Brasil
Estudo escancara ignorância do presidente sobre a fome no Brasil. Leia a íntegra
Publicado em 01/09/2022 11:16 - Josias de Souza e Leonardo Sakamoto (UOL), Edson Sardinha e Vanessa Lippelt (Congresso em Foco) – Edição Semana On
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Bolsonaro revela um certo desapreço pelos brasileiros que carregam um espaço baldio entre o esôfago e o duodeno. “Fome no Brasil? Fome pra valer? Não existe da forma como é falado”, declarou o presidente ao Ironberg Podcast. Estufando o peito como uma segunda barriga, o capitão falou como se fizesse uma dieta mental. “Se a gente for em qualquer padaria, aqui, não tem ninguém ali pedindo pra você comprar um pão pra ele. Isso não existe!”
Divulgado em junho, o segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil revelou que 33,1 milhões de brasileiros vivem em situação de fome no país. No final de 2020, eram 19,1 milhões. Pesquisa feita pelo Datafolha também em junho revelou que 1 em cada 4 entrevistados disse que a quantidade de comida disponível em casa era inferior ao necessário para alimentar sua família.
O pior tipo de cego é o presidente que não consegue ouvir as lamúrias da fila do osso, os queixumes à beira das caçambas de lixo dos supermercados e restaurantes. Há uma desconexão entre os objetivos de Bolsonaro e a meta dos famintos.
Em campanha, o presidente esgrime o Auxílio Brasil para tentar demonstrar que tem coração. Os famélicos não sabem o que é coração. Para eles, o corpo humano é 100% feito de vísceras. O plano de Bolsonaro é obter a reeleição. O projeto de quem passa fome arranjar comida.
Bolsonaro quer mais quatro anos de Poder. O mundo do faminto cabe no intervalo entre uma refeição e outra. O relógio do estômago vazio só tem tempo para certas horas: a hora do café, a hora do almoço, a hora do jantar… O pragmatismo estomacal é implacável.
Bolsonaro diz que cumpre na Presidência uma missão divina. Vivaldino, não pede a Deus que seja feita a Sua vontade. Exige que o Todo-Poderoso aprove a sua vontade de permanecer no Planalto. O brasileiro faminto sonha com a morte. Pede a Deus que coloque no seu céu uma cozinha como a do Alvorada. Deseja uma fome de presidente, do tipo que pode ser saciada abrindo a geladeira.
Há na alma de Bolsonaro uma inusitada mistura de ignorância pessoal com inanição mental. Essa combinação produziu o negacionismo da fome. Algo que magnifica a insaciável subnutrição mental do presidente da República.
Padre Júlio contesta Bolsonaro: ‘Quem diz que não há fome vive numa bolha’
“Quem diz que não há fome é porque está vivendo em uma bolha, é insensível ou faz isso como ação política para minimizar os problemas.” A declaração foi dada ao jornalista Leonardo Sakamoto (UOL) pelo padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo.
Júlio Lancelotti explica que uma parte da população mais pobre simplesmente não consegue acessar o benefício por falta de documentação e de estrutura. “Tenho perguntado diariamente às pessoas se elas estão com o Auxílio. Muitos não porque faltam documentos. Por exemplo, para conseguir que a certidão de nascimento venha de sua cidade natal, às vezes há um custo que nem sempre os órgãos públicos bancam. Outras vezes, a pessoa não tem acesso a um smartphone para fazer seu cadastro”, explica.
Mais do que isso, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua reforça que o benefício, mesmo com o aumento para R$ 600, não cobre todas as necessidades de uma família.
“O benefício é insuficiente. Primeiro, porque os gastos são muitos, com aluguel, transporte, alimentação. Basta comparar o benefício com o custo da cesta básica. Dizer que o benefício supera a fome e a necessidade nutricional não é verdade”, afirma.
De acordo com o levantamento mensal do custo da cesta básica do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o preço médio da cesta básica em São Paulo é de R$ 760,45, tendo subido 18,73% nos últimos 12 meses por conta da inflação.
O presidente Jair Bolsonaro conta com as piores taxas de intenção de voto entre os mais pobres, que são mais vulneráveis à alta da inflação e à queda na renda média.
De acordo com o último levantamento do Datafolha, Lula tem 55% e, Bolsonaro, 23%, entre as famílias que ganham até dois salários mínimos por mês. Para tentar reverter isso, ele propôs o aumento temporário no Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 até dezembro.
No ano passado, cenas de pessoas disputando ossos e carcaças bovinas no Rio de Janeiro e revirando a caçamba de um caminhão de lixo em Fortaleza ficaram célebres como registros da fome.
Após o caso do Ceará viralizar, o MST junto com outros movimentos populares organizaram uma busca pelas famílias que reviravam o lixo e doaram cestas básicas com produtos de assentamentos rurais. Ao todo, 20 famílias foram beneficiadas.
“Quando o caminhão chega, a gente tem que ser muito ligeira para pegar. Eles jogam, a gente tem quem correr para dentro da caçamba, tem que ser rápido. Os garis não podem dar na nossa mão, porque é o trabalho deles”, explicou, em um depoimento em vídeo, uma das mulheres que aparece revirando o lixo.
“O pão de cada dia quem me dá é o lixo. Todo dia, meus filhos e eu vamos para o lixo para comer.”
‘Independente da linha ideológica, todo mundo vê a fome’
Na entrevista ao podcast, o presidente ainda disse que seria criticado porque as pessoas não conhecem a realidade.
“Se eu falar para vocês não tem fome no Brasil, amanhã o pessoal me esculacha na imprensa. Mas eles não sabem a realidade se existe gente faminta no Brasil ou não. O que a gente pode dizer, se for em qualquer padaria aqui, não tem ninguém ali pedindo para você comprar um pão para ele, isso não existe”, afirmou.
Júlio Lancellotti avalia que a série de declarações de Bolsonaro causou uma forte repercussão. “A fome não é um dia. Diariamente, você precisa comer. Independente da linha ideológica que você tenha, todo mundo vê a fome. Você pode entrar em negação do que viu, mas todo mundo vê a fome”, conclui.
Em tempo: Coincidentemente, nesta sexta (26), este colunista foi comprar pão num bairro de classe média em São Paulo e uma pessoa em situação de rua disse que estava com fome, que tinha vergonha de pedir, que nem sempre esteve naquela situação. Foi a terceira vez que isso aconteceu, em uma semana.
Eu vejo todos os dias pic.twitter.com/USpi5bOWVV
— JULIO LANCELLOTTI (@pejulio) August 26, 2022
Estudo escancara ignorância de Bolsonaro sobre a fome no Brasil
A declaração do presidente Jair Bolsonaro de que há exagero no levantamento que aponta a existência de 33 milhões de brasileiros famintos no Brasil foi alvo de críticas nas redes sociais e voltou a jogar luzes sobre o estudo contestado pelo candidato à reeleição. Nem mesmo o crescimento no número de pedintes, de pessoas em situação de rua ou vasculhando o lixo atrás de comida sensibilizou o presidente, para quem “fome no Brasil não existe da forma como é falado”.
A realidade ignorada por Bolsonaro foi captada pelo estudo sobre insegurança alimentar realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi. A iniciativa, batizada de II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), conta com o apoio das organizações não-governamentais Ação da Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e do Sesc.
Insegurança alimentar
No Brasil atual, apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação – ou seja, estão em condição de segurança alimentar. Os outros seis lares se dividem numa escala, que vai dos que permanecem preocupados com a possibilidade de não ter alimentos no futuro até os que já passam fome. O número total de pessoas que não têm o que comer em casa subiu de 19,1 milhões, no final de 2020, para 33 milhões, em abril de 2022, com a pandemia e o abandono de políticas sociais e o aumento da desigualdade social no país, conforme a pesquisa. A fome dobrou nas famílias com crianças de até dez anos nesse período.
A edição recente do relatório mostra que mais da metade – 58,7%, da população brasileira convive com a fome em algum grau – leve, moderado ou grave fome. O país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. Foram feitas entrevistas em 12.745 lares brasileiros, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. O nível de insegurança alimentar foi medido pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), metodologia também utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Perfil dos famintos
A fome tem lugar, gênero e cor. As regiões Norte e Nordeste – justamente aquelas onde Bolsonaro patina nas pesquisas – são mais afetadas. No Nordeste, 21% das famílias vivem em insegurança alimentar; no Norte, 25,7%. O menor percentual é registrado no Sul, 10%. As mulheres são as mais impactadas: 64% dos lares onde falta comida são comandados por mulheres. Brasileiros pretos e pardos constituem 65% do contingente em insegurança alimentar.
A fome é maior onde o chefe de família está desempregado (36,1%) ou tem emprego informal (21,1%) . Nos domicílios em que o chefe da família trabalha com carteira assinada, a segurança alimentar chega a mais da metade (53,8%).
Desde a pandemia, ficou visível o crescimento da população em situação de rua, de pedintes, de pessoas que reviram o lixo em busca de restos de comida em todo o país. Estabelecimentos comerciais passaram a vender produtos como soro de leite, feijão partido, arroz quebrado, ossos, carcaça de peixe e pele de frango.
Paradoxalmente, a fome cresce no campo. No país do agronegócio, até quem produz alimento está pagando um preço alto: a fome atingiu 21,8% dos lares de agricultores familiares e pequenos produtores. A pobreza das populações rurais associada ao desmonte das políticas de apoio às populações do campo, da floresta e das águas, seguem impondo escassez.
Mapa da fome
A Organização das Nações Unidas (ONU) recolocou este ano o país no mapa mundial da fome. Um país entra nessa classificação quando mais de 2,5% da população enfrentam falta crônica de alimentos. No Brasil, a fome crônica atingiu 4,1% e, pelo levantamento, a situação no país é mais grave do que a média global.
Entre os problemas que fizeram a fome aumentar no Brasil, os especialistas apontam o aumento das desigualdades, a disparada do preço dos produtos alimentícios, a dificuldade de produção de alimentos e a redução de políticas públicas nos últimos anos.
“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que, entre 2004 e 2013, reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros. As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes, diante de um cenário de alta da inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulnerabilizados”, avalia Renato Maluf, Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).
Auxílio Brasil
Bolsonaro minimizou a fome no país em duas entrevistas nessa sexta-feira. “Se eu falar para você ‘não tem fome no Brasil’, como tem gente da imprensa me assistindo aqui, amanhã o pessoal me esculacha na imprensa. Eles não sabem a realidade se existe gente faminta no Brasil ou não. O que a gente pode dizer, se for em qualquer padaria aqui não tem gente pedindo para comprar um pão para ele. Eu falando isso estou perdendo votos, mas a verdade você não pode deixar de dizer e temos um programa para isso”, disse.
A declaração foi dada em entrevista ao podcast de fisiculturistas Ironberg Podcast. O presidente alega que o governo tomou todas as providências para minimizar o quadro, com o Auxílio Brasil, programa social do governo originário do Bolsa Família, que é pago a 20 milhões de famílias pobres. Mais cedo, em entrevista à Jovem Pan, Bolsonaro havia dito que não havia pedintes nas portas das padarias. “Fome no Brasil não existe da forma como é falado. O que é extrema pobreza? É ganhar até US$ 1,9 dólares (sic), isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Quem por ventura está no mapa da fome pode se cadastrar e vai receber, não tem fila o Auxílio Brasil”, declarou.
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