11/09/2024 - Edição 550

Brasil

Estudo estima 17 mil mortes por tratamento de covid-19 com cloroquina: remédio pode ter aumentado em 11% mortes de internados

Aliado do bolsonarismo na divulgação do medicamento, CFM agora ataca vacinação de crianças contra a Covid

Publicado em 12/01/2024 1:15 - Vinícius Lisboa (Agência Brasil), Sushmitha Ramakrishnan (DW) – Edição Semana On

Divulgação Carolina Antunes/PR

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O uso, sem previsão na bula (off label), de hidroxicloroquina para tratar pacientes hospitalizados com covid-19 na primeira onda da pandemia pode estar relacionado a cerca de 17 mil mortes em seis países: Bélgica, França, Itália, Espanha, Estados Unidos e Turquia. A maior parte das mortes estimadas, cerca de 7,5 mil, foi nos Estados Unidos.

A estimativa foi feita por pesquisadores da França e do Canadá em um estudo que reúne dados coletados com diferentes metodologias, e teve as conclusões publicadas com ressalvas neste ano no periódico científico Biomedicine & Pharmacotherapy.

Os cientistas estimaram ainda que o uso do medicamento pode ser associado a um aumento de 11% na taxa de mortalidade de pacientes hospitalizados.

Os autores afirmam que, apesar das limitações do estudo e de suas imprecisões, ele ilustra o perigo de, no manejo de futuras emergências, mudar a recomendação de um medicamento com base em evidências fracas. O número de mortes estimado, de 16.990, pode estar tanto sub como superestimado, mas certamente seria muito maior se houvesse dados disponíveis para mais países, ponderam.

“Esse estudo ilustra as limitações de extrapolar tratamentos de condições crônicas para condições agudas sem dados precisos, e a necessidade de produzir rapidamente evidência de alto nível em testes clínicos randomizados para doenças emergentes”, diz o artigo.

Originalmente, a hidroxicloroquina é indicada para o tratamento de doenças como malária, lúpus e artrite, mas, durante a pandemia de covid-19, seu uso foi defendido por autoridades políticas, como ex-presidente Jair Bolsonaro, mesmo depois de evidências científicas mostrarem ineficácia e riscos.

Já nos primeiros meses da pandemia, a Organização Mundial da Saúde suspendeu os testes para tratamento da covid-19 com a hidroxicloroquina, para preservar a segurança dos pacientes e por reconhecer sua ineficácia.

O estudo publicado neste ano pelos pesquisadores franceses e canadenses reforça que o uso prolongado do medicamento aumenta o risco de problemas cardiovasculares. Os pesquisadores ainda citam um estudo de colegas brasileiros que relaciona a hidroxicloroquina a efeitos colaterais no coração e no fígado.

A lição do estudo

“O que a gente tem a perder? Tomem”, incentivou na época o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump, saudando a substância como “cura milagrosa”. Diversos líderes mundiais seguiram o exemplo – inclusive seu homólogo brasileiro Jair Bolsonaro –, catapultando as vendas globais de hidroxicloroquina, que milhões estocaram para uso pessoal. Alguns países aconselharam os funcionários da saúde na linha de frente a tomá-la diariamente como medida preventiva.

“A HCQ é basicamente um remédio antimalária que também reduz a reação imunitária, em especial quando é exagerada. Por isso ela foi administrada nos casos iniciais de covid-19, para reprimir a tempestade de citocina”, explica o especialista em saúde pública Subarna Goswami. Em seu país, a Índia, o medicamento foi distribuído oficialmente aos sanitaristas para fins profiláticos.

A esperança cega implodiu pouco depois, quando o departamento americano de saúde FDA advertiu contra a hidroxicloroquina, e a OMS suspendeu o tratamento anticovid com ela, alegando ausência de resultados positivos. Desde então, a comunidade científica tem tentado determinar se o medicamento era simplesmente ineficaz contra o coronavírus ou letal.

Hidroxicloroquina: letal ou só ineficaz?

Durante a pandemia, em diversas análises os consumidores de hidroxicloroquina queixaram-se reiteradamente de desconforto cardíaco ou outros efeitos colaterais digestivos. No entanto o tamanho relativamente pequeno das amostras dificultava identificar a origem exata dos sintomas.

Em 2020, uma pesquisa com 96 mil pacientes detectou inicialmente maior tendência a arritmias cardíacas entre os tratados com o medicamento antimalária. Sua publicação na revista especializada The Lancet resultou na suspensão dos testes globais com a substância para o tratamento da covid. No entanto o estudo foi logo retratado devido a inconsistências nos dados.

Agora, o artigo publicado na edição de janeiro-fevereiro de 2024 da Biomedicine & Pharmacotherapy associa a hidroxicloroquina a 17 mil mortes. Trata-se de uma resenha sistemática de análises realizadas na Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Turquia.

Por ser a síntese de várias pesquisas, essa forma de estudo científico costuma ser considerada mais confiável, proporcionando a vantagem dos grandes números. Por outro lado, também implica a fusão de dados de pesquisas empregando metodologias variadas, por vezes conflitantes.

Lars Hemkens, cujo estudo de 2021 foi uma das fontes dos dados da resenha, confirmou ser possível chegar-se a resultados díspares, dependendo da metodologia empregada. “A história da medicina está cheia de exemplos de tratamentos aplicados com as melhores intenções, que eram promissores nos estudos observacionais. Mas, ao serem avaliados em testes aleatorizados, um quadro diferente emergiu.”

Além disso, não é possível coletar indícios a posteriori, de pacientes agora mortos. “Há toda a possibilidade de um ou mais fatores de confusão imprevisíveis terem contribuído para a taxa de mortalidade excessiva entre os que tomaram HCQ”, estima o especialista indiano Goswami, comentando a resenha de 2024.

Da malária ao tratamento de doenças anti-imunes

A hidroxicloroquina é usada contra a malária há décadas. Geralmente ingerida por períodos breves, ela reduz dores e inflamação. Nos últimos anos, porém, tem sido usada em primeira linha no tratamento de doenças autoimunes, como o lúpus, onde suas propriedades anti-inflamatórias reduzem a necessidade de altas doses de outros medicamentos.

Tipicamente, os pacientes tomam pequenas doses de hidroxicloroquina por prazos longos, com frequência pelo resto da vida. A maioria não nota efeitos colaterais, mas, após ministração prolongada, também se registram dores estomacais, problemas digestivos, como náusea ou diarreia, e pele seca ou danos à vista.

A substância é considerada segura para quem apresenta reação imunitária elevada, mas “ministrada preventivamente para um grande número de indivíduos saudáveis, o risco e os efeitos podem ser diferentes”, ressalva Soumya Swaminathan.

O sistema de saúde nunca vira nada como a pandemia de covid-19, mas é provável que enfrente situações análogas no futuro, ressalta: “A maior lição para nós é aprimorar nossa prontidão para pesquisas. Quando a necessidade desponta, devemos estar aptas a submeter alguns remédios a testes humanos expressos, sem um entrave acadêmico.”

A ex-diretora científica da OMS enfatizou que é função dos sistemas sanitários procurar abordagens baseadas em indícios concretos, mesmo durante o pânico, e cultivar um ambiente de pesquisas robusto, capaz de fornecer resultados rápidos.

Entidade médica critica CFM por equiparar crenças pessoais à ciência

Cúmplice de jair Bolsonaro na disseminação da cloroquina no auge da pandemia, o Conselho Federal de Medicina (CFM) – dominado por bolsonaristas – volta a ser questionado por desdenhar da ciência.

A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) divulgou na quinta-feira (11) posicionamento em que critica uma pesquisa conduzida pelo CFM para saber a “opinião” dos médicos sobre a obrigatoriedade da vacinação de crianças de 6 meses a menos de 5 anos contra a covid-19.

No formulário disponível, o CFM alega que está conduzindo a pesquisa “para entender a percepção dos médicos brasileiros” sobre a obrigatoriedade da imunização de crianças, e afirma que a opinião dos profissionais “é fundamental para enriquecer a análise e contribuir para a tomada de decisões futuras”.

Para a SBIm, a pesquisa equipara as crenças pessoais dos médicos à ciência, o que pode gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação.

“A SBIm entende que a pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) não trará nenhum benefício à sociedade”, afirma instituição científica.

A SBIM lembra que a covid-19 foi responsável por 5.310 casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e 135 mortes entre crianças menores de 5 anos no Brasil em 2023, de acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, que reúne dados até novembro.

Além disso, desde o início da pandemia, houve 2.103 casos de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), considerada uma manifestação tardia da covid-19, com 142 mortes.

Diante disso, a sociedade ressalta que a vacinação contra a covid-19 é uma estratégia comprovadamente eficaz e segura para a prevenção da doença, potencialmente fatal também entre crianças.

A segurança da vacina é reforçada pelo último boletim de monitoramento de Eventos Supostamente Atribuíveis à Vacinação e à Imunização (Esavi) publicado pelo Ministério da Saúde. Segundo o documento, após a aplicação de mais de 47 milhões de doses em pessoas menores de 18 anos, entre 18 de janeiro de 2021 e 31 de dezembro de 2022, a grande maioria dos eventos propriamente ditos foram leves ou moderados, como dor de cabeça, febre, dor muscular e outras reações esperadas.

Além disso, a SBIM argumenta que o Brasil dispõe de pelo menos dois dispositivos legais que estabelecem a obrigatoriedade da vacinação de menores de 18 anos, os artigos 227 da Constituição Federal e 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina em parágrafo único que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.


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