14/10/2024 - Edição 550

Brasil

Mortes por arma de fogo disparam em meio a queda de homicídios no país

Publicado em 15/07/2022 12:00 -

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Na tarde do dia 9 de março, o bacharel em direito José Benedito Alves Carvalho, 49, acompanhava a esposa, a advogada Maricélia Schlemper, em uma audiência de conciliação de um divórcio litigioso. No estacionamento do Fórum de Maceió, o ex-marido de sua cliente os esperava para matá-la.

Armado com um revólver, o italiano Pasquale Palmieri disparou quatro vezes. A arma falhou seguidamente, menos quando foi apontada para o peito de Benedito. Ele morreu pouco depois no HGE (Hospital Geral do Estado). Julgado em maio, Palmieri foi condenado a 36 anos de prisão pelo crime.

Maricélia conta que, primeiro, Palmieri apontou a arma para a cabeça dela, mas o revólver falhou. Segundos depois, pôs a arma na testa dela e atirou. "Ainda hoje sinto o frio do cano, mas por milagre a arma pinou [falhou] de novo", diz a viúva.

Em seguida, Benedito viu que o assassino ia disparar de novo e empurrou Maricélia. "Foi quando ele recebeu um tiro na mão. Tiro que era para mim. Logo em seguida, o italiano, totalmente enfurecido, colocou a arma no peito do Bill e disparou à queima-roupa", completa.

Em 2021, na contramão da queda de homicídios no país, cresceu 24% o número de assassinatos por revólveres, pistolas e garruchas —oficialmente classificadas como armas de fogo de mão, que se diferenciam das de maior calibre como espingardas ou fuzis, por exemplo. Os dados foram obtidos pela coluna no SIM (Sistema de Informação de Mortalidade), do Ministério da Saúde.

Segundo o sistema, em 2021 o país teve uma redução de 13% no total de homicídios: no ano passado, foram 41.354 assassinatos classificados como agressão, contra 47.680 em 2020.

No mesmo período, porém, o número de mortos por armas de fogo de mão cresceu 24,5%: de 3.118 (2020) para 3.878 (2021). Todas as mortes por outros meios de agressão diminuíram.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que os dados reforçam a tese de que a queda no número de homicídios no país poderia ser maior caso o Brasil não tivesse adotado uma política armamentista nos últimos anos.

"É importante e preocupante esse dado. O que estamos vendo é um indício de que as armas não são usadas até um desavença em que o dito 'cidadão de bem' aperta o gatilho porque perdeu a cabeça", diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.

Segundo ela, já há um consenso na literatura de estudos pelo mundo sobre violência de que mais armas circulando resultam em um aumento de violência —nunca o contrário.

"Esse aumento de mortes mostra também um indício relevante de que a gente vai ter um recrudescimento da violência por arma de fogo", afirma.

No governo hoje não há políticas públicas estruturadas e sólidas para a segurança pública. Temos apenas coisas pontuais, alguns esforços isolados. A grande política foi facilitar o acesso às armas. Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz

Mais mortes em locais públicos e em casa

Um outro dado do SIM que chama atenção é onde foram praticados os homicídios com as armas de fogo de mão. Em 2021, eles cresceram especialmente em locais públicos, como no caso de Benedito, atingido na entrada do Fórum de Maceió.

Segundo os dados coletados pela coluna, o número de mortes em instituições públicas foi de 75 para 116.

Na morte de Benedito, o assassino usou um revólver com numeração raspada —o que indica que ele foi comprado legalmente e acabou caindo nas mãos de criminosos para ser vendido no mercado negro. A raspagem impede que ele tenha o dono original rastreado.

"A permissão para ter uma arma de fogo deveria ter como requisito essencial um treinamento muito bem feito", diz a viúva Maricélia Schlemper.

O pior é que, hoje em dia, não faltam meios ilícitos para alguém adquirir armas de fogo. O assassino, por exemplo, comprou a arma de forma ilegal –o que, inclusive, aumentou a pena dele. Maricélia Schlemper, advogada e viúva de vítima de arma de fogo de mão

Negacionismo e risco

Para Daniel Cerqueira, pesquisador e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a atual política armamentista do Brasil é "irracional, negacionista e totalmente irresponsável".

"Eu antevejo uma tragédia para o país. Não só esse dado de mortes de 2021 mostra que isso já pode estar ocorrendo, mas vejo como vai ocorrer nas próximas décadas, com essa quantidade de enorme de armas", afirma.

Ele cita armas adquiridas no mercado legal que vão parar na ilegalidade e municiam os criminosos organizados e desorganizados.

"A CPI das armas de fogo no Rio, há alguns uns anos, mostrou que 86% das armas apreendidas começaram na legalidade e foram desviadas. Apenas de empresas de segurança foram 18 mil roubadas ou extraviadas ou roubadas. Muitas armas compradas por CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] são desviadas para o crime. Estamos vendo isso pipocando no país, é uma política que ameaça toda a sociedade", diz.

Segundo ele, no Brasil, 40% dos assassinatos são crimes interpessoais, ou seja, ocorrem após briga no trânsito, com vizinho ou mesmo dentro de casa.

"Várias pesquisas indicam que uma arma dentro de casa aumenta em dez vezes a chance de algum morador morrer assassinado, por suicídio ou mesmo em um acidente com criança. Ou seja, uma arma conspira contra a insegurança do lar e da vizinhança", afirma.

Uma arma com boa manutenção pode circular durante décadas. É possível que daqui a três décadas, um cidadão de bem venha a morrer assassinado por uma arma que foi vendida e entrou em circulação hoje. Daniel Cerqueira, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Tensão maior no campo

Com mais armas, a tensão também chega ao campo. Em Arari (MA), no ano passado, duas pessoas foram mortas por tiros em áreas de conflitos agrários: Antônio Gonçalves Diniz, 70, e João de Deus Rodrigues, 51.

Antônio foi morto dentro de uma oficina mecânica, no centro da cidade. "Ele aguardava a lavagem da sua moto, quando foi alvejado na cabeça por um dos pistoleiros que, em seguida, fugiram numa moto", conta Geise Praseres, camponesa e militante dos Fóruns e Redes de Cidadania.

Ela explica que a violência sempre foi uma prática usada para intimidar povos vulneráveis no campo. Entretanto, ela diz que o acesso facilitado às armas potencializou os ataques e assassinatos de lideranças camponesas na região. Somente no Maranhão foram oito assassinatos no ano passado.

As pesquisas mostram que a venda de armas no Brasil cresceu, mas essas armas só estão nas mãos de fazendeiros –que as utilizam para ampliar os grupos de jagunços no campo. Alguns deles, inclusive, são policiais e têm acesso facilitado a armas. Geise Praseres, camponesa e militante dos Fóruns e Redes de Cidadania

Mais armas desde 2019

A escalada do armamento na mão de civis tem sido uma tônica do governo Jair Bolsonaro, que defende abertamente que as pessoas tenham o direito de estar armadas. O número de armas registradas por ano pelo Exército para CACs saltou 24 vezes em seis anos, com 257 mil registros em 2021.

Ainda em 2021, a PF (Polícia Federal) registrou 188 mil novas armas no Sinarm (Sistema Nacional de Armas), sendo 143 mil destinadas a cidadãos que pediram posse e porte para autodefesa.

Neste governo, houve uma facilidade no acesso a armas e munição para os CACs. Desde 2019, ao menos 14 portarias e dez decretos foram publicados, com novas regras para aquisição de armas e munições para os CACs.

Em reportagem recente, a Folha informou que o Exército não sabe informar detalhes sobre o acervo de armas para especificar, por exemplo, quantas são de mão ou quantas são de maior calibre.

A coluna procurou o Ministério da Justiça e Segurança Pública para que explicasse as políticas públicas que adota para controle no uso e redução da mortalidade por armas de fogo, mas não recebeu resposta.


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