07/11/2024 - Edição 550

Brasil

Clubes de tiro cercam indígenas e facilitam agromilícias na Amazônia

Flexibilização torna mais fácil a atuação de empresas de vigilância armada em regiões já marcadas pela violência rural

Publicado em 17/11/2022 10:50 - Carol Castro – The Intercept_Brasil

Divulgação Ilustração: Amanda Miranda para o Intercept Brasil

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Pouco mais de 140 quilômetros separam a aldeia Gorotire dos quatro clubes de tiro abertos nos últimos cinco anos na cidade de Redenção, no Pará. A comunidade integra o território de Cumaru do Norte – a 14ª cidade com maior taxa média de mortes violentas intencionais do país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

À beira do rio Fresco, um dos afluentes do Xingu, fica uma das principais entradas para a Terra Indígena dos Kayapó, afetada pela presença de garimpeiros há décadas. Segundo o Boletim do Ouro, elaborado pela Universidade Federal de Minas Gerais, entre janeiro de 2021 e junho de 2022, quase metade da área total de mineração em terras indígenas estava no território Kayapó. E, de acordo com o MapBiomas, lá também ficam as maiores áreas de garimpo em TIs no Brasil – são 7.602 hectares de área minerada.

Logo ao norte da reserva, dois clubes de tiro em São Félix do Xingu e Ourilândia do Norte fecham o cerco aos Kayapó. Tucumã, que fica entre essas duas cidades, também inaugurou uma casa de tiro em 2021. Os três municípios registraram ao menos 52 conflitos entre 2020 e 2021, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, a CPT.

“É muito significativo que tenham aberto um clube em São Félix, em 2019, por exemplo, porque as invasões em terras indígenas cresceram muito nessas regiões. E ainda estão abrindo uma estrada que vai ligar São Félix a Novo Progresso, cortando a Terra do Meio. Isso é o fim do mundo”, criticou a antropóloga Luísa Molina, consultora do Instituto Socioambiental.

Em maio, uma operação da Polícia Federal em conjunto com Ministério Público Federal, Funai, Ibama e Força Nacional destruiu três garimpos e maquinários ilegais na parte da TI que ficam nas delimitações de São Félix do Xingu. Mas nos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro – que fez de tudo para tentar legalizar o garimpo em terras indígenas – desmontou os mecanismos de fiscalização. A apreensão de maquinários, por exemplo, caiu 81%. E tem outro problema: fiscalizar garimpos ilegais se tornou bem mais perigoso para os próprios policiais.

“Trabalho com segurança pública desde 2012. Você vê em qualquer lugar do Brasil gente atirando contra a Polícia Federal. E isso era algo que não acontecia! Você vê garimpeiro batendo com facão no rosto de fiscal, botando fogo em helicóptero. E esses policiais veem que os bandidos são empoderados pelo presidente”, disse Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz. “Vi uma matéria outro dia mostrando um garimpeiro com armas num helicóptero, e você consegue ver um fuzil novíssimo da Taurus. Então, você vê que eles passam a comprar isso com mais facilidade”.

As demais divisas da TI Kayapó fazem fronteiras com outras reservas, todas cercadas por clubes de tiro. E não são as únicas. Em todo o Pará, no Mato Grosso e no Maranhão, as terras indígenas estão rodeadas por esses estabelecimentos.

A boiada no Matopiba

Na madrugada de 3 de setembro, Janildo Oliveira Guajajara foi morto com tiros nas costas em Amarante do Maranhão. O município fica a menos de 100 quilômetros de Imperatriz, onde ficam três clubes de tiro – dois deles foram abertos durante o governo Bolsonaro. Na mesma noite, Israel Carlos Miranda Guajajara morreu atropelado na mesma cidade, próximo à região norte da terra índigena Arariboia. Os dois casos são investigados como homicídios dolosos, com suspeita de conflitos com madeireiros ilegais na TI.

Ainda que não haja tantos de clubes de tiro quanto em outros estados, o número desses estabelecimentos dobrou no Maranhão sob a gestão Bolsonaro – passando de sete para 14. Sob condição de anonimato, um morador relatou a presença mais forte desse tipo de comércio. “Imperatriz está cheia de lojas de arma. No meu bairro tem muitas. Isso começou nos últimos dois anos. É um mercado que se abriu, afrouxando as leis e deixando tudo muito confuso e de fácil acesso”, contou.

Imperatriz é uma das maiores produtoras de soja do estado e abriga o Sindicato dos Ruralistas. Também é um lugar onde Bolsonaro se sente bem confortável. Só entre julho e setembro, o presidente da República fez duas motociatas na cidade.

A região faz parte do Matopiba – acrônimo de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, considerado a última fronteira agrícola do país. Em 2008, uma porção de fazendeiros começou a ocupar territórios no Cerrado, impulsionando o agronegócio na região. Só em 2015, o governo delimitou oficialmente as áreas do Matopiba – e começou a criar programas para facilitar as empresas do agro, com projetos de infraestrutura para escoamento da produção e regulação de terras.

Mas o agro empurra os conflitos para outros municípios da área. “Essa regularização das terras pressiona os pequenos produtores, que produzem farinha, mandioca e que estão perdendo terras”, me contou o morador. “Em Arariboia, quem está atacando os indígenas são pessoas pobres, que vivem da caça e madeira ilegal. É uma questão fundiária em uma região agrícola. Todo mundo é filho de camponeses aqui. Você tem cidades inchadas, com muita gente pobre, jovens sem emprego, sem condições de se integrar à vida do consumo. Então vão surgindo conflitos”.

Em 2021, segundo dados da CPT, o estado foi o segundo com mais conflitos de terra: foram 72 registros, atingindo 14.377 famílias. No mesmo ano, o Maranhão registrou nove assassinatos por questões fundiárias. O estado só ficou atrás apenas do Pará, com 96 áreas de conflito.

Armando agromilícias

No começo da noite de 24 de maio de 2017, viaturas se aproximaram de um acampamento improvisado de trabalhadores rurais sem-terra na fazenda Santa Lúcia, de 5 mil hectares, em Pau d’Arco, no sul do Pará. O grupo de 25 pessoas havia chegado há pouco no local e, assim que escutaram a aproximação, todos saíram em disparada mata adentro. A chuva, que até então caía fina, virou tempestade. Sentiram-se seguros – a polícia não entraria naquele lamaçal. Foi um erro. Nem tiveram tempo de perceber o cerco dos agentes quando começaram os disparos.

De primeira, a polícia matou cinco trabalhadores no tiroteio. Encontraram com vida a líder do acampamento, Jane de Oliveira, junto ao marido, Antônio Pereira Milhomem, e o cunhado, Ronaldo Pereira de Souza. Os policiais comemoraram o encontro com Jane – ela era uma das responsáveis por outras ocupações realizadas naquele ano na mesma fazenda e por um protesto que havia fechado a BR-155, contra uma ação de despejo de trabalhadores do MST.

Jane foi torturada e assassinada pelos policiais. Na sequência, eles mataram os outros dois parentes e mais dois posseiros. A chacina de Pau d’Arco contabilizou 10 corpos, numa ação orquestrada e protagonizada por 29 homens da Polícia Civil e Militar. Segundo a investigação, dois seguranças particulares armados também participaram da ação.

No fim de janeiro do ano passado, Fernando Araújo dos Santos, sobrevivente da chacina e uma das principais testemunhas do caso, morreu com um tiro na nuca, em casa. Semanas antes, Santos havia relatado ao site Repórter Brasil ameaças feitas por policiais, que nunca foram ouvidos nas investigações. Segundo o inquérito, não houve relação entre o assassinato e o massacre. Quanto aos envolvidos nas 10 mortes na fazenda Santa Lúcia, dois policiais civis e 14 militares foram indiciados pelos crimes, mas seguem em liberdade – e em atividade – enquanto esperam pelo julgamento. A investigação final concluiu que não houve mandantes.

Os reflexos de Pau D’Arco ainda ressoam no sul e sudeste do estado, a região mais violenta do Pará. É comum que latifundiários contratam pistoleiros para tomar conta das fazendas e coagir os posseiros a abandonar a luta. E, muitas vezes, policiais militares fazem parte desses bandos. “As empresas de segurança atuam com eles. Em Pau d’Arco elas participaram ativamente na busca pelas pessoas na área”, me disse José Vargas Júnior, advogado que defendeu as vítimas do massacre. “Antes dessa onda armamentista, essas empresas nem sempre tinham o direito de fazer vigilância armada, como no caso da fazenda Santa Lúcia”.

É justamente nessas regiões que pipocam clubes de tiro. Só entre as BR-158 e 155, no Pará, existem 15 deles. No sul do estado, o número é bem maior: são 35 – quase 70% do total de estabelecimentos do estado. “Essa flexibilização na regulamentação foi um grande facilitador. Antes tinham que dar um aspecto de legalidade, com empresas, havia mais restrições, as armas tinham um menor potencial ofensivo”, disse Vargas.

Agora, ele explica, as agromilícias se formam no mesmo modus operandi, mas com dois facilitadores: os CACs e os clubes de tiro. “Você não precisa mais abrir uma empresa, basta ir lá e tirar um registro de caçador”.

A lei mudou mesmo o cenário no campo. Em 2019, Bolsonaro aprovou uma lei de posse de arma estendida no campo. Ou seja, desde então, os fazendeiros podem andar armados por toda sua propriedade – e não apenas na sede, como era antes. “Essas propriedades na Amazônia são do tamanho da região metropolitana de São Paulo. Então essa pessoa pode andar por milhares de quilômetros armada. Ela agora pode botar um fuzil legal dentro da sua propriedade”, observou Langeani.

As cidades que permeiam a BR-155 abrigam os maiores rebanhos de gado do país. Xinguara, por exemplo, é conhecida como a capital da pecuária. Mais uma vez, os clubes de tiro acompanham o rastro do agronegócio, numa região cheia de terras indígenas assaltadas por grileiros, garimpeiros e madeireiros.


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