25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Operação de guerra yanomami passa por estrangular garimpo e confiscar ouro

Maioria do ouro vendido no país em 2021 tinha indício de ilegalidade

Publicado em 01/02/2023 12:01 - Leonardo Sakamoto (UOL), Letycia Bond (Agência Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Henrique Silveira

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Para interromper a catástrofe na Terra Indígena Yanomami, o governo federal planeja executar uma operação de guerra a fim de remover entre 20 e 40 mil garimpeiros (o número certo é desconhecido) e combater quem lucra com a exploração do ouro ilegal. Isso já foi feito 30 anos atrás, mas naquela época o crime organizado tinha menos influência, os garimpeiros contavam com menos tecnologia e as cadeias produtivas eram menos complexas.

Uma ação envolvendo diferentes ministérios, da Justiça e Segurança Pública, Meio Ambiente, Povos Originários, Fazenda e Defesa, entre outros, vêm sendo planejada pelo governo Lula. A coluna conversou com fontes nas quatro primeiras pastas para entender quais medidas estão sendo estudadas neste momento. A referência sempre citada é o processo exitoso da década de 1990.

O processo começa com os serviços de inteligência (os mesmos que falharam durante a invasão de 8 de janeiro) para identificar onde estão as lavras e o seu fluxo logístico. Para ser eficaz, o processo precisa ser centralizado a fim de evitar vazamentos. Lembrando que organizações como o PCC e seus aliados chegaram à Amazônia e atuam com o garimpo, com poder de fogo e infiltrados.

A experiência dos anos 1990 mostra que não adianta simplesmente bombardear as pistas de pouso ilegais de aviões, pois elas são recompostas ou substituídas. Isso sem contar o seu número: um levantamento do jornal New York Times baseado em imagens de satélite, no ano passado, aponta mais de 1,2 mil pistas clandestinas na Amazônia.

Bloquear comida, combustível e comércio de ouro ilegal

Mapeados os garimpos, começa a identificação de um fluxo de mão dupla: de um lado, vão combustível, equipamentos, armas, munições, bebidas alcoólicas e alimentos das vilas e cidades para o garimpo; do outro, vem ouro e outros minerais preciosos para serem vendidos ao Brasil e o mundo.

Atuar junto aos fornecedores de produtos que mantém o garimpo de pé, controlando postos de combustível e fiscalizando mercados, impedindo que eles voem para a floresta funciona como uma espécie de cerco, dificultando que os garimpeiros fiquem onde estão.

Ao mesmo tempo, o governo planeja atacar os lucros da atividade, confiscando produtos que não tenham origem comprovada e processando financiadores, receptadores, intermediários, processadores. O “esquentamento” do ouro ilegal guarda semelhança com aquele que ocorre sobre a madeira ilegal, com notas frias, por exemplo. Portanto, isso inclui buscar a aprovação de leis que possibilitem pesadas multas aos atores dessa cadeia produtiva por comprar e vender ouro de origem ilegal.

A sociedade civil defende ações internacionais envolvendo essa indústria nos moldes de acordos firmados sobre minerais com origem em conflitos armados na África.

Investigações da Repórter Brasil, nos últimos dois anos, mostraram que ouro retirado ilegalmente de áreas indígenas Yanomami e Munduruku é vendido em cidades como Boa Vista, Manaus e Itaituba (PA) e, de lá, segue para o mercado interno e externo. A extensa cadeia produtiva termina em joalherias e empresas de tecnologia como Amazon, Alphabet (Google), Apple e Microsoft.

Fechamento de espaço aéreo e expulsão de garimpeiros usando Exército

Por ar, a Força Aérea Brasileira terá que fechar o espaço aéreo sobre o território Yanomami. Defende-se o uso da ameaça presente na Lei do Abate para aeronaves hostis, ligadas ao narcogarimpo, que não aceitarem pousar para fiscalização. Hoje, a FAB tem disparado tiros de advertência, com rajadas ao lado e à frente de aviões ligados ao tráfico internacional de drogas. Aviões e helicópteros também terão que ser confiscados.

Por terra, o Exército, a Polícia Federal, a Funai, o Ministério Público Federal, Ibama, entre outras instituições, munidos com informações dos serviços de inteligência, terão que ir, garimpo a garimpo, desmobilizando frentes de trabalho e destruindo equipamentos – exatamente o que o então presidente Jair Bolsonaro impediu que fosse feito durante sua gestão.

Nesse momento, garimpeiros terão que ser retirados à força caso não queiram sair. No processo de desintrusão da década de 1990, muitos receberam as autoridades à bala e, dessa vez, não será diferente. Por isso, o contingente de agentes de segurança deve ser consistente e preparado para isso. Há 30 anos, eram espingardas e revólveres 38, agora são fuzis e armamentos capazes de derrubar avião.

O grupo também terá que contar com auditores fiscais do Ministério do Trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho e defensores da Defensoria Pública da União para atuarem junto aos casos de trabalho análogo ao de escravo que vão surgir. O garimpo ilegal é uma das atividades com incidência de escravização no Brasil.

O processo inclui a retomada de pistas de pouso (há locais em que o poder público não pode pousar porque é recebido à bala) e de postos de saúde das mãos de garimpeiros. A retomada, por incrível que pareça, é a parte mais fácil. O difícil será manter técnicos e militares nesses locais para evitar que sejam reocupados pelo crime.

Geração de emprego e renda para garimpeiros

A estrutura à disposição do garimpo ilegal hoje é bem maior que há 30 anos. O estrangulamento da atividade precisa incluir, portanto, operações contra empresas de táxi aéreo que operam para o crime. Outro elemento é a estrutura clandestina de internet usada pelo garimpo para se comunicar, avisando da chegada do poder público, que terá que ser desmantelada.

Empresas de telefonia por satélite também precisarão ser acionadas para ajudar a cortar a comunicação.

Um processo de desintrusão eficaz da Terra Indígena Yanomami, bem como o de outras que foram invadidas pelo garimpo ou por madeireiros ilegais, passa necessariamente pela criação de oportunidades de renda e emprego para os garimpeiros. E essa é uma das partes mais complicadas e pouco discutidas.

Se você não absorve essa mão de obra, ela acaba migrando para outras unidades de conservação e terras indígenas ou voltando com o tempo. Identificar as comunidades que dependem do garimpo ilegal e garantir uma presença forte do Estado, com políticas públicas para gerar renda e possibilitar um mínimo de qualidade de vida é fundamental para estancar o ciclo de pilhagem sobre indígenas e o meio ambiente.

Maioria do ouro vendido no país em 2021 tinha indício de ilegalidade

Nas últimas semanas, as fortes imagens de indígenas yanomami desnutridos e de grandes áreas de florestas devastadas pelo garimpo suscitaram a pergunta: para onde vai o ouro retirado das terras indígenas (TIs)? O Instituto Escolhas, que sistematiza estudos sobre mineração e uso da terra, aponta que, em 2021, 52,8 toneladas de ouro comercializadas no Brasil tinham graves indícios de ilegalidade, o que corresponde a mais da metade (54%) da produção nacional.

Entre 2015 e 2020, o total de ouro com indícios de ilegalidade comercializado no Brasil foi de 229 toneladas.

O instituto destaca, ainda, que quase dois terços do ouro (61%) são extraídos da Amazônia. A suspeita é de que 32 toneladas do metal recolhido na região, em 2021, eram irregulares. Em relatório, a entidade também cita quais os estados de onde saiu o ouro, no ano analisado. Mato Grosso é o principal local de origem (16 toneladas), seguido pelo Pará (13,6 toneladas), Rondônia, Tocantins, Amapá e Amazonas.

Embora se possa identificar a origem do ouro, saber o destino das pepitas é um desafio, conforme ressalta a gerente de Portfólio do Instituto Escolhas, Larissa Rodrigues, que coordenou o estudo. Por isso, o instituto apresentou, junto com o diagnóstico, uma proposta de rastreio do ouro.

A medida envolveria diversos agentes públicos, como a Agência Nacional de Mineração (ANM), a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Banco Central, que é quem fornece informações sobre as instituições financeiras autorizadas a operar com ouro, atualiza e valida essas informações, além de fiscalizar as operações.

A proposta privilegia a tecnologia blockchain, que é uma sequência de registros digitais (blocks) conectados uns aos outros, formando uma corrente (chain). Tal recurso asseguraria que cada registro recebesse uma identificação única, que não pudesse ser alterada, o que garantiria a segurança das informações e, portanto, o rastreio do ouro.

Na avaliação de Larissa, a proposta é inovadora para o setor de ouro, em particular, mas não é exatamente uma novidade, de modo geral, pois mercados de outros produtos já adotam um modelo semelhante. Ademais, sublinha, a digitalização já é algo adotado pela ANM em seus processos.

“Um sistema como esse, digital, de coordenação de órgãos, já existe para a madeira, para a carne, em certa medida. Ou seja, são coisas já aplicadas em outras cadeias, não é algo que seria um esforço que o governo jamais fez. O governo brasileiro já fez esse tipo de sistema para outros produtos. E por quê? Muito pelo que a gente está começando a ver no ouro agora: por pressão de importadores, dos consumidores. Porque esses produtos, antigamente, também tinham muita ilegalidade e, aí, por pressão dos mercados, o governo começou a controlar como não se controlava antes”, diz. “O que a gente tem para o ouro é mais ou menos o que a gente tinha na cadeira do couro, da cana, 20 anos atrás”, acrescenta.

A gerente comenta que, no Brasil, dois dos instrumentos que ajudam a confundir a percepção sobre o setor são o princípio da boa-fé nas negociações e aumento do rigor sobre o registro de transporte do ouro. Quanto à boa-fé, o que ocorre é a facilitação da “lavagem de ouro”, porque é por meio dela que os garimpeiros ou qualquer agente envolvido possa vendê-lo para as distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs), apenas preenchendo um formulário de papel, em que indicam a origem do metal. Isto é, não é feita nenhuma verificação das informações prestadas, o que permite que vendam o ouro ilegal como se fosse proveniente de área regular. Há também conflito de interesses, uma vez que os donos das DTVMs, seus familiares ou sócios podem ter lavras garimpeiras e serem eles mesmos os vendedores do ouro.

Larissa pontuou que, durante o levantamento dos milhares de registros, conseguiu rastrear apenas um dos lotes até o fim. O que geralmente ocorre é que se pode achar, no máximo, o estado ou o país onde o ouro é entregue, de modo que somente com um esforço, como o de jornalistas investigativos, é que se prossegue nas buscas, identificando-se, por exemplo, as joalherias, bancos ou tradings que compram o ouro ilegal. Nesse caso, a equipe do instituto descobriu que o ouro foi levado para a Índia.

“É uma situação de crime perfeito”, afirma Larissa sobre as brechas da mineração de ouro.

Poder público

Perguntada sobre a obtenção de apoio de parlamentares junto à causa, Larissa responde que o Brasil passa por uma “janela de pressão” em torno do tema. O que pode propiciar a aprovação de leis ou mesmo de uma medida provisória para endurecer as regras.

Ao lado de parlamentares, pode haver outras vias de auxílio, na redução dos problemas. Os yanomami estão presentes nos estados do Amazonas e Roraima e na Venezuela. Seu território é imenso, o que pressupõe complexidade em relação às operações de segurança pública e atendimento de saúde.

Da logística dos garimpos ilegais na TI Yanomami fazem parte, entre outros pontos, esquemas de desvio de combustível de aviação e centenas de pistas de pouso clandestinas. Outro elemento imprescindível é a comunicação, o que faz com que garimpeiros precisem arranjar rádios e também ter acesso à internet.

Ciente de tal organização, no início de junho de 2022, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso exigiu que a União apresentasse um plano detalhado de ações de desmantelamento dos acampamentos dos garimpeiros presentes na TI. Barroso pediu explicações à Polícia Federal e também à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sobre as empresas que fornecem internet aos garimpos ou como esse acesso está ocorrendo. A Agência Nacional de Petróleo (ANP), por sua vez, foi chamada pela Corte para listar quais distribuidoras e revendedoras de combustível de aviação que atendem a região.

O presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami, entende que um aliado fundamental na defesa dos direitos de seu povo tem sido o Ministério Público Federal (MPF). Ele conta que garimpeiros circulam sem esboçar nenhum temor, com armas como submetralhadoras.

“A gente vive nas nossas comunidades, nas nossas casas, com medo, porque os garimpeiros ameaçam as lideranças, dizendo que essa terra tem dono, que quem manda aqui é [Jair] Bolsonaro”, relata.

No último dia 21, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, antecipou, em sua conta no Twitter, que oficiaria a Polícia Federal para apurar os “fortes indícios de genocídio e de outros crimes” relacionados “aos sofrimentos criminosos impostos aos yanomami”. Quatro dia depois, a corporação instaurou inquérito para apurar a possível prática de genocídio, omissão de socorro, crimes ambientais, além de outros atos ilícitos contra o povo yanomami.


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