20/09/2024 - Edição 550

Brasil

A cada 20 minutos, uma criança ou adolescente dá à luz um bebê no Brasil

Em uma carta confidencial enviada ao governo brasileiro, relatoras da ONU denunciaram uma ofensiva contra o aborto legal no país

Publicado em 05/07/2023 9:16 - Jamil Chade - UOL

Divulgação Fiocruz

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Em uma carta confidencial enviada ao governo brasileiro, relatoras da ONU denunciaram uma ofensiva contra o aborto legal, nas condições previstas pela legislação brasileira.

O documento, obtido pelo UOL, foi enviado para as autoridades em Brasília ainda em abril e foi assinado pelas relatoras Dorothy Estrada-Tanck, Irene Khan, Tlaleng Mofokeng, Mary Lawlor e Alice Jill Edwards.

No centro da denúncia está o caso de três jornalistas brasileiras que, em junho de 2022, publicaram reportagens sobre a dificuldade de uma menina que havia sido estuprada em conseguir realizar um aborto legal. Após as reportagens, Paula Guimarães (Portal Catarinas), Bruna de Lara and Tatiana Dias (The Intercept) passaram a ser alvo de um assédio judicial e moral pela denúncia realizada.

Elas publicaram, na época, detalhes sobre como a pressão havia sido colocada sobre a criança vítima do estupro e de sua família para que o aborto não fosse realizado.

Para as relatoras da ONU, os ataques contra as jornalistas fazem parte de um padrão mais amplo e preocupam. É uma tentativa de grupos ultraconservadores de impedir que a lei brasileira seja cumprida e que essas meninas tenham acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva.

Segundo as relatoras, a ONU recebeu informações de que:

De 2010 a 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos deram à luz outras crianças no Brasil, o que representa um parto a cada 20 minutos nesse período.

Em 2018, mulheres e meninas afrodescendentes foram 65% do total de vítimas de mortes maternas — estima-se que 92% do total de mortes maternas eram evitáveis.

Crianças de 0 a 13 anos foram 61,3% das vítimas do número total de estupros no Brasil em 2021;

Entre as vítimas de estupro no país em 2021, 52,2% eram afrodescendentes e 88,2% eram mulheres.

Os dados foram coletados pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná e divulgados em 2021 pelo Portal Catarinas.

Segundo a carta, “organizações da sociedade civil relataram uma redução de 45% na disponibilidade de serviços de aborto legal no Brasil durante a pandemia da covid-19”.

“De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA 2021), meio milhão de abortos é realizado no Brasil a cada ano, e 43% das mulheres que se submeteram ao aborto precisaram ser hospitalizadas devido a complicações de saúde.”

Os dados da carta ainda apontam que:

– Uma em cada sete brasileiras, com 40 anos ou mais, já fez pelo menos um aborto na vida;

– 52% dos abortos ocorreram quando essas mulheres tinham menos de 19 anos;

– Um quinto das mulheres já fez mais de um aborto e, entre esse grupo, 74% são mulheres afrodescendentes.

Negras são as mais afetadas

Para as relatoras, fica evidenciado que mulheres e meninas negras são as mais afetadas pelos esforços para restringir o acesso ao aborto e à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos no Brasil.

Na carta, os especialistas alertam para a “séria preocupação com as alegações que, se confirmadas, mostrariam uma tendência persistente de violência contra mulheres e meninas que não têm acesso ao seu direito à saúde reprodutiva no Brasil por conta de muitas barreiras sistêmicas, que parecem afetar especialmente mulheres e meninas afrodescendentes”.

Um dos pontos denunciados como “extremamente preocupante” é a remoção de meninas grávidas, que estão em situação vulnerável devido à sua idade e circunstâncias, e sua colocação em abrigos separados de seus pais ou responsáveis e familiares.

“Isso parece estar em desacordo com os melhores interesses da criança, seu direito à vida familiar e à liberdade e segurança pessoal, sem a devida supervisão judicial. O simples fato de estar grávida e buscar um aborto não é motivo para remover ou separar uma menina de seus pais, responsáveis ou familiares”, diz a relatoras da ONU, em carta enviada ao governo Lula.

Alerta para situação das jornalistas

Parte da carta ainda faz um alerta sobre a situação das três jornalistas, diante de retaliações e intimidações.

Também estamos preocupados com o profundo efeito inibidor que a investigação judicial sobre as três jornalistas que relataram o caso pode causar em outros profissionais da mídia que relatam questões relacionadas a direitos humanos.”

“Estamos particularmente preocupados com o fato de essas alegações constituírem uma violação dos direitos fundamentais da mulher à igualdade, à integridade física e psicológica e à privacidade. Continuamos preocupados com a situação de mulheres e meninas cujo acesso aos direitos de saúde sexual e reprodutiva é restrito.”

Para as relatoras da ONU, a situação é uma violação das leis nacionais.

“No contexto dos direitos à saúde sexual e reprodutiva, reiteramos nossas preocupações de que, se os fatos forem confirmados, tais direitos continuam a ser violados, apesar da existência do artigo 128 do Código Penal Brasileiro, que autoriza a interrupção legal da gravidez quando ‘não há outro meio de salvar a vida da gestante, e se a gravidez resulta de estupro'”.

Estigma do aborto

Segundo elas, há preocupação com o fato de uma menina vítima de estupro ter enfrentado obstáculos para ter acesso a uma interrupção legal da gravidez — o que reflete a discriminação que mulheres e meninas frequentemente sofrem com relação ao acesso a serviços de saúde.

As restrições ao acesso ao aborto seguro, um serviço de saúde reprodutiva predominantemente exigido por mulheres e meninas, são discriminatórias. A sujeição de mulheres e meninas a barreiras desnecessárias ao atendimento essencial à saúde reprodutiva é um tratamento degradante e alimenta o estigma do aborto, o que, por sua vez, contribui para um ambiente proibitivo e punitivo repleto de intimidação e violência.”

“Em particular, negar o aborto a mulheres e meninas grávidas resultantes de estupro e incesto corre o risco de exacerbar seu trauma, bem como seu sofrimento físico e mental, sujeitando-as assim a formas adicionais de violência psicológica que também podem constituir tortura ou sofrimento cruel ou desumano”, completam as relatoras.


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