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Palavra do Editor

Calado, ou dou-lhe um soco

Publicado em 16/01/2015 12:00 -

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O blogueiro saudita Raif Badawi, pai de três filhos, foi preso, em 2012, acusado de conspirar contra a segurança do reino ao publicar textos questionando as rígidas restrições islâmicas do país. Na semana passada foi levado a uma praça em frente a uma mesquita e recebeu 50 chibatadas. Ele sofrerá mais 50 chibatadas todas as sextas-feiras, durante 19 semanas consecutivas – totalizando mil chibatadas –, além de ter sido condenado a 10 anos de prisão e a pagar uma multa cujo valor gira em torno de 650 mil reais. O site de Badawi também foi retirado do ar pelo governo saudita.

O caso de Badawi é um exemplo clássico da disputa entre a liberdade de expressão e o poder, neste caso representado pelo fundamentalismo religioso. Qualquer relação com os recentes atentados em Paris não é mera consciência.

Passada mais de uma semana do ataque terrorista que matou 12 pessoas na sede do jornal Chaelie Hebdo, as cabeças coroadas das monarquias religiosas voltam a condenar aqueles que se insuflam contra seus tropeços ou ridicularizam suas posturas.

A ditadura do politicamente correto é perigosamente atraente, especialmente quando ela impede que o outro nos ridicularize, nos acuse, nos ofenda. Mas quando a mordaça se aperta contra nossos próprios lábios desejamos ardentemente defender nosso direito a pensar, logo, a existir.

O Papa Francisco – que numa ocasião foi alvo de uma caricatura no Charlie onde foi retratado, durante sua viagem ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, em 2013, usando chinelos e uma fantasia típica do carnaval carioca, e explicando que faz tudo "para conseguir clientes" – deu sua chibatada. Defendeu o direito de expressão, mas disse ser errado provocar os outros ao insultar a religião alheia (veja o vídeo). Para ilustrar seu ponto, Francisco disse a jornalistas no avião papal que seu assistente poderia esperar um soco se ele xingar sua mãe. "É normal. Você não pode provocar, não pode insultar a religião dos outros", disse ele.

Como era de se esperar, líderes religiosos muçulmanos também condenaram a nova edição do Charlie Hebdo, onde a imagem do profeta Maomé surge na capa em lágrimas empunhando um cartaz com a frase "Je Suis Charlie" (Eu Sou Charlie). Foi considerado um insulto. "O desenho fere o sentimento dos muçulmanos. O abuso da liberdade de expressão, estendido hoje no Ocidente, não é aceitável e deve ser impedido", disse um porta-voz da Chancelaria iraniana.

É normal” e “deve ser impedido” ou “espere um soco” dizem o Papa e o Irã. O que Francisco – elegantemente, e com seu jeito bonachão – e as lideranças islâmicas – com suas carrancas medievais – dizem nas entrelinhas é o seguinte: é natural que religiosos apelem à violência para defender suas convicções. Esta visão distorcida tem sido apoiada nos espaços públicos por gente de todo o tipo, da esquerda à direita, com argumentos do tipo “disseram o que queriam e receberam o troco”.

Tivessem o mesmo poder que os príncipes sauditas as lideranças do Vaticano condenariam seus detratores a mil chibatadas? Provável que sim.

É exatamente contra este pesadelo que se deve defender a liberdade de expressão como um dos valores máximos de uma democracia. Seus excessos não podem ser evitados a priori, com a censura e o medo, mas questionados a posteriori, pelos mecanismos que a democracia oferece: no caso a Justiça. A ditadura do politicamente correto é perigosamente atraente, especialmente quando ela impede que o outro nos ridicularize, nos acuse, nos ofenda. Mas quando a mordaça se aperta contra nossos próprios lábios desejamos ardentemente defender nosso direito de pensar e de expressar, logo, de existir.


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