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Eleição ocorre em 1º de outubro em todo o país; atuação focada em pautas de costumes em detrimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente preocupa especialista
Publicado em 21/09/2023 10:19 - Catarina Duarte – Ponte
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A eleição unificada para conselheiros tutelares ocorre no próximo dia 1º de outubro em todo o país. Diferente dos pleitos que elegem presidente, prefeitos, governadores e parlamentares, em que o voto é obrigatório, essa votação é facultativa e o processo tem menos holofotes. Cruciais para o combate a violações e para o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os cargos de conselheiros têm sido usados como palanque eleitoral ou para atuação focada em pautas de costume em detrimento do que determina o ECA. Esse avanço preocupa quem atua na área pelo risco de violações.
É o ECA, criado em 1990, que dispõe sobre regras a respeito dos Conselhos Tutelares. Segundo o texto, os Conselhos são órgãos autônomos, não jurisdicionais (ou seja, não podem estabelecer sanções para forçar o cumprimento de decisões) e são encarregados de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes.
A legislação estabelece ainda que cada município tenha ao menos um Conselho, que deve ser composto por cinco membros escolhidos pela população. Os mandatos têm duração de quatro anos com possibilidade de reeleição, assim como os de cargos políticos.
De forma genérica, o ECA descreve que para se candidatar ao cargo de conselheiro é necessária comprovação de idoneidade moral, ter mais de 21 anos e morar no município onde deseja ser eleito.
O texto dá aos municípios decisões sobre horário de funcionamento e ao salário pago aos conselheiros. Em 2012, foi aprovada a lei 12.969, que garantiu acesso a mais direitos trabalhistas à classe — como cobertura previdenciária, férias, licença maternidade e paternidade e gratificação natalina.
Além do ECA, o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda) também estabelece na resolução nº 231/2022 parâmetros para criação e funcionamento desses órgãos [veja íntegra do texto a seguir].
Leia íntegra da resolução do Conandal
A diretriz orienta, por exemplo, que seja fornecida educação continuada aos membros dos Conselhos e que o município forneça equipamentos necessários para o trabalho como internet, computadores e telefone. Já em relação às eleições, o Conanda orienta que não sejam admitidas chapa, mas sim candidaturas individuais.
Há semelhanças entre o que autoriza o Conanda e a legislação eleitoral. Por exemplo, é permitido que ocorram debates e entrevistas com os candidatos. Também é possível propaganda eleitoral com santinhos (restritos neste caso a divulgação do nome, número, foto e currículo).
As proibições da campanha também são parecidas com algumas determinações já conhecidas nos pleitos gerais e municipais. Doações e entregas de presentes a eleitores são passíveis de punição, assim como o uso de estrutura de partidos políticos ou o financiamento dessas campanhas.
Também é vedado o abuso religioso, entendido aqui como o financiamento de campanhas por entidades religiosas e a veiculação de propaganda dos candidatos em templos ou espaços de culto.
Além do ECA e a resolução do Conanda, cada município, por meio dos conselhos municipais de direitos de crianças e adolescentes, estabelece como vai ser a eleição a partir de regras próprias lançadas geralmente em editais. Esses documentos têm como base a legislação municipal que trata sobre o tema.
A Ponte analisou o que pedem as leis de capitais de cada uma das regiões do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Rio Grande do Sul, Manaus e Goiânia). Há diferenças como o pedido de curso de informática e que, para se candidatar, seja necessário primeiro ser aprovado em um teste de conhecimentos sobre o ECA. Confira o que pedem as legislações dos estados citados:
São Paulo (lei nº 17.827/2022)
Rio de Janeiro (lei nº 3.282/2001)
Salvador (lei nº 6.266/2003)
Manaus (lei nº 1.242/2008)
Rio Grande do Sul (lei nº 6.873/2010)
Goiânia (lei nº 8.483/2006)
Esequias Marcelino da Silva Filho, representante da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de São Paulo, explica que, além da legislação, os editais de cada eleição podem exigir mais critérios aos candidatos.
No caso de São Paulo, por exemplo, em que a lei não pede comprovação de experiência prévia na área de atendimento a crianças e adolescentes, o edital faz essa exigência. O município conta com 62 Conselhos Tutelares.
“Pelo edital nós não pedimos prova [de conhecimentos sobre o ECA], mas pelo menos nós inserimos no próprio edital a questão da experiência porque estamos trabalhando com vidas, né? É essencial dentro desse trabalho esse tipo de experiência”, comenta Esequias.
Ele conta que há uma adaptação dos editais com o passar dos anos, e que os textos vão sendo revisados e alterados conforme a necessidade. Uma discussão que não está presente para as regras desta eleição, mas já é alvo de debate em São Paulo é a mudança para um voto único, já que no município é possível votar em até cinco candidatos.
“Já há uma recomendação do Conanda para voto único aqui em São Paulo e em quatro pleitos passados foi assim, mas agora voltou a poder votar em até cinco candidatos”, comenta.
Fazendo um raio-x do trabalho dos Conselhos em São Paulo, Esequias diz que as principais demandas são atender crianças e adolescentes que não conseguem vagas em escolas e creches e que o conselheiro atua como um sinalizador de problemas nas comunidades.
“Nas comunidades em que muitas vezes as políticas e equipamentos públicos são essenciais, o Conselho serve como um sinalizador, um órgão que dá leitura de cenário daquela região”, defende.
Aparelhamento político e religioso
Com função tão importante para defesa de direitos, especialistas têm se preocupado com o aparelhamento político e religioso desses órgãos ao longo dos anos. O avanço de candidatos ligados a partidos políticos ou a frentes religiosas acaba distanciando e conturbando a atuação efetiva dos conselheiros, explica Ariel de Castro Alves.
´É importante termos uma boa representatividade nos Conselhos Tutelares, que as pessoas realmente votem em pessoas que tenham currículo, comprometimento, que sejam defensores dos direitos humanos, contra a redução da maioridade penal, que sejam defensores do cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, contra a violência policial, a favor dos direitos humanos, contra o racismo e anti-racistas, pessoas comprometidas com as pautas de direitos humanos previstos na Constituição e nas várias legislações nacionais”, diz.
Advogado, especialista em direitos da infância e juventude, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-presidente do Conanda, ele argumenta que a população precisa entender que o papel do conselheiro tutelar é fiscalizar as políticas públicas, requisitar os serviços e fazer controle social.
“É importante que os conselheiros tenham essa compreensão de que eles estão lá para cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente, para proteger as crianças e os adolescentes e não para transformarem as sedes dos Conselhos em extensão de igrejas, partidos políticos, mandatos parlamentares ou estarem a serviço de qualquer tipo de liderança política”, defende Ariel.
Atuações controversas de conselheiros tutelares chamaram atenção nos últimos anos. Em 2020, a Ponte contou quando a manicure Kate Ane Belintani teve a guarda da filha retirada pela Justiça em razão de um ritual de candomblé. O caso ocorreu em Araçatuba, no interior de São Paulo.
O Conselho Tutelar acolheu uma denúncia de maus-tratos e abuso sexual feita pela avó da criança, que é evangélica. Mesmo com a perícia negando qualquer abuso, a mãe teve a guarda retirada em uma decisão vista pela manicure como de intolerância religiosa.
Kate só conseguiu retomar a guarda da filha 17 dias após a primeira decisão, quando um juiz decidiu que não havia nos autos nada que comprovasse abuso.
Ariel de Castro Alves vê com preocupação a utilização dos Conselhos com visões ligadas a religiões. Ele defende que o trabalho do conselheiro tem que visar o ECA.
“Muitas vezes as igrejas querem dominar esses espaços e impor também as suas pautas conservadoras, que podem também gerar violações de direitos de crianças e adolescentes LGBTs ou que os pais são seguidores de religiões de matriz africana. Também existe essa preocupação de que o Conselho tem que atuar independente de religiões, partidos políticos, porque o foco é a proteção das crianças e adolescentes.”
Ele avalia que é necessária uma construção de legislação mais completa e que barre o avanço de candidaturas pouco comprometidas.
“Os instrumentos legais que existem hoje acabam não impedindo essas candidaturas, muitas vezes de pessoas que não são as mais adequadas, mais comprometidas, gabaritadas e que possuem maior currículo e compromisso com a defesa dos direitos da criança e do adolescente. Nós precisamos também aperfeiçoar a legislação alterando o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente para termos uma uniformização desses requisitos cada vez mais aprimorando essa forma de escolha dos conselheiros e conselheiras tutelares no Brasil todo”, fala.
No Senado tramita o projeto de lei nº 662/2019 que trata da questão dos Conselhos, mas com foco na garantia de um piso nacional para a categoria. Apresentado pelo senador Weverton (PDT-MA), o PL está parado desde fevereiro na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) sem relatoria.
Há ainda outro projeto no Senado que trata de questões orçamentárias ligadas aos Conselhos Tutelares (projeto de lei complementar n° 133/2021, que também segue em tramitação.
Já na Câmara dos Deputados, o PL 1526/2021 propõe a vinculação dos Conselhos Tutelares ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. A ideia é que os municípios sejam responsáveis pelo espaço físico dos Conselhos e que passe a ser exigido ensino superior aos candidatos.
O texto do deputado Capitão Fábio Abreu (PL-PI) está em análise pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) desde junho.
Ex-presidente do Conanda, Ariel defende que a eleição dos conselheiros tutelares tenha mais visibilidade por parte não só dos municípios, mas do governo federal, para que a população saiba como é o processo de escolha.
“Não vemos um engajamento do presidente, dos ministros com esse processo, dos parlamentares do Congresso Nacional para convocar a sociedade brasileira para participar já que o voto não é obrigatório, é facultativo. As pessoas acabam sendo mais organizadas em setores que já estão pré-organizados como igrejas, partidos, associações de moradores, entre outros”, pontua.
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