19/05/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

O cuspe e a baba

Publicado em 21/04/2016 12:00 -

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As cusparadas do deputado federal Jean Wyllys e do ator José de Abreu chocaram muita gente. É compreensível, é duro ver o limite da civilidade sendo ultrapassado, especialmente por um cuspe. No entanto, este limite tem sido ultrapassado diariamente por uma turma que se imagina acima do bem e do mal e que, navegando nas águas rasas de um senso comum construído à base de memes e da retórica de uma direita irresponsável, tem protagonizado uma espécie de caça às bruxas contra todos que consideram petistas, esquerdistas, simpatizantes, ou que simplesmente ousem discordar.

Como reagir ao verdadeiro festival de insanidades que tomou conta do debate político nacional mantendo sempre a política do “diboismo”? Como fazer frente à baba hidrofóbica de quem se convence de que o mundo é dividido entre os bons e os maus, nós e eles, santos e demônios, esquerda e direita?

Não é aceitável que um cidadão, por ser de esquerda, filiado a este ou àquele partido, seja humilhado em um restaurante ao lado da esposa, de amigos. Não é aceitável que um parlamentar seja acossado em um aeroporto pelo simples fato de professar esta ou aquela convicção política. Não há nada pior do que um saco de gatos.

Estes, que gritam sua intolerância compartilhando perdigotos em nossa face parecem não compreender outro idioma senão o da barbárie. E se os respondemos no mesmo tom, no que nos transformamos? Somos todos bárbaros em meio a capoeira densa e inclemente da democracia representativa.

Se a atitude de Jean Wyllys e José de Abreu chocaram, o que dizer de um deputado que homenageia um torturador em pleno plenário da Câmara? Quantas vezes tivemos a dignidade conspurcada pelo viés totalitário do deputado Jair Bolsonaro? Ele, que tem dado mostras de intolerância religiosa, racial, econômica e política desde que foi alçado ao mandato por um Rio de Janeiro cada vez mais dominado por milícias, fanáticos religiosos e bandidos – de chinelo e gravata. Quantos passos demos para trás devido a retórica tosca, populista e engraçadinha deste aborto da ditadura? Confesso que preferiria não ter visto as cusparadas de Jean e Abreu. Elas me dão a certeza de que há pouco espaço para o diálogo no Brasil. Por outro lado, elas – as cusparadas – me enchem de orgulho. Afinal, esta matilha ensandecida não pode imaginar-se intocável. É preciso fazer frente a ela, encará-la, confrontá-la, sob pena de despertarmos diante de suas mandíbulas escancaradas, prontas a nos fazer em pedaços.

Estes, que gritam sua intolerância compartilhando perdigotos em nossa face parecem não compreender outro idioma senão o da barbárie. Mas, se os respondemos no mesmo tom, no que nos transformamos? Somos todos bárbaros em meio a capoeira densa e inclemente da democracia representativa.

O próprio debate de ideias está maculado diante do caos no qual mergulhamos ao permitirmos que nossos representantes se transformassem numa espécie de nobreza que, legitimada pelo rei-sufrágio, tem a certeza de não nos dever satisfações sobre suas ações e condutas. Não é à toa que recente pesquisa do Ibope mostrou que 34% das pessoas acha que dá na mesma viver em um regime é democrático ou totalitário. Não é de se espantar que outros 15% considerem que, em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um governo democrático.

Estamos caminhando lentamente para o mundo em que os muitos Bolsonaros que nos cercam adorariam viver.

Exatamente por isso, apesar do mal-estar, dou vivas as cusparadas.


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