18/05/2024 - Edição 540

Ecologia

Em alta no governo Bolsonaro, destruição do Cerrado dispara 7,9% e é a maior desde 2016

Publicado em 10/01/2022 12:00 -

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A destruição do Cerrado, a savana mais biodiversa do planeta, segue em ritmo acelerado no Brasil e disparou 7,9% em 12 meses. Foram perdidos 8,5 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa, área equivalente a quase seis vezes a cidade de São Paulo. 

Embora abranjam o período entre agosto de 2020 a julho de 2021, os dados foram divulgados, sem alarde, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), órgão do governo federal, na véspera do ano novo, em meio às festas.

A extensão desmatada é a mais alta desde 2016 e representa mais um marco de devastação ambiental no governo de Jair Bolsonaro (PL), aliado fiel do setor mais destrutivo do agronegócio. 

De acordo com estudo do Mapbiomas, a pecuária e a agricultura de exportação foram responsáveis por 99% do desmatamento do Cerrado, que já perdeu praticamente metade da cobertura vegetal original. 

As estatísticas do Inpe revelam ainda que a chegada de Bolsonaro ao poder interrompeu uma trajetória de queda drástica da devastação no bioma, constatada entre os anos de 2004 e 2017. 

Nesse ritmo, o algodão, o milho e principalmente a soja tomarão o lugar das 12 mil variedades de plantas típicas da região. Biodiversidade que guarda em si a possibilidade de uma economia sustentável sem devastação, conflitos agrários ou desigualdade social. 

Identidade sufocada 

“Quando falamos em 12 mil espécies, estamos falando em 12 mil possibilidades de bioprospecção, fármacos, cosméticos, frutas, compotas. É uma diversidade gigantesca, e a gente está descobrindo tudo isso, mas em um ritmo muito aquém do desmatamento. Com a soja, a gente está jogando fora todas essas possibilidades.”

A observação é do geógrafo e pesquisador Yuri Salmona, diretor do Instituto Cerrados. Ativa desde 2011, a entidade é uma das ONGs que estimulam a preservação ambiental e o desenvolvimento da economia regional, com foco no fortalecimento das comunidades tradicionais. 

“A gente acha muito bonito importar uma série de frutas e bebidas de países europeus, principalmente França e Itália, mas tem uma profunda dificuldade de olhar para a nossa riqueza. A gente está abrindo mão da nossa identidade por soja”, reflete o diretor do Instituto Cerrados. 

Espalhado por 24% do território nacional e 11 unidades da federação, o Cerrado brasileiro foi mais devastado em três delas: Maranhão (2,2 mil km²), Tocantins (1,7 mil km²) e Bahia (925 km²). Elas compõem o chamado Matopiba, junção das siglas dos três estados – além do Piauí – onde a monocultura avança agressivamente desde os anos 80. 

“Pau Brasil, cana, ouro, petróleo, soja e carne. A gente tem um arranjo onde o Brasil está se enquadrando no mercado internacional da mesma maneira que fazia quando a gente foi colonizado. A base da balança comercial é exportar commodities de baixo valor agregado”, afirma o geógrafo. 

A ilusão do desenvolvimento 

A essa altura, a cumplicidade do governo federal com criminosos ambientais já é mais do que conhecida. “A questão é uma falta generalizada de planejamento, capacidade de monitoramento, ações de comando e controle e um planejamento e ocupação do cerrado de forma inteligente”, registra Salmona. 

A ausência de uma política econômica nacional voltada ao desenvolvimento sustentável, no entanto, constitui outro fator decisivo para a proliferação da monocultura no Cerrado, cada vez mais destrutiva. 

“A lei Kandir deixa de cobrar ICMS de produtos não manufaturados de origem agropecuária. Ou seja, essa grande exportação não está voltando em termos de recursos para investimento no país. Sendo que a infraestrutura que permite essa exportação é financiada pelos cofres públicos”, critica.

O Plano Safra, programa federal que concede anualmente crédito a pequenos e médios produtores, também estimula as atividades agrícolas predatórias ao negligenciar os pequenos produtores e agroextativistas.

Dos R$ 251,2 bilhões em recursos do Plano Safra 2021/2022, menos de R$ 40 bilhões foram alocados para a agricultura familiar. Na edição anterior, o índice era 19% menor. A falta de incentivo à economia verde na esfera nacional, segundo o pesquisador, é repetida nos âmbitos estaduais e municipais. 

“Então a gente tem um estado massivamente financiando aquele modo de produção de monoculturas, de latifúndios para exportação de commodities de baixo valor agregado”, destaca.

Como a atividade monocultora é desvinculada do desenvolvimento local, quando fronteira agrícola chega, o resultado é o desemprego e o aumento da concentração de renda, especialmente na mão de quem lucra em dólar com as exportações. 

“Você pode até ter um aumento do IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] momentâneo porque você acaba ‘exportando’ a população para a próxima fronteira agrícola. Porque ali você vai ter poucos empregos, e de uma mão de obra relativamente qualificada. E aquela massa de pessoas vão ficar desempregadas”, explica o diretor do Instituto Cerrados. 

Apagão de dados 

A série histórica do desmatamento no Cerrado começou em 2000, mas seu futuro é incerto. Segundo a WWF-Brasil, o PRODES Cerrado – projeto de monitoramento conduzido pelo Inpe que gerou os dados presentes nesta reportagem – está ameaçado pela falta de verbas. 

"Neste cenário de clara tendência de aumento de desmatamento do Cerrado, o risco de inviabilização do PRODES Cerrado a partir de janeiro de 2022 por falta de verba equivale a uma carta em branco para os desmatadores”, afirma Mariana Napolitano, gerente de ciências do WWF-Brasil.

“É também mais um ataque à produção científica nacional e também ao papel fiscalizador do Estado que, sem dados atualizados e confiáveis, fica com menor capacidade de implementar ações e políticas ambientais", complementa.

Sem verba, Cerrado ficará sem dados sobre desmatamento

Com o desmatamento em alta, o Cerrado vai deixar de ser monitorado via satélite pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em abril. É quando acabam os recursos destinados ao projeto, cuja continuidade deverá ser impedida devido à falta de investimento do governo federal.

Fontes ouvidas pela DW Brasil no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), em condição de anonimato, afirmam que, até o momento, não há garantia de dinheiro para o sistema de monitoramento do segundo maior bioma brasileiro, depois da Amazônia.

"O atual governo não tem interesse em manter o monitoramento. Nem da Amazônia, nem do Cerrado", avalia Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe, em entrevista à DW Brasil.

Em operação desde 1988 para a Floresta Amazônica, o sistema oficial de vigilância começou a ser estruturado para o Cerrado em 2016. Naquele ano, um convênio assinado entre ministérios e Banco Mundial garantiu 9,5 milhões de dólares até 2021.

A iniciativa, que ocorreu dentro do Programa de Investimento Florestal (FIP, na sigla em inglês), contou com recursos de doadores internacionais e permitiu a construção de uma série histórica de desmatamento de maneira retroativa, com imagens de satélite obtidas a partir de 2000. 

Em 2018, dentro do mesmo programa, o Inpe lançou o sistema de alertas de desmatamento para o Cerrado (Deter) e, a partir de 2019, os dados anuais passaram a ser divulgados (Prodes-Cerrado).

É por causa desse esforço que é possível saber, por exemplo, que o estado de Goiás foi o que mais destruiu essa vegetação nativa desde então, com mais 47 mil km² desmatados. A área é equivalente a mais de 4 milhões de campos de futebol.

"Desastre político e ambiental"

Considerada a savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado se estende, além de Goiás, pelos estados de Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal. De sua área original, que ocupava 25% do território nacional, quase metade já desapareceu.

"O fim do monitoramento traria um impacto negativo muito grande", comenta Laerte Ferreira, pró-reitor de pós-graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador da plataforma Cerrado DPAT.

Dentro do programa FIP Cerrado, Ferreira lidera o grupo de pesquisas na UFG responsável pela validação dos dados de desmatamento gerados pelo Inpe. O trabalho de checagem mostrou um índice de acerto de 94%, o que é elevado e mostra a alta confiança dos dados sobre desmatamento, concluiu um estudo publicado na revista científica Remote Sensing Applications Society and Environment em janeiro de 2021.

"Seria um escândalo, um desastre politico e ambiental. O FIP Cerrado deu 9 milhões de dólares para que o país pudesse colocar de pé um sistema de monitoramento. Foi como um pontapé inicial, não pode ser interrompido", comenta Ferreira.

O bioma concentra nascentes das principais bacias hidrográficas brasileiras, como a do rio São Francisco, e é nele que ocorre cerca da metade da produção nacional de soja.

"As principais fronteiras agrícolas estão neste bioma. Precisamos de politicas que incentivem uma ocupação mais sustentável, mais inteligente. Precisamos acabar com o desmatamento, de uma politica de comando e controle", sugere o pesquisador.

Na UFG, as equipes que trabalhavam no projeto já foram desmobilizadas. A plataforma Cerrado DPAT, que contextualiza as circunstâncias em torno do desmatamento registrado pelo Inpe, está ameaçada. "Eu me questiono como vamos manter essa plataforma, atualizar os dados, etc.", lamenta Ferreira.

"Pior momento na ciência e tecnologia"

Na visão de Gilberto Câmara, o encerramento do monitoramento no Cerrado faz parte de uma estratégia do governo Bolsonaro de enfraquecer instituições de pesquisa como o Inpe por meio de cortes no orçamento.

Segundo o ex-diretor, cerca de 400 milhões de reais em valores corrigidos foram destinados aos instituto em 2011. No ano passado, esse total caiu para 80 milhões – valor cinco vezes menor.

"Foi uma redução orçamentária brutal com o objetivo de amordaçar os cientistas, acabar com a pesquisa, com o supercomputador, com atividades de cooperação. É um desastre encomendado", critica Câmara.

Sobre o Prodes Cerrado, havia uma certa expectativa de que recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) fossem destinados ao projeto. A incerteza gera um clima de insegurança e ansiedade entre os pesquisadores.

"Não é um sistema caro pelo tamanho do bioma que ele monitora. Custaria cerca de 3 milhões de reais por ano. O problema é mesmo que o governo não tem interesse em monitorar o Cerrado", avalia Câmara.

Apesar da existência de iniciativas semelhantes feitas pelo terceiro setor, como o MapBiomas, Laerte Ferreira, da UFG, defende que o país precisa gerar dados oficiais com apoio do governo federal.

"Este é o pior momento na ciência e tecnologia. As coisas estão caóticas. Tudo isso é muito ruim para o Brasil e para o Cerrado, que sofre com um desmatamento que está numa crescente e que é, em sua maior parte, ilegal", analisa Ferreira.

Questionado pela DW Brasil, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.


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