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Palavra do Editor

Petistas, os novos judeus

Publicado em 25/03/2016 12:00 -

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Na década de 30, quando, oprimidos por uma recessão violenta advinda do pós-guerra e por uma falta de perspectivas no futuro, os alemães abraçaram o nazismo como panaceia para todos os males da nação, o conceito de desumanização do outro foi fundamental para que Hitler e seus seguidores implantassem um sistema no qual a humanidade pudesse ser limitada àqueles que se adequassem aos seus critérios raciais e filosóficos.  No nazismo, a perseguição não se restringiu aos judeus, atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo que cheirasse a algo diferente.

Todos estes grupos sociais foram utilizados pelo nazismo para personificar todo o mal oriundo da decadência da sociedade alemã, massacrada sob as exigências do Tratado de Versalhes e sob suas próprias incongruências políticas. Estes grupos passaram por um processo de desumanização, de coisificação, que desembocaram nas políticas de extermínio orquestradas pelas SS de Heinrich Himmler. Não são humanos, são uma subespécie passível de ser eliminada em nome de um bem maior: o desenvolvimento da verdadeira raça humana. Este pensamento, repleto da xenofobia inerente aos totalitarismos, deixou cicatrizes extensas nas sociedades modernas, cicatrizes que parecem querer se abrir novamente em feridas purulentas pela Europa e, também, no Brasil.

Aqui, a polarização do debate político está deixando transparecer no tecido social uma fissura de onde emerge, novamente, os traços do fascismo. Sob o argumento – válido, é claro – de combater a corrupção, importantes fatias da sociedade têm adotado o discurso da desumanização, da estratificação do humano como argumento de luta no campo do debate político. Vide a onda de agressões morais – e até físicas – a que têm sido expostas àqueles que se identificam com o PT, com a esquerda, ou mesmo os que simplesmente apontam aspectos positivos nos últimos 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores.

O que começou com uma onda de escrachos públicos contra políticos do PT, desembocou, agora, para uma prática perigosa: a relativização das agressões diante da convicção política da vítima, ou, o que é pior, em vista do que se imagina que a vítima pense. Pode-se argumentar que o próprio PT abriu a caixa de Pandora ao adotar o discurso do “nós e eles”, ao dividir a sociedade entre as “elites brancas” e os excluídos. Um erro, no entanto, não justifica o outro.

Nos últimos dias, dois casos ilustraram o rumo perigoso que estamos tomando. O primeiro, a agressão ao Arcebisbo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, quando uma mulher atingiu-o com um tapa e o arranhou no rosto em plena missa da Páscoa enquanto o acusava em altos brados de ser “comunista”.

O fato – relativizado pelo próprio bispo, em uma atitude louvável, cuja intenção óbvia foi evitar o acirramento do debate político polarizado – não é isolado. É, sim, consequência da irresponsabilidade de uma extrema direita que tem usado a insatisfação popular – legítima, diga-se – para seus objetivos políticos. Há cerca de um ano, Olavo de Carvalho já incentivava o que ocorreu nesta semana.

Outro caso emblemático da radicalização que leva a desumanização do outro, ocorrido nesta semana, foi o da ex-secretária de Políticas para as Mulheres do Rio Grande do Sul, Ariane Leitão, que denunciou ao Conselho Regional de Medicina e ao Ministério Público a pediatra de seu filho, Francisco, de um ano de idade. Segundo Ariane, que é vereadora suplente do PT em Porto Alegre, a médica – cujo nome ela quer preservar até a denúncia ser formalizada – negou atendimento a seu filho por causa de sua filiação partidária. “Ela era pediatra do meu filho desde que ele nasceu. Tínhamos uma consulta marcada na semana passada, a consulta mensal. De repente, pelo WhatsApp, ela disse que estava declinando de ser a pediatra dele por causa da minha filiação partidária”, disse Ariane, que fez registro em cartório dos prints da conversa mas não quer divulgar o nome da médica. Leia AQUI a transcrição da mensagem enviada pela médica via WhatsApp.

Ao invés de combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga no ódio personalizado.

O caso de Ariane, ou dos cidadãos hostilizados pelo simples fato de vestirem uma camisa vermelha, esboça o processo de desumanização (fazer com que um ser humano seja menos que outro ser humano) e coisificação (quando um indivíduo na sua vida social perde o valor essencial e passa a ser tratado como coisa) que tem permeado as relações humanas no embate político brasileiro.

Em “1984”, de George Orwell, as pessoas eram regularmente reunidas para uma sessão de ódio coletivo. Surgia na tela a figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transtornados pela figura de Goldstein. Catarse geral. Odiar coletivamente pega. Não é algo similar o que ocorre hoje, quando setores da grande mídia reforçam o ódio a um determinado partido, como se fosse ele a origem de todo o mal, como se fosse ele o novo inimigo a ser desumanizado?

Ao invés de combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga no ódio personalizado. É a banalidade do mal, de Hannah Arendt, sistemas que geram atividades monstruosas a partir de homens banais. Que homens e mulheres cultas e inteligentes não consigam entender este argumento nos dias de hoje é em si muito significativo, e socialmente poderoso.

Sebastian Haffner, estudante de direito na Alemanha em 1930, mostra no livro "Defying Hitler: a memoir”, como um estudante de família simples vai aderindo ao partido nazista, simplesmente por influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as massas as mensagens totalitárias. O que deve assustar no totalitarismo, no fanatismo ideológico, não é o torturador doentio, mas como pessoas normais são sugadas para dentro de uma dinâmica social patológica, naturalizando este processo. Na Alemanha da época, 50% dos médicos aderiram ao partido nazista. Hoje, quantos adeririam ao totalitarismo de um Bolsonaro?

O próximo fanatismo político não terá como arauto alguém de bigode ou bota, aos brados de Heil. Usará terno, gravata e multimídia. Proporá o totalitarismo em nome da democracia ou do combate à corrupção.


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