Brasil
Publicado em 02/05/2019 12:00 -
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No ano de 2017, o movimento feminista realizou de modo incisivo uma série de manifestações contrárias à aprovação da PEC 181/2015, que foi apelidada de PEC do Cavalo de Tróia. Proposta pelo ex-senador Aécio Neves, atual deputado federal, ela propunha a extensão da licença maternidade para mães de bebês prematuros. Contudo, em meio às negociatas e movimentação das bancadas conservadoras da Câmara Federal e do Senado, foram incluídas no texto duas propostas de alteração do inciso 3 do artigo 1º da Constituição Federal (CF), inserindo a expressão: “dignidade da pessoa humana desde a concepção” e no Caput do Artigo 5º da CF, acrescentando a expressão: “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.
A mudança da Constituição impacta todo entendimento do conjunto das leis brasileiras, inclusive as que garantem o abortamento legal. E com a aprovação desse texto, abre-se uma brecha legal. Pois, com a modificação do texto, alteram-se as relações jurídicas entre mãe e feto. Trata-se, portanto, da construção de um instrumento constitucional que impede que as práticas de aborto legal descritas no Artigo 128 da Lei Penal Brasileira sejam implementadas.
Se aprovada em plenário, essa PEC vai impor obstáculos ao aborto previsto em lei: estupro, risco à vida da mãe e em caso de feto com anencefalia. Com essa eventural aprovação, o valor jurídico da vida da mãe é equivalente ao valor jurídico da vida do feto, o que daria um conflito para a autorização dos abortos – mesmo nesses casos. Temos que pensar, que a partir dessa aprovação, uma mulher que seja denunciada por aborto poderá ser acusada de homicídio, já que pela Lei o feto terá a mesma proteção legal que a pessoa humana (mesmo o feto anterior à 12ª semana de gestação).
A PEC 181 encontra-se parada, no momento. Porém, neste ano, surge a possibilidade da PEC 29, proposta pelo ex-senador Magno Malta, apelidada de PEC da Vida, voltar a tramitar. O texto desta PEC, em consonância com a PEC 181, pretende proibir o aborto desde o início da gestação, segundo o próprio site do Senado:
“Se a PEC for aprovada no Senado e na Câmara, o artigo 5º da Constituição passará a ter a seguinte redação: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Estamos na iminência do caos, onde mulheres terão seus direitos sexuais, ainda poucos, surrupiados e, assim, a perda da possibilidade de serem bem atendidas quando são acometidas de abortamento (espontâneo ou voluntário). Sim, mulheres que sofrerem abortamentos espontâneos poderão ser criminalizadas. Aliás, poderão, não, já estão sendo criminalizadas. Em 2017, o Portal Catarinas revelou que o atendimento do SAMU, em Campo Grande, denunciou para a polícia uma mulher que sofreu um aborto espontâneo. Essa mulher foi interrogada por um aborto espontâneo – para ficar claro, ela foi algemada por naturalmente não conseguir manter uma gestação. É o fascismo e o obscurantismo agindo no corpo de cada uma de nós.
Segundo o portal:
“Foi o que aconteceu na última semana em Campo Grande/MS, no socorro a uma mulher de 30 anos pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). O feto de 16 semanas, encontrado no vaso sanitário de sua casa, motivou a escolta policial até o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, onde a paciente continuou vigiada. Com cólicas e sangramento, ela passou por procedimento cirúrgico para retirada dos restos do aborto e só recebeu alta depois de ser interrogada, na manhã do dia seguinte. Por falta de evidências que sustentassem o crime, a prisão em flagrante foi descartada.”
A notícia traz, ainda, uma análise da Sônia Côrrea, pesquisadora do Observatório da Sexualidade e Política (SPW), que alerta sobre essa situação em países da América Latina:
“De acordo com Sônia, a criminalização da saúde, ancorada na suspeita completa das mulheres, tem levado salvadorenhas à prisão, mesmo quando sofrem aborto espontâneo, como denunciou a Anistia Internacional no relatório “À beira da morte: a violência contra a mulher e a proibição do aborto em El Salvador” . El Salvador, Nicarágua e Honduras se destacam como os países da América Latina onde o aborto é totalmente ilegal.”
Essa situação já é normatizada em países como a Nicarágua, El Salvador e Honduras. Nesses três países, o aborto é totalmente proibido, forçando mulheres que estão em gestações de risco, com fetos inviáveis e/ou vítimas de estupro, a conviverem com o suplício de uma gravidez impossível. Não são raros, na Nicarágua, casos de mulheres que são acometidas de abortos espontâneos e são presas ou investigadas sob acusação de prática de aborto. Segundo a ativista feminista nicaraguense Maria Teresa Blandón:
“Depois da penalização absoluta do aborto, cresceu a porcentagem de mortes obstétricas indiretas. Entre 2012 e 2013, 47% das mortes maternas poderiam ter sido evitadas se a interrupção da gravidez em caso de risco tivesse sido praticada. Nesse período, as estatísticas também revelam causas de morte que não apareciam antes da penalização absoluta, tais como a gravidez ectópica. A muitas mulheres foi negado ou retardado o tratamento contra o câncer, para supostamente favorecer o desenvolvimento do feto. É conhecido, por exemplo, o caso de uma mulher de 27 anos que só iniciou seu tratamento de câncer após a pressão de organismos de direitos humanos nicaraguenses e do Sistema Interamericano de Direitos.”
[…]
“A Nicarágua constitui um claro exemplo de como o Estado pode invocar a proteção da vida como um fetiche, e provocar, com leis injustas, a morte de milhares de mulheres que já vivem em condições de pobreza, discriminação e violência. “
Em 2013, Nina Lakhani, da BBC de El Salvador, faz uma importante reportagem sobre o tema, intitulada “O país onde as mulheres podem ser presas por ter aborto espontâneo” e diz:
“El Salvador tem uma das mais duras leis antiaborto do mundo. E uma consequência disso é que mulheres que sofrem abortos espontâneos se tornam, às vezes, suspeitas de terem induzido um aborto – e podem até ser presas por assassinato.”
Nesta reportagem, Esther Major, especialista da Anistia Internacional em El Salvador, descreve a lei do aborto no país como “cruel e discriminatória” e ainda afirma que “Mulheres e meninas acabam na prisão por não estarem dispostas ou, simplesmente, serem incapazes de levar a gravidez ao fim”.
Monica Pelliccia publica no El Pais, em 2018, a reportagem intitulada “Entre rejas por abortar en Honduras”, na qual descreve a prisão de três mulheres por interrupção da gravidez e afirma: “Em Honduras, os abortos foram durante décadas o segundo caso de internações hospitalares maternas após o parto, e no ano passado houve 14.021 casos”.
A ascensão de governos conservadores possibilitou essa situação trágica para as mulheres desses países e o Brasil ruma para o mesmo caos. Há dúvidas disso? Temos que nos aliar às nossas companheiras feministas desses países na resistência e denúncia, elas estão no caos e nós na beira dele – ainda podemos ser uma esperança nessa guinada direitista na América Latina.
Temos que ficar alertas, pois como as coisas andam no nosso parlamento, podemos chegar a essa proibição num piscar de olhos! Serão mais mulheres negras, pobres e periféricas morrendo, inclusive em caso de abortamento espontâneo! É um absurdo! Acredito que chegou o momento de nossa primavera feminista virar uma combustão e botar fogo neste país!
Simony dos Anjos – Graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestre em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.
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