Brasil
Publicado em 21/02/2019 12:00 -
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O sedã cinza do policial civil Claudezio de Souza Gomes amanheceu crivado de balas na esquina da Rua Maria Joaquina, perto da estação de trem do bairro da Pavuna, Zona Norte do Rio. Ele estava dentro do carro e morreu na hora. Era manhã do dia 26 de outubro de 2018, e o assassinato, descobriu-se depois, foi queima de arquivo. Claudezio era envolvido com a comercialização de cigarros falsos na Feirinha da Pavuna, um dos muitos investimentos da milícia carioca, e teria a prisão expedida depois do segundo turno das eleições presidenciais. Não deu tempo. Quinze dias antes, a Polícia Civil, para o qual Claudezio oficialmente trabalhava, havia apreendido oito mil maços de cigarro da marca paraguaia ‘Gift’, aquele que custa R$ 3. A tentativa de prisão de Claudezio — e o homícidio — nos faz entender o quão complexo é impedir o avanço da milícia no Rio de Janeiro. É como se a polícia investigasse ela mesma. O cachorro que tenta morder o próprio rabo.
Tradicionalmente, as milícias são formadas por agentes de segurança como policiais militares — expulsos ou não da corporação —, policiais civis, bombeiros, agentes penitenciários ou quaisquer outras profissões em que seja permitido andar com uma pistola na cintura, debaixo da camisa pólo. A milícia só passou a colocar medo na população carioca a partir do fim da década de 2000, mas o conceito é pra lá de antigo. Eles são a segunda geração dos grupos de extermínio do período da ditadura civil-militar, que aterrorizavam os bairros da Baixada Fluminense nas décadas de 1970 e 1980.
“O que diferencia as milícias atuais dos grupos de extermínio do passado é o portfólio de negócios que existe hoje com comércio de água, terrenos, imóveis, gasolina adulterada, transporte clandestino, cesta de alimentos, cigarros, entre outros. Isso confere as esses grupos um poder econômico muito mais amplo do que havia em anos anteriores. Além disso, esse poderio econômico permite a compra e venda de votos no período eleitoral fazendo que políticos monopolizem determinada região”, afirma José Cláudio de Souza Alves, professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e pesquisador das milícias há 26 anos.
Na metade da década de 2000, esses grupos começaram a se consolidar pelos subúrbios cariocas com o argumento de ‘limpar’ as regiões, evitando furtos, roubos e tráfico de drogas. Muitos políticos entraram na onda, achando que a prática os ajudaria a baixar os índices de criminalidade. Em 2006, Eduardo Paes, então candidato a prefeito, defendeu em plena TV Globo as milícias de Jacarepaguá, o que ele chamou de ‘polícia mineira’ à época. O presidente Jair Bolsonaro e o filho senador, Flávio, nem se fala. Aliás, é bom falar e relembrar que Queiroz, policial militar e amigo da família, ficou escondido durante semanas na comunidade do Rio das Pedras, uma fortaleza da principal milícia da cidade. “A tolerância com as milícias garantiu votações ao longo dos anos de grupos de direita, além do atual Presidente da República e seu filho, que defendem a lógica da execução sumária. Nenhum grupo político foi capaz de transformar essa estrutura, nem mesmo os governos anteriores de Lula e Dilma. Esses grupos nunca tiveram seu poder tocado e modificado”, analisa Alves.
Os milicianos herdaram tudo de pior que existe no Rio de Janeiro. A falsa autoridade e a extorsão sob ameaça são elementos da parte mais suja e corrupta da Polícia Militar. O tráfico de drogas ensinou a eles o assistencialismo rasteiro sob o guarda-chuva de 'Amigo da Comunidade': piscina para as crianças no verão, torneios de futebol amador, shows de grupos de pagode. Com o tradicional jogo do bicho, o grupo aprendeu a estender seus tentáculos por todos os poderes da cidade, inclusive na política local, quando a partir dos anos 1990 não só comprava votos como também passou a se candidatar.
A relação com a Câmara de Vereadores e a Assembleia Legislativa é a face mais assustadora. Em 2008, o então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) comandou a CPI das Milícias, com o auxílio de sua assessora Marielle Franco. O relatório final, que gerou tensão e ameaças, pediu o indiciamento de quase 300 políticos, agentes penitenciários, bombeiros e policiais. No ano seguinte, 246 milicianos foram presos no estado, entre eles parlamentares com mandato, como os ex-vereadores Jerominho (PMDB) e Nadinho de Rio das Pedras (DEM) — assassinado a tiros ainda em 2009. A CPI das Milícias apresentou ao governo estadual da época 58 propostas para combater a máfia. Pouco foi feito desde então. Sabemos as consequências, principalmente com Marielle e seu motorista, Anderson Gomes.
“A CPI foi importante por ter mostrado um raio-x detalhado da atuação desses grupos. Fez com que eles se transformassem, e no caso do Rio de Janeiro, ficassem ocultos. E, por isso, hoje alguns grupos de direita querem se apoderar da mesa diretora dos Direitos Humanos para soterrar todo e qualquer trabalho relacionado a milícias. Como de lá para cá nada mais foi feito em relação a essa estrutura, esses grupos foram crescendo econômica e politicamente. É determinante a manutenção desse legado para que as conquistas não sejam soterradas”, opina Alves.
Pague meu preço e se livre de mim
Intimidação é um dos pilares que alicerçam o poder dos paramilitares sobre comunidades inteiras. O gás, a água, o cigarro, a bebida, o telefone e a televisão. Tirando o sol que amanhece todos os dias na cidade, tudo passa pelo controle desse grupo. O comerciante José Alberto*, morador de uma favela na Baixada Fluminense, foi recebido na porta do comércio aos gritos de “encomenda”. Eram dois milicianos, armados até os dentes, que estipularam ao senhor o preço semanal de R$ 15 sobre o pequeno comércio de frutas e verduras. “Às vezes eles vinham mais de uma vez no dia buscar a quantia. Em uma ocasião, eu tentei negar porque já tinha feito o pagamento, mas eles se exaltaram, armados até os dentes, e partiram pra cima para pegar o dinheiro”, conta. A lojinha, que fica numa ladeira íngreme, é um puxadinho feito em casa, reformado para complementar a renda do casal aposentado.
Um morador do bairro de Jacarepaguá, na Zona Oeste carioca, conta que milicianos políticos se metem até na retirada de entulho da região. O serviço deveria ser feito pela Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana). "Precisei pagar a milícia para recolher o entulho da minha casa durante uma obra. Dois políticos da região, envolvidos com a milícia, brigaram entre si para ver quem ia ficar responsável por esse serviço. Não se dá um passo na rua sem consultá-los", conta Daniel*, morador de uma comunidade em Jacarepaguá, Zona Oeste, área quase plenamente dominada pelo grupo. Um dos políticos citados faz parte da família Brazão, denunciada há anos por envolvimento com paramilitares.
Thiago* é morador da Zona Oeste e tem uma barraca numa praça. Ele diz também ser achacado. “Os caras se identificam como seguranças, e são até bem educados. Nas primeiras vezes, eles pediam duas fatias de bolo em troca da vigilância. Depois, passou a pedir dez reais. Agora, pago vinte. Eles chegam logo no início da noite, quando a gente ainda sequer abriu. Muitas vezes nem temos dinheiro trocado, mas precisamos levar de casa para não atrasar”, comentou.
A milícia age na lógica da extorsão e extermínio. O comércio é normalmente o primeiro a ser avisado que eles são os novos donos do local. O comerciante recebe o aviso de que, a partir de agora, parte do lucro sobre determinado produto deverá ser repartido. Eles atacam pequenos lojistas que vendem mercadorias essenciais à população do local, como o botijão de gás e o galão de água. Em muitas favelas cariocas, água potável ainda é luxo. Com todo mundo devidamente avisado, a ameaça é consequência. Espancamentos, torturas e humilhações à luz do dia são o destino daqueles que rejeitam a oferta da milícia. São comuns casos em que o lojista até repassa o dinheiro conforme o combinado, mas o grupo paramilitar, por puro sadismo, entende diferente.
“O pagamento era feito até o dia cinco de cada mês, somente em dinheiro. Era preciso ter o valor desde o dia primeiro porque eles nunca vinham na mesma data, nem no mesmo horário. O pagamento era feito no meu estabelecimento. Sempre vinham três carros. Um parava na entrada da rua, outro na porta do estabelecimento e outro no fim da rua. Sempre fortemente armados”, relata o dono de um depósito de gás em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que precisava desembolsar religiosamente R$ 1.000 para manter o comércio aberto.
Vodca, cigarro, maconha e pó
Em junho do ano passado, na Gardênia Azul, em Jacarepaguá, a Polícia Civil descobriu que a milícia da região fabricava bebidas falsas e obrigava os comerciantes a venderem a mistura. Produtos como álcool etílico, tinta para pintar automóvel e spray para cabelo eram misturados em garrafas de vodca com os rótulos da Smirnoff e Absolut. Os donos de pequenos restaurantes, botequins e mercearias também eram obrigados a vender aqueles maços de cigarro Gift. A milícia dá importância ao produto, a ponto de colocar ambulantes para vendê-los nas calçadas movimentadas dos bairros e estações de trem. Da Central do Brasil, coração e ponto de confluência das operações dos camelôs, as artérias Japeri, Deodoro, Santa Cruz, Gramacho e Belford Roxo fazem o capital girar tornando-se parte importante dos ativos das quadrilhas. O lucro é quase todo do grupo.
Não se engane: a milícia não é melhor que o tráfico de drogas. A venda de maconha, crack e cocaína, aliás, não acaba com a presença dos paramilitares. Pelo contrário. Atualmente, muitas favelas são dominadas pelas duas forças, numa gestão ‘híbrida’. Em Antares, Zona Oeste, o comércio é controlado pela milícia, mas as bocas são reservadas aos traficantes.
Um aprende com o outro. No Morro da Babilônia, no Leme, e na Rocinha, São Conrado, ambas na Zona Sul, os traficantes assumiram o monopólio da venda do gás. Isso foi o que causou a desavença entre Nem, ex-chefe do tráfico na Rocinha, e Rogério 157, seu antigo aliado, em 2017. O ‘dono’ do morro, preso em uma penitenciária federal de Rondônia, ficou sabendo que o então braço direito estava com ‘práticas de milícia’, cobrando até R$ 100 pelo botijão. Rogério 157 mudou de facção durante a briga, mas acabou preso em dezembro.
Em quase cinco décadas de existência — entre os antigos grupos de extermínio e a nova formação mais sofisticada – os paramilitares sequer tiveram sua estrutura ameaçada. Quando o assunto é milícia, governo e segurança pública parecem trafegar por vias diferentes. Para a professora Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, é alarmante que as agendas de segurança do governador Wilson Witzel e do ministro Sérgio Moro não defina como prioridade a desarticulação desses grupos. “É surpreendente que governos em início de gestão não coloquem as milícias como prioridade na segurança pública. É inaceitável que se cometa um erro histórico desses. Quando se suspeita que setores desses governos estão comprometidos é possível compreender por que não se focaliza em desarticular essas quadrilhas. Mas quando um governo diz que vai combater a criminalidade com força, torna-se inaceitável que não se definam esses grupos como prioritários”, afirmou.
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