07/11/2024 - Edição 550

Brasil

Capitalismo do Desastre: empresas exigem ida de funcionários no RS

Elas veem "oportunidades" na tragédia que assola o Estado

Publicado em 21/05/2024 10:37 - Rafaela Polo (UOL), Tatiana Dias (Intercept_Brasil) – Edição Semana On

Divulgação Victor Barone - Midjourney

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“Se não fossemos trabalhar, ficaríamos com banco de horas negativo”. Com Porto Alegre enfrentando alagamentos, frota de ônibus reduzidas e vias interditadas, muitos funcionários de empresas privadas passaram a ter dificuldades para chegar ao trabalho – o que não é visto com bons olhos pelos empregadores.

Um trabalhador que não quis se identificar, contou que o seu local de trabalho ficava em uma área muito afetada pelas enchentes e, nem assim, foi liberado das suas funções. Pelo contrário: os empregadores disseram que descontarão as horas de quem não aparecesse para cumprir expediente.

“As Forças Armadas estão no estado para dar apoio às vítimas e grandes empresas não entenderam a situação. Estão abrindo suas lojas em regiões condenadas para evitar saques”, afirmou o funcionário.

Segundo o relato do mesmo funcionário, a Defesa Civil alertou sobre os riscos da área de seu trabalho, pois havia a possibilidade do rompimento de um dique – o que alagaria as empresas da região próximas às Avenidas Assis Brasil e Sertório, no bairro São João. A prefeitura precisou, por exemplo, desligar a Estação de Tratamento de Água do local por 3 dias (entre 4 e 7 de maio) por risco de choque elétrico.

A reportagem do UOL conversou com a pessoa que fez esta denúncia no dia 6 de maio, um dia antes do religamento da estação. “Por aqui, só estão passando veículos de resgate e da polícia, para ajudar as pessoas. Duas ruas abaixo de onde estamos, tem gente ilhada”, afirmou ela.

Em meio ao caos, há mais denúncias de trabalhadores obrigados a dar expediente. O funcionário de uma rede de academias famosa na cidade contou à reportagem que precisou ir trabalhar sem que o local tivesse energia e nem água.

“Meu local de trabalho, por um momento, estava fora da área de risco. Mas está muito difícil se locomover na cidade: temos menos ônibus, não temos carros de aplicativo o suficiente, não sabemos se vai faltar combustível”, contou.

Sem água e sem luz, ele alegou que tanto funcionários quanto alunos estavam vivendo uma situação insalubre no local: sem ter o que beber e nem como usar o banheiro.

“Funcionamos normalmente até a água começar a subir a rua da academia e se aproximar da nossa porta. Aí sim, a unidade foi fechada”, afirmou a fonte.

Ajuda do poder público

A prefeitura de Porto Alegre disponibilizou em seu site um atestado, fornecido pela Defesa Civil, que trabalhadores podem preencher e enviar para os empregadores, mostrando que não têm como retornarem ao trabalho.

“Ao preencher o formulário, o site gera uma versão em PDF e manda uma cópia para o sistema do município. Assim, teremos a compreensão do trabalho de quantas pessoas foram afetados pelas cheias”, explica Karen Santos, vereadora do PSOL em Porto Alegre.

Segundo Karen, quem teve a ideia de criar esse formulário foi uma amiga, que é advogada de seu mandato. Ela tenta agora implementar uma versão para Canoas, onde 70% do município está embaixo d ‘água.

“Conversamos com o procurador do município. Todos estão sendo impactados de alguma forma. Quem não mora em área de risco está com problemas para se deslocar porque toda a cidade está com frota de ônibus reduzida”, disse Karen.

Segundo ela, servidores públicos podem ser realocados – existe uma médica que não consegue chegar a seu hospital trabalhando direto nos abrigos. Mas o mesmo não se aplica às empresas privadas.

“Por isso pensamos, para Canoas, criar um documento de autodeclaração. O indivíduo explica sua situação e, por boa fé, a gente emite o atestado dizendo que ele está impossibilitado de dar expediente”, diz.

A vereadora diz que ela e sua equipe estão acolhendo aqueles que são vítimas de assédio moral dos chefes para comparecer a empresas presencialmente em meio a calamidade.

“Vamos fazer uma representação ao Ministério Público do Trabalho. Recebemos denúncias de trabalhadores da limpeza urbana de Porto Alegre e de uma cooperativa. Algumas empresas já foram notificadas.”

Capitalismo do Desastre

Porto Alegre segue debaixo d’água, e o tamanho do estrago ainda é imensurável, mas o prefeito Sebastião Melo, do MDB, já anunciou o plano: irá contratar a consultoria Alvarez & Marsal para recuperar a cidade.

A história dessa contratação é tocante. “Um dos sócios dessa empresa é gaúcho, porto-alegrense. Ele se sensibilizou com o processo e nos procurou para ajudar”, disse Melo. A Alvarez & Marsal não irá cobrar pelo trabalho nos primeiros seis meses – mas o plano já prevê atividades para além do período gratuito.

A benevolência esconde o contexto. Vou começar pelo mais básico. A Alvarez & Marsal é uma consultoria que atua para recuperar aqueles casos quase impossíveis de crise corporativa. Empresas envolvidas em desastres ambientais, em grandes condenações e de reputação duvidosa.

Aqui no Brasil, por exemplo, atuou após os crimes ambientais de Mariana e Brumadinho e com empresas que foram investigadas pela operação Lava Jato, como o Grupo Odebrecht e as construtoras OAS e Queiroz Galvão.

(O rol de clientes não impediu, no entanto, que Sergio Moro fosse contratado pela consultoria logo após deixar o ministério da Justiça de Bolsonaro, mas essa é outra história que você pode ler aqui.)

Nos EUA, a Alvarez & Marsal atuou na reestruturação de Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005 – uma tragédia que, devido à magnitude, tem sido bastante comparada com o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Na ocasião, 1,5 mil pessoas morreram e 80% da cidade ficou debaixo d’água, completamente colapsada.

No domingo, 12, o Fantástico fez uma reportagem em tom esperançoso mostrando como foi a recuperação de Nova Orleans – e o que os gaúchos podem aprender com ela.

A história de superação da cidade pode ser, sim, lida com essa lente inspiradora. Mas a economia de recuperação de desastres tem um lado sombrio, e é a tempestade perfeita para os urubus da crise criarem novas fronteiras de acumulação de capital – e implantarem as reformas e medidas antipopulares que tanto desejam.

É o fenômeno descrito como capitalismo de desastre. O caso de Nova Orleans, por exemplo, é um dos exemplos analisados pela autora canadense Naomi Klein no seu livro “A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre”.

Esse conceito de “choque” vem do economista Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia em 1976 e um dos principais influenciadores da linha econômica liberal dos Chicago Boys.

Friedman argumentava que só as crises econômicas poderiam produzir mudanças. Ou seja: o período após um trauma coletivo é o mais propício para reformas que, em outras ocasiões, dificilmente seriam aceitas. Privatizações radicais, por exemplo.

Naomi Klein mostra que foi assim no Chile, após o golpe que derrubou Salvador Allende. Também na Bolívia, que atravessou uma crise econômica em 1980. Malásia, Filipinas, Coreia do Sul, Brasil e Indonésia, entre outros, também passaram por processos semelhantes nos anos 1990. No início do século 21, foi a vez dos EUA, em choque com a Guerra ao Terror, com uma retórica que favoreceu a privatização de serviços de defesa nacional.

Klein argumenta que o fenômeno se repetiu também depois de desastres naturais. Na América Central, após o furacão Mitch, e também no Sri Lanka, depois do tsunami em 2004, e em Nova Orleans com o Katrina. Em todos os casos, o estado foi reduzido com privatizações, e as corporações ganharam liberdade com desregulamentação.

Naomi Klein mostra, por exemplo, que, nos EUA, a passagem do Katrina serviu como ponto de partida para uma série de privatizações, incluindo o sistema educacional.

No Sri Lanka foi semelhante: o governo, defendendo que a reconstrução do país não poderia ficar a cargo de políticos, decidiu criar um novo órgão, chamado Força Tarefa, composto basicamente de banqueiros e empresários. O grupo propôs um plano de reconstrução que ia de acordo com seus próprios interesses comerciais: expulsou moradores de áreas pobres e fortaleceu o turismo de luxo.

Aqui no Brasil, a mesma agenda foi implementada depois do rompimento da barragem do Fundão. Uma excelente tese de doutorado da UFMG descreve o crime ambiental de Mariana, em Minas Gerais, como o primeiro grande experimento desse capitalismo no Brasil.

Na ocasião, argumenta a autora Claudia Rojas, a primeira terapia de choque foi o rompimento abrupto e violento. O segundo foi um programa econômico neoliberal e impopular para reparar os danos, que “permitiu às corporações responsáveis inaugurar um novo mercado e conquistar os últimos bastiões do estado”, diz a tese.

Por fim, e não menos perverso, os atingidos foram submetidos a “mecanismos e técnicas de tortura coletiva, que contribuíram para reduzir o gasto social, neutralizar a resistência e consolidar a ascensão do capitalismo de desastre no Brasil”. Por exemplo, com a pressão para assinatura de acordos com indenizações irrisórias.

A autora mostra como o capital se fortalece com as crises que ele mesmo fomenta e reproduz continuamente. Primeiro, com a consolidação do papel das corporações privadas nas respostas às crises. No caso da barragem, por exemplo, o dinheiro de reparação foi gerido por uma fundação privada, e não pelas vítimas ou pelo estado.

Segundo a autora, esse processo permite o avanço da classe capitalista transnacional. E isso acontece de uma maneira sofisticada, com ONGs e projetos de recuperação, novas instituições e protocolos, de maneira que as próprias corporações ditem as regras e as respostas à crise. Grandes consultorias internacionais especializadas em reputação, sabe?

O capitalismo de desastre também se manifesta com agendas liberais que “alargam o espaço privado em detrimento do espaço público”. Em Mariana, por exemplo, isso aconteceu com a privatização de serviços essenciais como assistência às vítimas e respostas a emergências ambientais, que ficaram a cargo das próprias empresas e fundações privadas.

Agora, preste atenção no que está acontecendo no Rio Grande do Sul: a contratação da consultoria especializada em crises corporativas no lugar de pesquisadores de universidades públicas, o pix do governador Eduardo Leite, os pedidos de doações a entidades privadas.

Combine isso com a narrativa predominante das fake news de direita: é a descredibilização do poder público, a ideia de que a ação estatal é “burocrática” e está “atrapalhando” os voluntários, é o helicóptero fake da Havan criado por inteligência artificial resgatando pessoas, é a ideia de um heroísmo privado e atuante sobre a ineficiência do poder estatal.

A resposta ao choque, que se descortina agora, é justamente o fortalecimento da agenda neoliberal em resposta à tragédia: o estado está reduzido, inoperante, então vamos substituí-lo. O Rio Grande do Sul é o novo laboratório da crise.


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