19/05/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

Medo de flor

Publicado em 15/09/2015 12:00 -

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Dia destes reencontrei um velho amigo no Rio de Janeiro. Cara inteligente, bem humorado e informado, gente boa. Entre uma e outra cerveja ele me contou de seu interesse por uma colega de trabalho, segundo ele também inteligente, bem humorada e informada, gente boa… Perguntei se ele já a havia convidado para um café, uma cerveja, um jantar, um suco de laranja, o que fosse. Ele me disse que temia que uma aproximação destas fosse confundida com grosseria, arrogância, machismo.

Ora, pensei, e verbalizei, mande umas flores, é preciso quebrar este gelo, esta distância inicial que pode esconder uma história de amor. Novamente ele balançou a cabeça: “Muito invasivo”, afirmou. O tema morreu ali, passamos para o futebol, para a política e, finalmente, para as reminiscências típicas de uma amizade de mais de 30 anos.

Mas… aquela conversa ficou batucando na minha cabeça.

Lembrei-me de como conheci a Mara. Poderia ter sido em um bar, no trabalho, em uma boate, em uma roda de amigos comuns. Mas, não. Foi em um ambiente pouco provável: a internet. A primeira coisa que me chamou a atenção nela foram os olhos. Me recordo como se fosse hoje como eles me impressionaram. Bom… não tive receio de elogiá-los.

Hoje caminhamos para 16 anos de um relacionamento repleto de amor, companheirismo, afeto, apoio mútuo. Não, não é perfeito. Temos nossas brigas, nossos desencontros, nossos maus humores. Que bom que é assim. No amor, a perfeição é sempre imperfeita.

Há limites entre uma expressão genuína de interesse entre um homem e uma mulher e a grosseria, a invasão da privacidade? Creio firmemente que sim. Há diferenças importantes aí. No entanto, tenho visto muita gente que admiro deixar esta fronteira perigosamente indefinida.

Como teria sido se, ao receber meu elogio, ela tivesse me passado uma descompostura daquelas? Se tivesse me classificado como machista, grosseiro, chauvinista, um típico produto de uma sociedade patriarcal que não respeita o espaço de uma mulher independente? Que bom que ela não o fez. Teria sido um desperdício de amor. Minha vida, certamente, não teria sido tão rica em felicidade.

Desde que, em 2013, o blog A Olga lançou a campanha Chega de Fiu Fiu, contra o “assédio sexual em espaços públicos” este tema me intriga. E esta coceirinha voltou nestes dias, após o papo no Rio de Janeiro e o desabafo indignado de uma querida amiga no Facebook.

A questão é: há limites entre uma expressão genuína de interesse entre um homem e uma mulher e a grosseria, a invasão da privacidade? Creio firmemente que sim. Há diferenças importantes aí. No entanto, tenho visto muita gente que admiro deixar esta fronteira perigosamente indefinida.

Uma cantada grosseira é o mesmo que um elogio genuíno? Se é, qual o impacto disso na relação entre homens e mulheres? Uma aproximação será válida apenas se ambos demonstrarem, ao mesmo tempo, interesse mútuo? Deixaremos as vastas possibilidades do amor para um momento “mágico” onde duas pessoas se identificam no mesmo instante?

Perdão, as coisas não funcionam assim. Minha história de amor nunca teria ocorrido, neste caso.

Não tive a capacidade de estabelecer esta fronteira para o meu amigo apaixonado. Talvez ela deva ser traçada por cada um. Ainda assim tremo com a aproximação do dia em que passemos a temer uma singela flor, atribuindo a ela significados ocultos que, para o bem geral, deveriam ficar reservados aos filósofos enclausurados, para quem o amor é um tema, não um fato.


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