10/09/2024 - Edição 550

Ágora Digital

A sujeira abaixo da unha

Por que alguns jornalistas gostam de balangar o dedo em direção aos colegas, mas não percebem a imundície abaixo da própria unha?

Publicado em 09/08/2024 9:14 - Victor Barone

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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Poucas coisas são mais asquerosas no ambiente jornalístico do que balangar o dedo em direção aos colegas, sem perceber a imundície abaixo da própria unha. Em Mato Grosso do Sul, há um ambiente muito favorável a este tipo de prática: os grupinhos “jornalísticos” de whatsapp.

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei”. Erasmo de Roterdã, um humanista e estudioso do Renascimento, incluiu este provérbio de origem pouco clara em sua obra, “Adagia”, onde compilou máximas da sabedoria popular e antiga. Apesar do lapso temporal, se aplica tão bem ao nosso jornalismo, onde gênios da raça compartilham sua verve recheada de babaquice hipócrita com os menos afortunados intelectualmente, que se deleitam a aplaudir as maledicências dos caolhos.

Quanto mais longe fico do lixo que circula por estes grupinhos “jornalísticos” de whatsapp, mais preservo minha sanidade e meu amor próprio.

Ali, prolifera a lei dos cínicos, onde penas de aluguel destilam veneno para uma claque de apaniguados, parceiros de pequenez e uma maioria de inocentes úteis. É um terreno fértil para a hipocrisia que se infiltra no debate público como um comediante malcriado em uma tragédia clássica. Se ao menos pudéssemos aplaudir sua performance, talvez suas consequências fossem menos danosas. Mas não, a hipocrisia não é digna de aplausos. Ela corrói o discurso racional e nos presenteia com um espetáculo de falácias e distorções que tornam qualquer tentativa de entendimento mútuo fracassada.

Alguns dos grandes pensadores já nos alertaram sobre os perigos dessa comédia de erros. Nietzsche, em sua obra “Além do Bem e do Mal”, já criticava a moralidade hipócrita que mascara intenções verdadeiras. Para ele, a hipocrisia é a máscara da civilização, um disfarce que impede a autenticidade e a busca genuína por verdade e justiça.

Peter Singer, por sua vez, em “Ética Prática”, nos convida a um exame de consciência sobre nossa hipocrisia moral. Ele argumenta que apenas confrontando essa dissonância entre palavras e ações podemos avançar rumo a uma moralidade mais verdadeira e eficaz.

Não sou religioso, mas não poderíamos tampouco falar de hipocrisia sem mencionar a parábola da trave nos olhos, uma lição que ressoa através dos séculos. No evangelho de Mateus, Jesus adverte contra o julgamento precipitado: “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está no seu próprio olho?”, nos ensinando a olhar primeiro para as nossas próprias falhas antes de criticar os outros, uma lição frequentemente esquecida pelos coleguinhas coroados em meio a cegueira coletiva das redes sociais.

Em Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, também encontramos uma rica metáfora sobre a hipocrisia e suas implicações nos debates públicos. A cegueira em Saramago é uma representação da hipocrisia que permeia as interações humanas. Assim como os personagens do livro são incapazes de ver fisicamente, muitos indivíduos na esfera pública são moralmente cegos, incapazes de reconhecer suas próprias falhas e contradições. Eles vivem em um estado de negação, professando virtudes e crenças que não praticam, tal como aqueles que apontam o “cisco” no olho do outro sem reconhecer a “trave” no próprio olho.

A hipocrisia, a cegueira dos caolhos nesta terra de cegos que é o jornalismo sul-mato-grossense nos leva a perda de empatia e à desintegração das normas sociais. Na selva dos grupinhos de whastaspp esta gente perde o rumo, o senso de responsabilidade uns pelos outros: o resultado é o caos e a desumanização.

Saramago nos lembra que a verdadeira visão não reside apenas na capacidade de ver, mas na disposição de reconhecer nossas próprias limitações e agir com sinceridade e empatia em um mundo onde o debate público é frequentemente obscurecido pelo orgulho pessoal, pelos ressentimentos pouco contidos e pela hipocrisia propriamente dita.

Que possamos, então, aplaudir a verdade e o debate honesto, enquanto vaiamos, ainda que silenciosamente, a hipocrisia e suas falácias. O futuro de nossa profissão depende dessa distinção, e é nossa responsabilidade assegurar que o debate público não seja apenas uma peça teatral, mas um diálogo autêntico e construtivo.

Assim, continuemos a desafiar a hipocrisia, armados com argumentos sólidos e uma boa dose de ironia. Afinal, em um mundo onde muitos falam sem pensar, pensar antes de falar pode ser a nossa melhor defesa. Que não sejamos meros espectadores dessa tragicomédia, mas participantes ativos na construção de um discurso público mais honesto e verdadeiro.

VICTOR BARONE

É jornalista, poeta, professor e Mestre em Comunicação pela UFMS. É editor da Semana On desde a sua fundação.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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