas de regulamentação de produtos geneticamente modificados. Ela envolve uma série de pesquisas sobre possíveis danos que esses produtos possam causar à saúde, a exemplo de reações alérgicas, cujos sintomas podem surgir ao longo do tempo.

Como parte dessa análise, também é necessário conduzir um monitoramento ambiental pós-comercialização, que serve para observar e criar condições de ação imediata nos casos em que o Organismo Geneticamente Modificado, chamado de OMG, possa apresentar impactos na interação com a fauna e a flora.

Já a rotulagem, hoje adotada com produtos que tenham mais de 1% de transgênicos na composição, serve para garantir o direito do consumidor de saber que está consumindo um produto geneticamente modificado. Se um produto de edição genética chegar, hoje, na sua casa, não terá cumprido nenhum desses ritos.

Criada em 2005, a lei orienta a regulamentação dos produtos geneticamente modificados, tendo como referência o Protocolo de Cartagena, um acordo sobre biossegurança, assinado por 171 países do mundo. Embora seja signatário do acordo, o Brasil viola o protocolo, que recomenda a adoção do princípio de precaução quando há ausência de certeza científica sobre os efeitos que um organismo geneticamente modificado pode causar na saúde humana e no meio ambiente.

Dessa forma, assegurar a informação no rótulo de que o produto é geneticamente modificado, é garantir o direito à informação do consumidor, possibilitando o direito de consumir ou não determinado produto.

Comissão de biossegurança tem afrouxado regras para empresas

O biólogo José Maria Ferraz, ex-integrante da CTNBio, chama atenção para outra questão envolvendo a soja tolerante à seca: o pouco tempo com que a comissão nacional aprovou o produto.

Segundo o parecer técnico desse tipo de grão, a carta consulta, documento apresentado pela Embrapa, solicitando a análise do produto pela CTNBio, foi protocolada no dia 16 de fevereiro. O deferimento foi dado apenas quinze dias depois.

“É uma loucura a velocidade com que isso foi aprovado. É segura essa tecnologia? A CTNBio diz que sim, a Embrapa já tem uma outra soja para desativar fatores desde 2015, mas ela não foi liberada até hoje. Por que? Qual o motivo? Teve efeitos não esperados e evidentes?”, ponderou

A flexibilização de regras na CTNBio para facilitar a vida dessas empresas, não é novidade, pontuou Ferraz. Inicialmente, com os transgênicos haviam regras mais rígidas de segurança, a exemplo do monitoramento de campo, que serve para identificar possíveis efeitos indesejados, ocorridos na interação do organismo geneticamente modificado com a fauna e a flora local.

Com o tempo, entretanto, a resolução normativa n. 32, em seu artigo 18, possibilitou às empresas o direito de pedir a dispensa desse monitoramento de campo. Mas esse não é o único exemplo que mostra como os tempos são encurtados, quase sempre, para beneficiar as empresas. Nessa mesma resolução, no artigo 14, passou a ser aprovada automaticamente as plantas que acumulam mais de um evento transgênico no mesmo organismo – espécies que são chamadas de piramidadas.

Essa técnica é usada para que a mesma planta receba genes diferentes para resistir a pragas e herbicidas. A reação desse conjunto de eventos na mesma planta não é avaliada, caso a CTNBio já tenha avaliado cada evento individualmente.

De acordo com Ferraz, é possível fazer eventos piramidados usando a Crispr. Isso quer dizer que essa mesma soja, já tolerante à seca, pode passar por outra modificação genética para ganhar tolerância a algum tipo de agrotóxico, por exemplo.

Com isso, a empresa vende o combo: o grão e ao mesmo tempo o agrotóxico. Assim, o grão é vendido com a garantia de que aquele tipo de agrotóxico poderá ser aplicado no cultivo, sem impedir o desenvolvimento do grão.

“Você acha que uma empresa, que já teve a sua tecnologia usada na soja tolerante à seca, não vai querer colocar uma tolerância ao herbicida dela? Então, o dilema moral e ético vai embora”, questionou Ferraz.

Corteva ganhará royalty com venda de soja com edição genética

Essa redução de custos e de tempo favorece as grandes corporações do agronegócio. A Corteva, empresa de quem a Embrapa obteve licença para usar a tecnologia Crispr na soja, é a detentora do maior número de patentes de edição genética na agricultura do que qualquer outra no mundo. Os dados constam no informativo Patentes sobre edição de Genoma no Canadá, produzido pela  Rede Canadense de Ação em Biotecnologia.

A Corteva é uma grande empresa norte-americana do mercado global de sementes, agrotóxicos e biotecnologia. Em 2019, ela se tornou uma companhia independente, formada pela fusão das empresas Dow Agrosciences, DuPont e Pioneer.

Segundo artigo publicado na Associação das Empresas de Produtos Fitossanitários, o Brasil é o segundo maior mercado da Corteva – ela tem participação em 57 CNPJs de estados em todas as regiões do Brasil.

Chama a atenção que a Corteva já lidera as patentes de uma tecnologia relativamente nova no mercado agrícola brasileiro. Levando em conta o número de patentes registradas em nome das empresas que foram fundidas na criação dela, ela é a segunda maior detentora de patentes de transgênicos no Brasil, perdendo apenas para a Monsanto. Os dados estão disponíveis no site da CTNBio.

De acordo com o informativo das patentes de edição genética, o uso para fins de pesquisa é dispensado de royalties. No entanto, o uso com fins comerciais está condicionado ao pagamento de licença. Identificamos dois extratos de contrato firmados entre a Embrapa e a Pioneer, empresa que, hoje, se fundiu à Corteva, para uso da Crispr em experimentos científicos.

O primeiro contrato teve o seu extrato publicado na seção 3, da edição 244 no Diário Oficial. O texto afirma que se trata de um acordo com o objetivo de realizar “pesquisas e esforços conjuntos para a geração de tecnologias de interesse comum”. O contrato, assinado em dezembro de 2018, tem vigência de 20 anos.

Na edição do dia 29 de dezembro de 2021, do Diário Oficial, encontramos outro contrato, também firmado entre Embrapa e Pioneer. Esse acordo de colaboração geral é destinado ao uso da técnica de edição genética na criação de linhagens de soja tolerante à seca. O documento fala de um valor global de 25 mil dólares – o que equivale a R$ 121,9 mil, em valores atuais.

Durante a conversa com o pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e membro da Academia Brasileira de Ciência, Francisco Aragão, perguntamos se esse valor de 25 mil dólares haviam sido pagos pela Embrapa à Corteva na assinatura do contrato.

Ele afirmou “que esse é o valor inicial de discussão da tecnologia”. Em seguida, explicou que o contrato em questão refere-se apenas à produção da soja tolerante à seca, obtida com o uso da CRISPR.

Em outro momento da entrevista, Aragão afirma que “não viu esse contrato [o da soja], por isso, não sabe explicar do que se trata esse valor [os 25 mil dólares]”.

No entanto, ele lembrou que, uma vez a soja tolerante à seca se tornando um produto, haverá um rateio de royalties, cujos valores serão calculados de acordo com a contribuição de cada empresa para o evento.

Nós solicitamos, por e-mail, a cópia do contrato à Chefe Adjunta de Transferência de Tecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, Márcia Onoyama e à assessoria de imprensa da Embrapa Soja. A chefe de Transferência de Tecnologia recomendou que procurássemos a assessoria de imprensa da Embrapa, o que já havíamos feito.

No e-mail enviado a Onoyama fizemos várias perguntas sobre como funciona essa relação comercial nesses acordos, mas ela justificou que não poderia compartilhar os documentos por questões de sigilo. A assessoria de imprensa da Embrapa Soja também disse que os contratos “se encontram sob o amparo da lei que trata da propriedade industrial”.

A nota ainda afirma que os documentos ainda estão sob “sigilo previsto da lei que trata de acesso à informação, as hipóteses de sigilo, de segredo de justiça e segredo industrial.”

No entendimento dos pesquisadores, a Embrapa, detentora do maior acervo de soja tropical do mundo, aplicou uma tecnologia da Corteva em uma das suas variedades e gerou um produto que vai ser comercializado e cujos lucros serão divididos com a própria Corteva.

“Nós estamos entregando o ouro [as variedade de sojas] às corporações. É a Embrapa subjugada ao capital externo e à pesquisa dessas capitais”, destacou Ferraz.

Sociedade civil cobra regulamentação de produtos com edição genética

Entre o fim de junho e o início de julho deste ano, cidadãos que exercem diferentes profissões e que possuem visões diversas sobre a técnica Crispr cumpriram uma agenda de debates e reuniões para cobrar um debate democrático sobre a regulação da edição genética no Brasil.

O movimento, ligado à inovação democrática, chama-se Assembleia Cidadã Brasileira sobre Edição Genética. O grupo solicitou  uma audiência pública com os parlamentares do Congresso Nacional cobrando que o tema entre na pauta do legislativo.

“Um dos resultados das discussões da assembleia foi a necessidade de regulamentar melhor, com mais transparência, a edição genética”, explicou o professor do departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Assembleia Cidadã, Yurij Castelfranchi.

Ao final dos quatro dias de atividade, foi produzida uma nota técnica que trazia diversas recomendações. Entre elas, fomentar a transparência na avaliação da edição genética, inclusive, envolvendo a participação pública de atores sociais no processo.

Antes mesmo de qualquer uma dessas propostas se tornarem realidade, a soja tolerante à seca chegou ao solo brasileiro. Castelfranchi, inclusive, afirma ter ficado sabendo do início desses testes de campo, por meio da reportagem do Intercept.

“O início de testes de campos [da soja] demonstra que esta escuta, o diálogo com a população, é necessário e urgente”, afirmou.

Entusiastas do uso da edição genética na agricultura afirmam que a tecnologia é o futuro. Inclusive propagam que a biotecnologia poderá ser aplicada para tornar a agricultura mais sustentável, e até produzir alimentos orgânicos mais saudáveis.

Para Ferraz, no entanto, a chegada dos produtos de edição genética, sem que haja uma regulamentação rigorosa, envolvendo estudos sobre o impacto desses produtos na saúde humana é um risco.

“Não há estudos amplos que mostrem a segurança. Quando era aprovado pela Lei de Biossegurança, ao menos, se tinha algumas informações. Era possível perceber, ainda que em pouco tempo, alguns efeitos nocivos destes produtos nos testes. Mas, agora, há um apagão de dados”, afirmou.

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Equipe Semana On

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