19/05/2024 - Edição 540

Palavra do Editor

Bonzinhos e malvados

Publicado em 25/11/2015 12:00 -

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A revista Semana On publicou no destaque desta edição uma reportagem do jornalista Renan Antunes de Oliveira, elaborada a pedido da Agência Pública. O tema é o triste conflito entre índios da etnia guarani kaiowá e produtores rurais de Mato Grosso do Sul em sua disputa pela posse da terra.

As condições a que as populações indígenas do país têm sido mantidas são humilhantes, para os próprios indígenas – privados de suas terras ancestrais e lançados em condições de subsistência miseráveis -, para os produtores rurais – muitos dois quais foram levados pela irresponsabilidade do Estado brasileiro a ocupar áreas que já tinham donos; e, especialmente para os dirigentes brasileiros, que tradicionalmente têm tratado a questão com o pouco caso que costumam emprestar a assuntos que não rendem votos ou holofotes.

É fácil polarizar a questão indígena no Brasil. Muito fácil dizer que todos os produtores rurais que hoje se encontram em terras indígenas são bandidos, invasores de terra, matadores de índios. É fácil, também, dizer que os índios são preguiçosos, que atrapalham o desenvolvimento econômico do país e que deveriam ser incondicionalmente “civilizados” à força.

Ambos os argumentos são fáceis de serem elencados, e têm sido usados por ambos os lados do conflito na tentativa de sobrepujar o adversário em uma luta cuja principal vítima é o Brasil. Mais difícil é estabelecer critérios sólidos para a solução deste impasse. O primeiro deles é reconhecer que as populações indígenas devem ter o direito a posse de seus territórios ancestrais, em dimensões que lhes permitam manter seu estilo de vida e cultura. O segundo é aceitar que a imensa maioria dos produtores rurais que hoje ocupam terras indígenas – é óbvio que aí não se incluem grileiros e quetais –  não pode ser responsabilizada por políticas de Estado tomadas há décadas.

É preciso pagar o preço justo pelas terras e benfeitorias e, em sequência, devolver as terras aos seus legítimos donos: os índios.

Muito fácil dizer que todos os produtores rurais são bandidos, invasores de terra, matadores de índios. É fácil, também, dizer que os índios são preguiçosos, que atrapalham o desenvolvimento econômico do país.

Por isso, hoje, faço aqui o papel de ombudsman, e estabeleço uma crítica ao tom da reportagem que publicamos nesta edição. Apesar da qualidade do texto – o que seria de se esperar de um jornalista experiente como Renan Antunes e de uma organização comprometida com um jornalismo formador como a Pública – o material escorrega gravemente no quesito imparcialidade. E aí não me refiro a “passar a mão na cabeça” de “matadores de índios”. Estes devem ser expostos, condenados pela Justiça, execrados pela Opinião Pública. Me refiro, isso sim, ao pré-julgamento depreciativo com que o texto trata todos os produtores rurais.

O desbalanceamento no confronto – representado pelos índios assassinados nas últimas décadas – não é desculpa para a parcialidade desmedida, especialmente se o objetivo da reportagem é expor os crimes cometidos no confronto entre índios e produtores rurais. O fato é que há excessos e arbitrariedades sendo cometidas pelos dois lados.

O texto – que vale a pena ser lido em sua íntegra – peca por um tom paternalista segundo o qual todos os índios são "coitadinhos" e todos os brancos "malvados". Todos os índios são esbulhados de seus direitos e todos os brancos são exploradores desalmados. Ora, o caso em questão é muito mais complexo que isso, não se encaixa neste reducionismo pernicioso.

A questão indígena no Brasil precisa ser tratada com seriedade. Não é aceitável que estas populações sejam violentadas continuamente como vem ocorrendo há séculos. Não é aceitável, também, que famílias que legalmente ocupam terras há décadas sejam transformadas em parias. O Estado precisa assumir sua responsabilidade e mediar uma saída digna.

Para isso, é imprescindível que as demais esferas públicas – especialmente o Jornalismo – tratem a questão com responsabilidade. Sem isso, a solução justa para todas as partes envolvidas nesta armadilha histórica estará cada dia mais longe.


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